Em 04/08/2020

Artigo – ConJur - RJET: A questão dos condomínios edílicos/Parte 2 – Por Alexandre G. N. Liquidato


Em continuação à análise do veto presidencial ao art. 11 da Lei n.º 14.010/20 iniciada na coluna Direito Civil Atual de 06/07/2020, neste passo, enfrenta-se a questão relativa à extensão dos poderes que se dariam aos síndicos sobre as áreas privativas


Para tanto, há de se evocar a moderna lição de Otavio Luis Rodrigues Junior e Jefferson Carús Guedes1:

Sobre essa diferenciação e aquilo a que "o dono do apartamento pode", é necessário consultar a legislação atual, especialmente o art. 1.331 do CC/2002, que, em seu caput, afirma ser lícito, nas edificações, existir partes que são propriedade exclusiva e partes que são propriedade comum dos condôminos. Os parágrafos do art. 1.331, considerando-se as lições de Pontes de Miranda, estabelecem: (a) a comunhão no terreno (fração ideal no solo - § 3.° do art. 1.331 do CC/2002) e nas partes indivisas do edifício e mais dependências (§2.° do art 1.331 do CC/2002); (b) não comunhão nas partes pro diviso (§1.º do art. 1.331 do CC/2002). Em conformidade com a legislação vigente, ter-se-iam:

a) Partes susceptíveis de propriedade exclusiva por uma pessoa (ou em condomínio geral, por mais de uma pessoa): apartamentos, escritórios, salas, lojas e sobrelojas, com as respectivas frações ideais no solo e nas outras partes comuns.

b) Partes de utilização comum: solo, a estrutura do prédio, o telhado, a rede geral de distribuição de água, esgoto, gás e eletricidade, a calefação e refrigeração centrais, e as demais partes comuns, inclusive o acesso ao logradouro público. O terraço de cobertura é parte comum, salvo disposição contrária da escritura de constituição do condomínio.

Como bem observaram os autores acima, é indispensável compulsar a legislação atual, atentando, particularmente, para a redação que a Lei n.º 12.607/122 deu ao §1º do art. 1.331 do Código Civil. Isso porque essa norma – atinente às partes de utilização exclusiva – consagra o poder de disposição do condômino, de tal sorte que possam ser “alienadas e gravadas livremente por seus proprietários, exceto os abrigos para veículos, que não poderão ser alienados ou alugados a pessoas estranhas ao condomínio, salvo autorização expressa na convenção...”.

Retome-se agora a redação da norma projetada no inciso II ao art. 11. Além do que está previsto no art. 1348, compete ao síndico: “restringir ou proibir a realização de reuniões e festividades e o uso dos abrigos de veículos por terceiros, inclusive nas áreas de propriedade exclusiva dos condôminos, como medida provisoriamente necessária para evitar a propagação do coronavírus (Covid-19), vedada qualquer restrição ao uso exclusivo pelos condôminos e pelo possuidor direto de cada unidade”.

A interpretação gramatical do inciso II ao art. 11, não dá espaço para dúvidas. Esclareça-se: a oração “inclusive nas áreas de propriedade exclusiva dos condôminos” é uma forma apositiva de explicar aquela que a antecede no que toca ao “uso dos abrigos de veículos por terceiros”. Trata-se de análise sintática pura e simples.

Mais que isso, a palavra “inclusive” é denotativa de inserção, pois acrescenta uma explicação em relação ao que já foi escrito. Aliás, a leitura das partes finais dos incisos I (“respeitado o acesso à propriedade exclusiva dos condôminos”) e II (“vedada qualquer restrição ao uso exclusivo pelos condôminos e pelo possuidor direto de cada unidade”) indicam claramente que não há diminuição alguma dos poderes que proprietários ou possuidores diretos têm sobre as unidades autônomas. Ao contrário: o legislador preservava-as.

Portanto, a sacralidade do direito real não foi profanada pela letra da lei, tal como havia sido aprovada pelo Congresso Nacional. No máximo, podia-se conceber uma limitação temporária ao poder de disposição do condômino – conforme haja previsão na convenção e segundo a discricionariedade do síndico –, para fins de locação ou comodato em favor de terceiros, sobre o abrigo de veículos3 que seja objeto de sua propriedade exclusiva.

Isso não é algo estranho à natureza das relações condominiais em edifícios. Como ensinam Maluf-Marques4: “morar em apartamento requer uma grande tolerância em relação aos vizinhos e importa uma limitação ao direito de propriedade”. Suspendia-se, temporariamente, a legitimação do condômino para a celebração desses contratos com pessoas estranhas à relação condominial durante a pandemia por uma questão de saúde pública. Isso estava em perfeito alinhamento com a norma contida no § 1º do art. 1331 do Código Civil.

Como é amplamente sabido, o síndico é “o administrador da situação jurídica condominial5”, em outras palavras, é órgão executivo do condomínio6 e tem poderes de administração fixados no rol taxativo dos nove incisos ao art. 1348 e estes podem ser regulamentados pela convenção7, ou ainda pela assembleia.

É verdade que o RJET dava novos poderes de polícia8 ao síndico enquanto houvesse pandemia, mas, de qualquer modo, uma leitura mais abrangente (em sentido amplíssimo) dos arts. 1277 a 1279 do Código Civil, tornava perfeitamente aceitável – em caráter transitório – o aumento desses poderes, em consonância com a medida sanitária, afinal o síndico há de zelar pelos interesses comuns dos condôminos, inclusive no que toca ao sossego e à saúde.

Além disso, a interpretação teleológica do art. 11 do PL 1179/20 não implica modificação ou diminuição do conjunto de poderes que integra o direito de propriedade. Isso é evidente à medida que o caput do art. 1º e o art. 2º do Projeto de Lei cuidam da instituição de normas legais emergenciais, transitórias e desprovidas de eficácia revogadora ou alteradora.

O legislador apenas ampliou os poderes discricionários do síndico para que se adotem práticas compatíveis com a desaceleração do contágio pelo Coronavírus enquanto durar a pandemia. Esse é o único fim da norma. As razões do veto são infundadas e decorrem, como quer parecer, de uma leitura desatenta do texto aprovado pelo Legislativo.

Com grande sabedoria o Prof. João Batista Lopes9 qualifica o condomínio edilício como “verdadeira sementeira de discórdias” e no regime transitório e emergencial não seria diferente. Deve-se reconhecer, a título de conclusão, que é absolutamente natural o RJET ter críticos e adversários. Arrisca-se até a ousadia de se dizer que isso é saudável, notadamente quando essas críticas deitam raízes em argumentos tecnicamente sólidos, o que não é o caso do veto ao art. 11, pelos motivos acima aludidos.

Insista-se: a “intenção do legislador é conter a propagação do Coronavírus10” e não reformar os institutos da propriedade e dos condomínios edilícios, muito menos cercar-se de meias-verdades para selecionar um ideário político discrepante do Código Civil e da Constituição Federal. Urge, portanto, derrubar-se o veto presidencial.

Acesse a parte 1 do artigo aqui.

Fonte: Consultor Jurídico

 



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