Em 09/06/2017

Blockchain – return again


Trechos da entrevista sobre a tecnologia com o presidente do IRIB, Sérgio Jacomino, foram publicados pela Bites Economia Digital


A entrevista foi concedida pelo presidente do IRIB, Sérgio Jacomino, para um periódico especializado em novas tecnologias. O texto compôs matéria que figurou em boletim privado, que é distribuído somente para seus assinantes.

A reportagem que versou sobre o blockchain foi publicada pela Bites Economia Digitalnewsletter com edição semanal e com três atualizações diárias. Confira a entrevista, na íntegra e sem edições. O IRIB agradece à jornalista Ângela Pimenta a autorização para divulgação.

1.      Como podemos explicar o que é blockchain para um público ainda não familiarizado com o termo?

Não se explicam muitas coisas com as quais estamos nos habituando no dia a dia, especialmente na área das novas tecnologias. Por exemplo, não é necessário compreender como funcionam as etiquetas que nos permitem ultrapassar os pedágios sem parar ou como somos autenticados na navegação da internet, ou como assinamos com um certificado digital. Basta que funcionem. A IoT está se insinuando nas atividades humanas e não é necessário que se compreenda exatamente o seu background tecnológico. São mecanismos que operam de modo transparente ao homem comum do povo. O BC é um instrumento que estará na base de muitas transações, com os atributos e garantias que a comunidade científica reputa fiáveis.

2.      Quais são as oportunidades de negócio e afins que o blockchain oferece?

O livro de Don Taspscott et al. (BLOCKCHAIN REVOLUTION: How the Technology Behind Bitcoin is Changing Money, Business, and the World. p. 7 – ISBN-13: 978-1101980132) há um rol bastante impressivo, não exaustivo, de atividades que poderão ser baseadas na tecnologia do BC. Segundo os autores, esta nova tecnologia pode ser utilizada para “registrar virtualmente qualquer coisa de valor e importância para a humanidade”. Na sua opinião, o cenário que se desdobra é imenso e pode criar ambiente favorável para o florescimento de novos negócios – alguns que nem podemos hoje antever. Nesse sentido, o BC pode vir a ser uma tecnologia disruptiva e logicamente uma oportunidade de novas negócios.

3.      Quais seriam os gargalos para sua implantação no Brasil, inclusive os regulatórios?

Tudo dependerá da área em que essa ferramenta poderá ser utilizada. Pode servir de suporte para atividades de caráter estritamente privado e aí não há quaisquer obstáculos regulatórios ou fiscalizatórios. Outras requererão o atendimento de requisitos de compliance com instâncias regulatórias e de fiscalização – como é o caso dos bancos e dos cartórios. No exemplo dos famosos smart contracts, nem mesmo as referências legais são claras. Quais serão, neste caso, os obstáculos? Em muitos casos, law is code e tollitur quaestio!

4.      Qual seria o timing para sua adoção no Brasil – parece que até o Serpro, do governo federal, está estudando seu uso? São Paulo deve ser a primeira cidade no país a adotar essa tecnologia?

Essa tecnologia já vem sendo experimentada em várias startups e eu não vejo razões pelas quais o blockchain não possa ser plenamente utilizado nos dias que correm. Já é um clássico no suporte das transações de criptomoeda (bitcoin). Tenho a impressão, todavia, de que o blockchain ainda é, para muitos, um “estado de espírito”, um hype, não uma realidade concreta em vários setores da economia digital. Que se tornará útil é esperável, mas o processo de assimilação e concretização em iniciativas do governo federal, p. ex., ainda levará um certo tempo. Temos uma excelente resposta para perguntas que ainda não foram bem formuladas.

5.      Durante um recente evento da Febraban, analistas disseram que o setor mais apropriado para o início da adoção de blockchain no Brasil seria o registro de imóveis. Confere? Por quê?

Aqui precisamos aprofundar um pouco? Há dois grandes modelos de organização dos sistemas de registro de imóveis que se distinguem mundo afora desde o século XIX. De um lado, os chamados registros de documentos, que são meros depósitos de títulos (documentos, contratos, papeis) firmados pelas partes contratantes, conhecidos como modelo francês. Uma compra e venda de imóveis, por exemplo, é recepcionada e o contrato arquivado no cartório. Essas inscrições cartoriais provam a existência do documento, data de seu registro, mas não atribuem o direito de propriedade e por essa razão os Registros são reputados menos eficientes e muito mais custosos. Eventual controvérsia ou litígio exigirá a intervenção judicial ex post e todos sabemos os custos inerentes a uma judicialização de uma controvérsia.

De outro lado existem os chamados registros de direitos, que ocorrem na Alemanha, Suíça, Espanha, Áustria, Portugal, UK e Brasil. Nesses sistemas o depósito do documento é desnecessário, representa um elemento secundário, acessório. O fundamental, nesses sistemas, é a atribuição do direito de propriedade por atuação direta do jurista encarregado de realizar o registro. Nas várias etapas de registro, ocorre um juízo de admissibilidade do pedido de registro a cargo de um jurista e, com o seu deferimento, nasce o direito de propriedade. O mais importante nos Registros de Direitos é a análise jurídica de cada caso, evitando, de partida, o ingresso de títulos que possam redundar em controvérsias e litígios posteriores, diminuindo, dessa maneira, os custos com a definição de direitos.

O núcleo da atividade registral no Brasil não é arquivístico; o que a singulariza é a atividade desempenhada pelo registrador que sanciona o ingresso do título no sistema registral, conferindo o direito aos contratantes. ?O direito nasce com o registro; não há direito?s? de propriedade sem um prévio exame de legalidade, de conformidade com o próprio sistema registral e com o ordenamento jurídico. O mecanismo de transubstanciação de direitos, que se opera com a registração, é uma atividade cognitiva. Até que a máquina substitua juízes, advogados e registradores, a base medular do sistema não será afetada pela tecnologia do BC.

Voltando agora especificamente à sua pergunta, a adoção do blockchain é percebida como elemento acessório, eventualmente uma ferramenta de apoio na promoção de autenticação da sucessão de atos praticados, mas nunca de molde a substituir o homem na atividade basal da chamada qualificação registral (como é chamada a atuação jurídica do registrador). Nos países em que se adotou o blockchain no Registro de Imóveis a sua aplicação é meramente acessória e coadjuvante (Suécia, Geórgia). Para um aprofundamento da matéria, sugiro a leitura da revista por nós editada que se acha aqui: https://goo.gl/FaJv07 [IPRA-CINDER International Review].

6.      No caso do setor imobiliário, há leis específicas. Para a implantação de blockchain nessa área, seria necessária uma nova legislação?

Não houve necessidade de lei autorizando a substituição da manuscrição pela máquina de escrever, nem regulamentação específica para utilização de carimbos no século 19. Nem mesmo para a adoção de processos computacionais nos 70 foi necessário um novo marco regulatório. O processo de registro se moderniza naturalmente com o avanço de novas tecnologias, pois o elemento central do sistema continua sendo a atuação pessoal do registrador. Essa é uma típica atividade humana, a cargo de um jurista. A adoção do blockchain como mero elemento acessório de autenticação dos atos praticados não depende de alteração do quadro normativo e regulatório. Será tão importante como a adoção de processos contingenciais, como backups. Entretanto, a substituição dos livros tradicionais por suportes inteiramente eletrônicos (livro eletrônico) isso sim dependerá de uma mudança do marco legal e regulatório. Aliás, o primeiro passo foi dado pela Lei 11.977, de 2009 (v. artigos 37 e seguintes). O Registro de Imóveis brasileiro está, neste exato momento, experimentando uma transição rumo aos meios eletrônicos, abandonando o modelo descentralizado e atomizado por uma infraestrutura “molecularizada”. Esse é o fator mais relevante na modernização dos processos de registração em apoio às transações imobiliárias. No fundo estamos lidando com maior segurança jurídica nas transações, o que se traduz por menores custos transacionais, transparência e agilidade.

7.      Há uma estimativa de quanto taxas cartoriais para escritura pública e de tabelionato para registro costumam custar do valor total de um imóvel em São Paulo, por exemplo? E há ideia de quanto dinheiro cartórios e tabelionatos movimentam só em São Paulo?

O relatório Doing Business do Banco Mundial (aqui: https://goo.gl/QOcSlx) posiciona o Brasil muito bem num ranking comparativo entre os países da América Latina e Caribe e da OCDE. Aqui os custos de titulação e de registro são menores. O importante a ser ressaltado é que o processo de consagração dos direitos imobiliários no Brasil revela custos menores em comparação com outros países. Portanto, é uma narrativa fake afirmar que a titulação e o registro (atribuição dos direitos) são processos caros. Outro aspecto importante a ser ressaltado é o custo marginal representado por tributos em cascata que aderem aos preços de titulação e de registro. Isso faz com que os valores envolvidos numa transação imobiliária saltem além das órbitas estritamente necessárias, encarecendo toda a cadeia produtiva.

SÉRGIO JACOMINO. Registrador em São Paulo, Capital. Doutor em Direito Civil pela UNESP. Especialista em Direito Registral pela Universidade de Córdoba, Espanha. Membro honorário do Centro de Estudos Notariais e de Registro da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Presidente do IRIB – Instituto de Registro Imobiliário do Brasil. Presidente da ABDRI – Academia Brasileira de Direito Registral Imobiliário.

 



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