Em 07/05/2018

Artigo - Abandono de imóveis urbanos e a responsabilidade dos municípios – por Talden Farias


Lamentavelmente, não são incomuns os casos de imóveis abandonados dentro da realidade urbana brasileira. Há sim na maioria das cidades de porte grande e médio, e agora até nas menores, um número determinado de casas e prédios entregues à própria sorte, sem receber nenhum tipo de atenção ou de manutenção por parte do proprietário ou responsável.


Lamentavelmente, não são incomuns os casos de imóveis abandonados dentro da realidade urbana brasileira. Há sim na maioria das cidades de porte grande e médio, e agora até nas menores, um número determinado de casas e prédios entregues à própria sorte, sem receber nenhum tipo de atenção ou de manutenção por parte do proprietário ou responsável.
 
Isso pode se dar por diversos motivos, sendo os mais corriqueiros a incerteza fundiária, o descuido intencional ou a mera desídia. Na primeira situação normalmente existe conflito entre herdeiros e/ou eventuais compradores, de maneira que a titularidade ou a gestão do bem se encontra indefinida; na segunda o proprietário; na segunda o proprietário de um imóvel restrito por tombamento ou cláusula de doação tenta ocasionar a sua demolição por meio de omissões continuadas, pois o terreno nu representa maior valor de negócio; e a terceira é o abandono por mera falta de interesse ou mesmo irresponsabilidade.
 
Independente de motivação, o fato é que tais bens não cumprem a sua função social, uma vez que o abandono resulta em problemas de ordem ecológica, estética, sanitária e de segurança. Com efeito, um imóvel em descaso é abrigo para marginais das mais variadas espécies, centro para consumo de drogas e vetor de disseminação de doenças – isso para não falar no acúmulo de sujeira e na poluição visual gerados, dentre outros problemas.
 
Além do mais, como são em regra regiões já dotadas de infraestrutura, contando com escolas, energia, hospital, saneamento básico e transporte público, o prejuízo ao erário é evidente visto que o Poder Público acaba sendo obrigado a equipar outras áreas que não precisariam estar ocupadas ainda.
 
É sabido que a Constituição da República de 1988 alçou a função social da propriedade ao patamar de direito fundamental e de princípio da ordem econômica, haja vista o que dispõe o inciso XXIII do art. 5º e o inciso III do art. 170, respectivamente[1]. Ademais, ao tratar da política urbana, o § 2º do art. 182 dispôs sobre a função social como pressuposto do direito à cidade e do cumprimento das funções sociais desta[2].
 
Como não poderia deixar de ser, o Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001), ao regulamentar os arts. 182 e 183 da Lei Fundamental, e o novo Código Civil (Lei 10.406/2002), editado em seguida, também dispuseram sobre o assunto, respectivamente, nos seus arts. 39 e 1.228[3].
 
Foi para fazer frente a essa problemática que o essa lei dispôs sobre o instituto da arrecadação de bens, que consiste na perda da propriedade imobiliária em razão do abandono, conforme dispõe o art. 1.275[4]. A norma civil estabeleceu o seguinte a respeito do assunto:
 
Art. 1.276. O imóvel urbano que o proprietário abandonar, com a intenção de não mais o conservar em seu patrimônio, e que se não encontrar na posse de outrem, poderá ser arrecadado, como bem vago, e passar, três anos depois, à propriedade do Município ou à do Distrito Federal, se se achar nas respectivas circunscrições.
 
§ 1º. O imóvel situado na zona rural, abandonado nas mesmas circunstâncias, poderá ser arrecadado, como bem vago, e passar, três anos depois, à propriedade da União, onde quer que ele se localize.
 
§ 2º. Presumir-se-á de modo absoluto a intenção a que se refere este artigo, quando, cessados os atos de posse, deixar o proprietário de satisfazer os ônus fiscais.
 
Posteriormente, a Medida Provisória 759/2016 também dispôs sobre o assunto, tendo a mesma sido recentemente convertida na Lei 13.465/2017:
 
Art. 64. Os imóveis urbanos privados abandonados cujos proprietários não possuam a intenção de conservá-los em seu patrimônio ficam sujeitos à arrecadação pelo Município ou pelo Distrito Federal na condição de bem vago. (...)
 
A arrecadação de bens é um procedimento administrativo que deve ser levado à frente pela própria Administração Pública municipal, já que este ente é o responsável pela execução da política urbana, nos termos do art. 182 da Lei Fundamental[5]. Isso implica dizer que esse instrumento deve concorrer para a efetivação das funções sociais da cidade, a exemplo do direito à mobilidade urbana, à moradia e ao saneamento básico, em consonância com o que estabelece o Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001)[6].
 
É claro que no contexto específico brasileiro, em razão da enorme desigualdade social e do imenso déficit habitacional, o direito à moradia digna acaba se sobressaindo de maneira bem mais acentuada. Daí a caracterização do instituto como instrumento de política urbana, e mais especificamente como instrumento auxiliar de política habitacional:
 
Art. 15. Poderão ser empregados, no âmbito da Reurb, sem prejuízo de outros que se apresentem adequados, os seguintes institutos jurídicos:  (...)
IV - a arrecadação de bem vago, nos termos do art. 1.276 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil);
 
Art. 65. Os imóveis arrecadados pelos Municípios ou pelo Distrito Federal poderão ser destinados aos programas habitacionais, à prestação de serviços públicos, ao fomento da Reurb-S ou serão objeto de concessão de direito real de uso a entidades civis que comprovadamente tenham fins filantrópicos, assistenciais, educativos, esportivos ou outros, no interesse do Município ou do Distrito Federal.
 
Cuida-se de um procedimento administrativo por excelência, de forma que a autorização judicial não se faz necessária. O primeiro passo é a provocação inicial, que pode partir da própria prefeitura, do Ministério Público ou de qualquer pessoa física ou jurídica, já que a matéria urbanística é constituída por normas de ordem pública[7]. Em seguida, há que se formalizar a constatação dos requisitos materiais, o que consiste no estado de abandono do bem urbano com os consequentes prejuízos à vizinhança e à coletividade.
 
Somente então deve ser expedido o auto declaratório de abandono do bem, o que normalmente fica a cargo do setor patrimonial da prefeitura. Após os três anos de abertura do procedimento e mantida a situação que a ele deu origem deverá ser expedido o auto de arrecadação final. O procedimento geral está previsto no art. 64 da Lei 13.465/2017:
 
§ 1º. A intenção referida no caput deste artigo será presumida quando o proprietário, cessados os atos de posse sobre o imóvel, não adimplir os ônus fiscais instituídos sobre a propriedade predial e territorial urbana, por cinco anos.
 
§ 2º. O procedimento de arrecadação de imóveis urbanos abandonados obedecerá ao disposto em ato do Poder Executivo municipal ou distrital e observará, no mínimo:
I - abertura de processo administrativo para tratar da arrecadação;
II - comprovação do tempo de abandono e de inadimplência fiscal;
III - notificação ao titular do domínio para, querendo, apresentar impugnação no prazo de trinta dias, contado da data de recebimento da notificação.
 
§ 3º. A ausência de manifestação do titular do domínio será interpretada como concordância com a arrecadação.
 
§ 4º. Respeitado o procedimento de arrecadação, o Município poderá realizar, diretamente ou por meio de terceiros, os investimentos necessários para que o imóvel urbano arrecadado atinja prontamente os objetivos sociais a que se destina.
 
§ 5º. Na hipótese de o proprietário reivindicar a posse do imóvel declarado abandonado, no transcorrer do triênio a que alude o art. 1.276 da Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), fica assegurado ao Poder Executivo municipal ou distrital o direito ao ressarcimento prévio, e em valor atualizado, de todas as despesas em que eventualmente houver incorrido, inclusive tributárias, em razão do exercício da posse provisória.
 
É evidente que o direito ao contraditório e ao devido processo legal tem de ser respeitado, uma vez que a propriedade é um direito fundamental. Como a natureza jurídica da arrecadação de bens é de processo administrativo, não é possível deixar de observar as garantias processuais das partes interessadas.
 
À Municipalidade não é dado decidir se procede ou não à arrecadação de bens, pois se trata de ato vinculado se constatado o efetivo abandono do bem urbano. Isso implica dizer que o gestor omisso poderá ser responsabilizado, podendo inclusive responder a ação de improbidade administrativa.
 
É que a arrecadação de bens é mais um instrumento de promoção do direito à cidade, aqui entendido como a garantia de acesso includente e equitativo ao espaço e à infraestrutura urbana[8]. Em vista disso, por se tratar de um direito fundamental, não é possível abrir mão do cumprimento das funções sociais da cidade.
 
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[1] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…) XXII - é garantido o direito de propriedade; XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] II - propriedade privada; III - função social da propriedade;"
[2] Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes. § 1º O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana. § 2º A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.
[3] Art. 39. A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas, respeitadas as diretrizes previstas no art. 2º desta Lei. Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha. § 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas. (...).
[4] Art. 1.275. Além das causas consideradas neste Código, perde-se a propriedade: I - por alienação; II - pela renúncia; III - por abandono; IV - por perecimento da coisa; V - por desapropriação. Parágrafo único. Nos casos dos incisos I e II, os efeitos da perda da propriedade imóvel serão subordinados ao registro do título transmissivo ou do ato renunciativo no Registro de Imóveis.
[5] Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes. (…). Art. 30. Compete aos Municípios: (…) VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano (…).
[6] Art. 2o. A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais: I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações; (…).
[7] Art. 1o Na execução da política urbana, de que tratam os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, será aplicado o previsto nesta Lei. Parágrafo único. Para todos os efeitos, esta Lei, denominada Estatuto da Cidade, estabelece normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental.
[8] O marco de surgimento do debate sobre o direito à cidade foi o lançamento do livro “Droit à la ville” pelo filósofo francês Henri Lefebvre no ano de 1968. A partir daí a discussão sobre os direitos ao e no espaço urbano começou a ganhar corpo em vários ramos do conhecimento científico, além da Geografia e do Urbanismo, a exemplo da Antropologia, do Direito, da Filosofia, da Sociologia etc.
 
Talden Farias é advogado e professor da UFPB, mestre em Ciências Jurídicas (UFPB), doutor em Recursos Naturais (UFCG) e em Direito da Cidade (Uerj). Autor de publicações nas áreas de Direito Ambiental e Minerário.
 
Fonte: Conjur
 


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