Em 21/08/2018

Registro de imóveis eletrônico ONR: entre a eficiência e a segurança jurídica - por Rodrigo Numeriano Dubourcq Dantas


Orienta-se, então, o ONR, tanto em uma perspectiva privatista, bem como publicística, à otimização das atividades desempenhadas pelos serviços registrais imobiliários no país, seja em benefício de seus usuários, seja em benefício do Poder Público.


1. Estado Democrático de Direito e dever de realização da segurança jurídica
 
A edição do art. 76 da lei 13.465, de 11 de julho de 2017, resultado da conversão da Medida Provisória 759/2016, lança novo sopro de modernização à atividade registral imobiliária no País. A demanda, contudo, nada tem de novidade.
 
Desde a data de publicação da lei 11.977/09, seu art. 39 reclamava que os atos registrais, praticados a partir da vigência da lei 6.015/73, fossem inseridos em sistema de registro eletrônico. Para tanto, previu o legislador prazo de até 5 anos.
 
Por certo, estava-se diante de prazo não peremptório. Seu descumprimento, todavia, ensejou consequências jurídicas negativas que não se restringem aos oficiais de registro e usuários dos serviços registrais em tela. O caso, em verdade, é de perda para toda a sociedade brasileira.
 
Dados do Banco Mundial concorrem para ratificar, objetivamente, a assertiva. Basta-se perceber, neste sentido, que, segundo o Ranking Doing Business, elaborado para o ano de 2018, o Brasil ocupa a posição de 125, relativamente à eficiência no registro de propriedade, quando avaliados os sistemas e métodos existentes nos 213 Países contemplados pelo estudo.1
 
É incontestável a importância desempenhada pela atividade registral lato sensu para fins de realização do princípio da segurança jurídica, em que fundado o Estado Democrático de Direito brasileiro (CF, art. 1º), a exigir efetivação dos direitos e liberdades fundamentais, dotados, inclusive, de aplicabilidade imediata (CF, art. 5º, § 1º).
 
Desde 1988, verifica-se no País um renovado sentido (material) do modelo de Estado de Direito. Está-se diante de construção jurídico-política que compatibiliza o modelo Rechtsstaat com exigências sociais, constitucionalmente postas, sem desprezar a exigência de respeito ao Direito Positivo.2 Nesta perspectiva de difusão e fortalecimento dos direitos e liberdades fundamentais, ao que se impõe, por exemplo, segurança jurídica na afirmação da garantia individual da propriedade (CF, art. 5º, XXII), exsurge a fórmula do Estado Democrático de Direito, contrária a excessos do Poder Público.
 
Trata-se de modelo estatal "democrático", na medida em que a citada exigência de respeito às normas postas revela-se ciosa da democracia política e, assim, não admite qualquer restrição de liberdade que não tenha sido concebida pelos representantes eleitos do povo, observando-se os procedimentos constitucionalmente previstos para tanto. Eis porque a ele se soma o qualificativo "de Direito".3
 
No contexto ora descortinado, de afirmação constitucional de direitos, destacam-se os registros públicos como ferramental técnico-administrativo institucionalmente habilitado a conferir veracidade, publicidade, autenticidade, segurança e correção jurídicas aos atos praticados por particulares (lei 8.935/94, art. 1º), robustecendo-lhes a eficácia, inclusive para fins probatórios em face do Estado (CF, art. 19, II; lei 6.015/73, art. 1º; CC/2002, arts. 215, 216 e 217). Neste sentir, contribuem para a prevenção de litígios e, ademais, desempenham relevante função historiográfica, porquanto documentam o quotidiano do País.4
 
Devem ser estimuladas, logo, as iniciativas do Estado que concorram para otimizar o exercício da atividade registral lato sensu no País. Quando hígidas, estas se revertem em inequívocos ganhos de segurança jurídica para toda a coletividade, como é o caso da efetiva implementação de soluções tecnológicas na seara em comento, de há muito reclamada pelo legislador.
 
Eis a premissa que deve balizar o exame da viabilidade jurídica da instituição, em lei federal, quer do Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico – SREI, inicialmente previsto no art. 54 da MP 759/16, em linha com comandos inadimplidos da lei 11.977/09, quer do ente que contribuirá, pragmaticamente, para sua implementação, o Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis – ONR, objeto deste breve estudo.
 
Ultrapassado in albis o referido prazo, originalmente previsto no art. 39 da lei 11.977/09, sem que fossem adotadas medidas institucionais concretas, no sentido de informatizar a atividade registral brasileira, cumpria mesmo ao legislador federal tomar providências em benefício de seus representados, os integrantes do povo brasileiro (CF, art. 22, XXV, e art. 236, § 1º). Assim procedendo, atuou em consonância com o modelo de Estado em vigor no País, cioso da realização do princípio da segurança jurídica material, para o que concorre a atuação institucional confiada aos registros imobiliários.
 
A afirmação ganha força especialmente quando considerados os imperativos da regularização fundiária urbana, presentes no Título II da aludida lei 13.465/17, em que topograficamente situados o SREI e o ONR. Trata-se de dois institutos jurídicos que, desde o nascedouro, revelam-se, pois, orientados à realização do direito à moradia digna (CF, art. 6º), precisamente em sua dimensão associada à segurança jurídica da propriedade imobiliária. Também este constitui objeto de atenção do Estado Democrático de Direito brasileiro que, ao lado de garantias individuais por restaurar e proteger, possui uma agenda de direitos sociais por implementar com eficiência.
 
Nos termos acima, a intervenção legislativa positiva, aqui referenciada, justifica-se duplamente, à medida que tanto a garantia constitucional individual da inviolabilidade da propriedade (art. 5º, XXII), bem como a proteção do direito social à moradia digna em sua multidimensionalidade (art. 6º), sob a égide da Constituição de 1988, não constituem mera expectativa de direito dos brasileiros; diversamente, materializam-se e se expandem na condição de compromissos firmes, a serem efetivamente concretizados pelo Estado. E, no todo complexo que envolve a tutela jurídica destes dois temas, concorrem, sobremaneira, os esforços dos registradores imobiliários, cujas atividades deverão, o máximo quanto possível, ser dotadas de eficiência, porquanto orientadas à promoção de segurança jurídica.
 
A criação de métodos e mecanismos jurídicos que revitalizem e favoreçam o desempenho eficiente das funções registrais imobiliárias cumpre, logo, determinações expressas do constituinte de 1988, ao modular o Estado Democrático de Direito brasileiro. A isto se prestam as soluções tecnológicas juridicamente condensadas sob a forma do SREI e do ONR.
 
2. Mutações estruturais do Estado e eficiência administrativa: a viabilidade jurídica do ONR na praxis registral imobiliária brasileira
 
Referida diretriz de eficiência na realização juridicamente segura das funções estatais, para fins de adimplemento concreto dos muitos deveres que incumbem ao Estado brasileiro tem promovido, no curso do tempo, mutações estruturais e estruturantes no âmbito da Administração Pública. Dentre estas, destaca-se verdadeira gama de novos arranjos institucionais, envolvendo o Poder Público, de um lado, e particulares, de outro.5 Trata-se de modelagens jurídico-institucionais que superam as formas clássicas de organização previstas quer na seara do direito público, quer na seara do direito privado.
 
Referida privatização do exercício de funções públicas não-exclusivas do Estado, a fim de que sejam exercidas sob os influxos do direito privado, nos espaços em constitucionalmente admitidas6, deverão respeitar as balizas legalmente fixadas e se justificarão nos setores em que a ação direta do Estado se revele menos eficiente, quando comparada àquela a cargo dos particulares. O caso é de trespasse de "atividades estatais de administração de interesses públicos" a entidades privadas, a partir de uma "empresa mista e partilhada", como percebeu Pedro Gonçalves.7
 
O ONR afigura-se, precisamente, uma estrutura jurídica inserida neste novo cenário de hibridismo e compartilhamento público-privado de funções que tradicionalmente encontravam-se confiadas, com exclusividade, ao Estado e seus agentes. Rigorosamente, não constitui um ente público. Por esta razão, não se amolda a qualquer uma das categorias organizativas do Estado, integrantes da Administração Direta (os entes federados, na forma do art. 41 do CC/2002) ou da Administração Indireta, previstas no decreto-lei 200/67 (autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações públicas).
 
Pelo contrário: expressamente previu o legislador federal, no § 2º do art. 76 da lei 13.465/17, que o ONR assume a forma de um ente privado, destituído de fins lucrativos. Neste particular, não deve causar espanto o fato de não se amoldar, igualmente, a qualquer uma das categorias classicamente previstas no art. 44 do CC/2002: associações; sociedades; fundações; organizações religiosas; partidos políticos; e empresas individuais de responsabilidade limitada. É que este rol de pessoas jurídicas privadas não é exaustivo8, consoante reconhecido, de há muito, pelo Enunciado 144, cunhado no âmbito da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal e do Superior Tribunal de Justiça, ocorrida em 2005.
 
Com efeito, por força do art. 22, I e XXV, e do art. 236, § 1º, ambos da CF, não se pode perder de vista, no particular sob consideração, a ampla margem de liberdade conferida ao Parlamento nacional para dispor sobre a atividade registral no País, mediante a veiculação de normas por leis ordinárias, assim dotadas de hierarquia apta a promover alterações, adições ou revogações quer no decreto-lei 200/67, quer no CC/02. Neste sentir, assenta-se que a atividade do legislador federal encontrará limites, apenas, no plano constitucional que, como visto, orienta-se à eficiência do Estado brasileiro. Isto fica claro, em termos gerais, já no caput do art. 37 da CF.
 
O mencionado referencial de eficiência, especificamente, orientou o constituinte de 1988, ao traçar, de modo inovador, a modelagem jurídica dos serviços registrais no País. Isto porque, diversamente do ocorrido em experiências constitucionais pretéritas, estes serviços passaram a ser contemporaneamente exercidos em caráter privado e, assim, restaram afastados das estruturas do Poder Judiciário, onde tradicionalmente hospedados no organograma do Estado brasileiro.
 
Não se deve confundir os serviços de registro imobiliário com serviços forenses em sentido próprio, entendidos como aqueles afetos às atividades da Justiça (CF, art. 24, IV, e art. 98, § 2º).9 Bem previu, então, o legislador federal, quando da edição da lei 8.935/94, em linha com as prescrições do constituinte de 1988, que os primeiros seriam pautados por regime de direito privado, com liberdades gerenciais típicas da iniciativa privada, ademais de exercidos sob responsabilidade pessoal de seus delegatários (art. 22º), juridicamente reputados profissionais do Direito (art. 3º), e não funcionários públicos em sentido estrito.
 
Não pretendeu o constituinte de 1988, entretanto, promover o afastamento total entre os serviços de registro imobiliário e o Estado. Andou bem, considerando-se a importante parcela de realização do interesse público a eles confiada. Previu, destarte, que referida atividade, objeto de delegação estatal mediante concurso público (CF, art. 236, caput e § 3º), a uma, seria regulada pelo Poder Legislativo da União; a duas, seria objeto de fiscalização atenta pelo Poder Judiciário (CF, art. 236, § 1º).
 
Do art. 76 da lei 13.465/17, exsurge verdadeira atuação conjunta, legislativamente determinada, entre a iniciativa privada – âmbito em que situado o ONR – e o Poder Judiciário, que continuará a examinar a atuação institucional deste ente. Não por outra razão, previu o legislador federal que caberá à Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça exercer a função de agente regulador deste ente, bem assim zelar pelo cumprimento de seu estatuto (§ 4º). Nisto, tem-se a densificação de opção constitucional expressa. E nenhum obstáculo jurídico a ela se impôs; tanto mais quando considerando que este novo arranjo institucional público-privado se orienta a fornecer eficiência às atividades desempenhadas pelos registros imobiliários do País.
 
No particular sob consideração, inclusive, importa perceber que, apesar de o ONR, nos termos da lei 13.465/17, não se voltar à fiscalização dos atos registrais propriamente ditos e, assim, não absorver qualquer parcela de competência originalmente confiada, pelo constituinte de 1988, ao Poder Judiciário, também esta fiscalização fica a depender de intermediação legislativa. Poderia, assim, ser objeto de compartilhamento público-privado, mediante opção expressa e motivada do legislador da União, conforme autorizam o art. 22, XXV, e o art. 236, § 1º, ambos da CF.
 
O ONR constitui uma entidade privada de colaboração administrativa.10 Isto fica claro a partir dos contornos legislativos de seus escopos institucionais: implementar e operar, em âmbito nacional, o SREI (art. 76, caput) e, assim, em âmbito privado, fornecer eficiência ao desempenho da atividade registral imobiliária no País, dinamizando, por exemplo, procedimento administrativo e os atos de registro decorrentes de medidas de regularização fundiária urbana que, por força de lei, deverão ser feitos preferencialmente por meio eletrônico (art. 76, § 1º). Isto sem prejuízo da informatização dos demais atos caros à dinâmica dos serviços de registro imobiliário brasileiros, previstos no art. 12 da lei 8.935/94; o que, inclusive, realiza a diretriz de há muito consignada no art. 39 da lei 11.977/09.
 
À guisa de complementação do parágrafo precedente, cumpre-se observar que os oficiais de registro imobiliário são livres para organizar e executar os serviços que lhes competem, para o que, desde a edição do art. 41 da lei 8.935/94, encontram-se habilitados a adotar sistemas de computação, de microfilmagem, bem assim discos óticos e outros meios de reprodução de dados. Tanto mais quando estas soluções tecnológicas correspondam a processos que facilitem e racionalizem as buscas dos documentos (lei 8.935/94, art. 42) que têm por dever legal conservar (lei 6.015/73, arts. 22 a 27).
 
Em âmbito público, paralelamente, o regular adimplemento dos escopos institucionais do ONR reverte-se, gratuitamente, em favor do Poder Judiciário, do Poder Executivo federal, do Ministério Público, dos entes públicos previstos nos regimentos de custas e emolumentos dos Estados e do Distrito Federal, e dos órgãos encarregados de investigações criminais, fiscalização tributária e recuperação de ativos (art. 76, § 6º). Para além disto, referido ente privado de colaboração permitirá o acesso, pela Administração Pública Federal, às informações do SREI por meio do Sistema Nacional de Gestão de Informações Territoriais – Sinter (art. 76, § 7º).11
 
Orienta-se, então, o ONR, tanto em uma perspectiva privatista, bem como publicística, à otimização das atividades desempenhadas pelos serviços registrais imobiliários no País, seja em benefício de seus usuários, seja em benefício do Poder Público. Num ou noutro caso, referido ente, com existência garantida por força de lei, prestará colaboração técnica e, assim, proverá eficiência ao adimplemento dos compromissos do Estado Democrático de Direito brasileiro com a realização da segurança jurídica na preservação da propriedade imobiliária, bem assim na implementação do direito social à moradia digna.
 
Está-se diante de entidade paraestatal, dotada de liberdades caras à iniciativa privada. Neste particular, verifica-se que o legislador infraconstitucional da União, ao editar o aludido art. 76 da lei 13.465/17, manteve-se em linha com o que havia disposto o constituinte de 1988, ao tratar do modo – igualmente privado – de gestão das atividades notariais e registrais no País.
 
Na forma deste arranjo institucional, restaram conferidas, ao ONR, menos amarradas do que aquelas comumente impostas aos entes que formalmente integram as estruturas da Administração Pública (Direta ou Indireta). Organizado sob a forma de entidade de direito privado, apesar das funções que desempenha no interesse público, referido ente não se sujeita ao regime administrativo propriamente dito, marcado por prerrogativas e restrições. Goza, pois, ilustrativamente, de autonomia orçamentária e de liberdade de contratações sem as amarras típicas das licitações ou concursos públicos.12 Tudo isto se reverte em eficiência no adimplemento de seus objetivos institucionais, legalmente fixados.
 
Enquanto entidade paraestatal, posta ao lado do Estado, para executar cometimentos de interesse do próprio Estado, mas não privativos deste13, o ONR apresenta-se como mais um novo arranjo institucional de que se valerá, na contemporaneidade, o Estado Democrático de Direito brasileiro que lhe autorizou a criação e lhe confiou atividades de interesse público, sob o prisma da eficiência (CF, art. 37). Nisto, há salutar colaboração público-privada, como bem reconheceu a Advocacia-Geral da União ao defender a constitucionalidade do citado art. 76 da lei 13.465/17, no bojo da Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.883, distribuída, em 23/1/18, à relatoria do Exmo. Sr. ministro Luiz Fux.
 
A partir deste hibridismo public-private, do public-private-mix14 que o caracteriza, o ONR deve ser tomado como "entidade intermediária"15 que, rigorosamente, nada tem de atípica, à medida que, como visto, foi criada pelo Estado e se encontra expressamente prevista no ordenamento jurídico pátrio. O caso, isto sim, é de ruptura na tradição organizacional da Administração Pública brasileira.
 
E a solução legislativa disruptiva, aqui examinada, legitima-se juridicamente quer em uma perspectiva formal, de processo legislativo, considerada a competência da União para dispor sobre direito registral (CF, art. 22, XXV) e o modo de exercício dos serviços de registro imobiliário no País (CF, art. 236, § 1º), inclusive com possibilidade de criação de novas pessoas de direito privado, tema propriamente afeto ao Direito Civil (art. 22, I); quer em uma perspectiva material, de atuação em grau de colaboração com o Estado, a estimular novos arranjos institucionais, orientados à eficiência no desempenho de atividades originalmente públicas, mas passíveis de trespasse ao setor privado (CF, art. 37, 236, caput e § 1º). A esta privatização de tarefas, tradicionalmente estatais, Pedro Gonçalves associa os resultados do processo de despublicatio, por que passam os Estados na contemporaneidade.16
 
3. SREI e ONR como alternativas tecnológicas de eficiência na realização da segurança jurídica. Síntese conclusiva.
 
É constitucionalmente legítima a opção do legislador federal quanto ao compartilhamento, em âmbito nacional, com o ONR, de tarefas tradicionalmente públicas, com vistas a fornecer eficiência ao desempenho das funções de segurança jurídica, a cargo dos oficiais de imobiliário. Especificamente, está-se a tratar do compartilhamento de alternativas e soluções tecnológicas, juridicamente condensadas sob a forma do SREI, a ser integrado pelas unidades do serviço de registro de imóveis dos Estados e do Distrito Federal, como forma de beneficiá-las indistintamente com os resultados do processo de modernização registral que o Estado brasileiro pretende implementar.
 
Encarregado de implementar e operar o SREI, destaca-se que o ONR deverá se ocupar em fornecer eficiência, às serventias destinadas ao registro imobiliário, relativamente ao acesso dos dados cartoriais de todo o País. Para tanto, não exercerá propriamente, em âmbito privado, poder regulamentar, mas poder de normalização técnica das atividades desempenhadas por essas serventias. E a extensão destes poderes, por razões de segurança jurídica, bem deverá ser delimitada quando da edição de seu estatuto pela Corregedoria Nacional do Conselho Nacional de Justiça.
 
Bem compreendida, a colaboração técnica a cargo do ONR, a ser desenvolvida por meio do SREI, em benefício da classe dos registradores imobiliários, dos seus usuários e mesmo do Poder Público, propõe-se a alcançar os seguintes escopos: (i) fornecer diretrizes tecnológicas gerais para a informatização e modernização das unidades integrantes do SREI; (ii) universalizar, mediante ferramentas tecnológicas, o acesso aos dados do SREI, a partir de canal único para solicitação eletrônica dos serviços a cargo das unidades de todo o território nacional que o integram; (iii) padronizar as formas de registro e armazenamento eletrônico de dados, bem assim o manuseio, a manutenção e o intercâmbio destes, em todas as unidades integrantes do SREI; (iv) formar banco de dados eletrônico seguro; e (v) fornecer dados estatísticos da atividade registral imobiliária brasileira.17
 
Trata-se de soluções tecnológicas, veiculadas por meio de webservice, orientadas à eficiência da atividade registral brasileira, que se revela igualmente consentânea com os arts. 41 e 42 da lei 8.935/94, bem assim com o art. 17 da lei 6.015/73, com redação dada pela lei 11.977/09, que precisamente dispõe sobre o acesso on-line de informações constantes em registros públicos, observadas as medidas de controle e segurança indicadas nos arts. 37 e 38 da lei 11.977/09.
 
Não prosperam dúvidas acerca do caráter cogente do produto da atividade de normalização técnica, acima referenciada. É que os comados tecnológicos oriundos do ONR deverão ser objeto de deliberação das serventias de registro imobiliário de todo o País, a partir dos mecanismos democratizados de representatividade previstos em seu estatuto. O modelo é de autorregulação-regulada (enforced self-regulation), ou seja, de comandos postos por uma dada classe que a eles restará mesmo submetida, em restrição voluntária da liberdade privada de seus entes, ao que se soma estatalidade, porquanto os procedimentos para tanto previstos são postos pelo próprio Estado, ademais de fiscalizados por ele.
 
No caso do ONR, em linha com a parametricidade constitucional de atribuição de competências, cumprirá ao Poder Judiciário o exame atento de sua atuação institucional. Não é outra a exegese quer do art. 236, § 1º, da CF, quer do art. 76, § 4º, da lei 13.465/17. Tudo a garantir equilíbrio entre a mencionada atividade setorial de autorregulação tecnológica e os mecanismos institucionais de controle da correção jurídica desta que sempre deverá orientar-se à realização eficiente e juridicamente segura quer da garantia constitucional individual da inviolabilidade da propriedade (CF, art. 5º, XXII), quer do direito social à moradia digna em sua multidimensionalidade (CF, art. 6º).
 
Em síntese, na condição de ente privado de colaboração estritamente técnica, inexiste espaço institucional para que o ONR se imponha como órgão centralizador da atividade registral brasileira. Neste sentir, os atos a serem praticados pelos registradores imobiliários de todo o País, mediante remuneração (lei 8.935/94, art. 28), continuarão a ser aqueles previstos, com exclusividade, pelo legislador federal (lei 8.935/94, arts. 4º, 12, 30, I, e 46 e.g.). E a prática de todos eles permanecerá sob fiscalização rigorosa do Poder Judiciário. Entendimento diverso findaria mesmo por subverter a opção constitucionalmente consignada no § 1º do art. 236 da CF e, assim, careceria de validade jurídica.
 
A implementação desses atos, a partir das medidas a cargo do ONR, apenas, dispenderá menor tempo e custos de transação, eis que uniformizadas as práticas e garantida melhor qualidade e interoperabilidade entre as unidades registrais vinculadas ao SREI. Tudo isto se reverte em ganhos legítimos de eficiência e segurança jurídica à dinâmica cartorial brasileira.
 
Não havendo espaço para dúvidas acerca da existência do ONR no bojo do ordenamento jurídico em vigor, cumpre-se dar concretude ao § 4º do art. 76 da lei 13.465/17. Eventual omissão estatal neste sentido, por mais uma vez, reverter-se-á em prejuízo para toda a sociedade. Basta-se relembrar dos efeitos nocivos do ilegal descumprimento do art. 39 da lei 11.977/09 que ainda se fazem sentir duramente no País, em prejuízo ao adimplemento eficaz de compromissos constitucionais com a segurança jurídica, assumidos pelo Estado Democrático de Direito brasileiro.
 
Rodrigo Numeriano Dubourcq Dantas é advogado, doutor em Direito pelo Departamento de Direito Econômico, Financeiro e Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo/USP, mestre em Direito do Estado, Regulação e Tributação Indutora pela Faculdade de Direito do Recife/UFPE.
 
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2 Entendimento contrário pode ser encontrado na obra de Ernst Forsthoff, segundo o qual a fórmula "Estado Democrático de Direito", do modo como aqui utilizada, buscaria hipostasiar uma dimensão parcelar e historicamente situada da adjetivação liberal do Estado de Direito, relacionado à garantia absoluta da propriedade burguesa (Contributo para uma teoria do Estado de Direito. Coimbra: Almedina, 2006, p. 197 e ss.).
 
3 O modelo de "Estado Democrático de Direito" não foi formulado e instalado, apenas, na realidade alemã. No caso brasileiro, como bem se infere da lição de Heleno Taveira Torres, a Constituição Federal de 1988 antecipa o "democrático" ao "direito" na tipologia do Estado, o que confere primazia aos direitos dos indivíduos sobre qualquer forma ou estrutura jurídica, "cujas restrições somente poderão ser admitidas no limite necessário para satisfazer ao interesse geral, preservando o conteúdo essencial dos direitos e liberdades" (TORRES, Heleno Taveira. Direito constitucional tributário e segurança jurídica – Metódica da segurança jurídica do Sistema Constitucional Tributário. São Paulo: RT, 2011. p. 127). Sobre o conceito do modelo em referência e suas variações, confira-se: SAMPAIO, José Adércio Leite. O Estado Democrático de Direito. In: HORBACH, Carlos Bastide; ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de; AMARAL JR., José Levi Mello do; LEAL, Roger Stiefelmann (coords.). Direito Constitucional, Estado de Direito e democracia. São Paulo: Quartier Latin, 2011. p. 406-411.
 
4 Cf. SANT’ANNA, Gilson Carlos. O atual regime jurídico dos serviços notariais e de registro. São Paulo, Revista de Direito Imobiliário, vol. 67, p. 70 – 82, Jul./Dez., 2009. O próprio vocábulo cartório confirma esta dimensão de historicidade. Sobre o tema, recomenda-se: JACOMINO, Sérgio. Vésperas do notariado brasileiro. Um passeio histórico às fontes medievais. São Paulo, Revista de Direito Imobiliário, vol. 53, p. 184 - 231, Jul./Dez., 2002.
 
5 Neste sentido, afirma-se que os serviços públicos não mais são confiados, com exclusividade, ao Estado. E, como elemento unificador dos vários aspectos que têm contemporaneamente assumido, bem destaca Gianna Elisa Berlingerio que todos eles se orientam à satisfação de exigências coletivas, mesmo que confiados a entes privados (BERLINGERIO, Gianna Elisa. Studi sul pubblico servizio. Milão: Giuffrè, 2003, p. 417).
 
6 No texto constitucional vigente podem ser claramente identificadas opções de descentralização administrativa, a exemplo da concessão ou permissão de serviços públicos (art. 175) e da delegação de funções tipicamente públicas, como deixa claro a opção do constituinte relativamente aos serviços notariais e registrais (art. 236, caput e § 3º).
 
7 GONÇALVES, Pedro. Entidades Privadas com Poderes Públicos. Coimbra: Almedina, 2005, p. 139.
 
8 Ilustrativamente, pode-se falar nos serviços sociais autônomos de primeiro tipo (Sistema S), igualmente concebidos pelo Estado brasileiro, sob a forma de pessoa jurídica de direito privado, orientada, porém, ao exercício de funções de interesse coletivo. São eles: o Serviço Social do Comércio (SESC), previsto no decreto-lei 9.853/46; o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC), previsto no decreto-lei 8.621/46; o Serviço Nacional da Indústria (SESI), previsto no decreto-lei 9.403/46; o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), com regimento interno aprovado pelo decreto 494/62; o Serviço Social do Transporte (SEST) e o Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte (SENAT), ambos previstos pela lei 8.706/93; o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR), previsto na lei 8.315/91; e o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE), previsto na lei 8.029/90. Cf. MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; CUNHA, Carlos Eduardo Bergamini. Serviços Sociais Autônomos. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 263, p. 142, Mai./Ago., 2013.
 
9 Não é outra a orientação do STF, verbis: "as serventias da justiça não são serviços auxiliares dos Tribunais Judiciários." (RE 42998, Rel. min. Nelson Hungria, Primeira Turma, DJ 27/10/1960.
 
10 A expressão foi retirada da obra de Diogo de Figueiredo Moreira Neto (Mutações do Direito Administrativo. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 129).
 
11 Sobre a viabilidade do intercâmbio eletrônico de atos processuais e de registro como forma de efetivação dos direitos, da segurança jurídica e da Justiça, veja-se: SCHERER, Tiago. Função jurisdicional e atividade registral: da independência à mútua colaboração. São Paulo, Revista de Direito Imobiliário, vol. 72/2012, p. 379 - 420, Jan./Jun., 2012.
 
12 Sobre o tema, recomenda-se: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 27. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 63
 
13Cf. MEIRELLES, Hely Lopes. A licitação nas entidades paraestatais. In: MEIRELLES, Hely Lopes. Estudos de Direito Público III. São Paulo: RT, 1981, p. 13.
 
14 A expressão foi tomada, por empréstimo, da obra de Pedro Gonçalves que a utiliza para designar a execução cooperada de tarefas e responsabilidades públicas com tarefas e responsabilidades privadas. Cf. GONÇALVES, Pedro. Entidades Privadas com Poderes Públicos. Coimbra: Almedina, 2005, p. 161.
 
15 A expressão foi retirada da obra de Diogo de Figueiredo Moreira Neto (Mutações do Direito Administrativo. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 205). Sobre o tema, confira-se, ademais: SOUTO, Marcos Juruena Villela. "Outras entidades públicas" e os serviços sociais autônomos. Revista de Direito do Estado. Rio de Janeiro, n. 1, p. 142, Jan./Mar., 2006.
 
16 Cf. GONÇALVES, Pedro. Entidades Privadas com Poderes Públicos. Coimbra: Almedina, 2005, p. 152 e 153.
 
17 Estas informações de ordem técnica podem ser extraídas do estudo "SREI – Sistema de Registro Eletrônico Imobiliário – Parte 1 – Introdução ao Sistema de Registro Eletrônico Imobiliário", desenvolvido pelo LSITEC – LABORATÓRIO DE SISTEMAS INTEGRÁVEIS TECNOLÓGICO, associado à Escola Politécnica da Universidade de São Paulo.
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BELLESCIZE, Ramu de. Les services publics constitutionnels. Paris: LGDJ, 2005.
 
BERLINGERIO, Gianna Elisa. Studi sul pubblico servizio. Milão: Giuffrè, 2003.
 
BIELSA, Rafael. Compendio de Derecho Administrativo. 2. ed. Buenos Aires: Depalma, 1957.
 
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 27. ed. São Paulo: Atlas, 2014.
 
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Fonte: Migalhas
 
 
 


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