Sumário



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Revista do Direito Imobiliário n.º 56
Jan/Jun de 2004
 
COLABORADORES
 
APRESENTAÇÃO

 
1. DOUTRINA NACIONAL
 
1.1 Concessão de uso especial para fins de moradia – BENEDITO SILVÉRIO RIBEIRO
 
1.2 Direito de preempção e política urbana – J. MIGUEL LOBATO GÓMEZ
 
1.3 A trajetória do título no registro de imóveis: considerações gerais – LUIZ EGON RICHTER
 
1.4 Sobre a função social do registrador de imóveis – RICARDO DIP
 
2. XXX ENCONTRO DOS OFICIAIS DE REGISTRO DE IMÓVEIS DO BRASIL
 
2.1 Intercâmbio de informações entre o Incra e os serviços notariais e registrais – ANDREA F. T. CARNEIRO
 
2.2 O pacto comissório na compra e venda de imóveis e o novo Código Civil – EDUARDO PACHECO RIBEIRO DE SOUZA e MARCELO BRAUNE
 
2.3 A constitucionalidade de leis que estabelecem gratuidade ou redução de emolumentos cartorários – HERCULES ALEXANDRE DA COSTA BENÍCIO
 
2.4 Propriedade e função social – PAULO FERREIRA DA CUNHA
 
2.5 O estatuto profissional do notário e do registrador – RICARDO DIP
 
3. DOUTRINA INTERNACIONAL
 
3.1 Organização do registro da propriedade em países em desenvolvimento – BENITO ARRUÑADA
 
4. II ENCONTRO IBERO-AMERICANO DE DIREITO REGISTRAL
 
4.1 Crédito imobiliário no Brasil e execuções hipotecárias – CARLOS EDUARDO DUARTE FLEURY
 
4.2 Sobre a qualificação de títulos judiciais no Brasil – FLAUZILINO ARAÚJO DOS SANTOS
 
4.3 Algumas considerações sobre a função registral no processo civil e a prelação no processo executivo – SÉRGIO JACOMINO
 
4.4 Títulos judiciais e o registro de imóveis – VENÍCIO ANTONIO DE PAULA SALLES
 
4.5 Conclusões do II Encontro Ibero-Americano sobre Relações entre o Registro da Propriedade e os Tribunais de Justiça
 
5. CONSULTAS E PARECERES
 
5.1 Inconstitucionalidade da cobrança de ISS sobre serviços de registros públicos, cartorários e notariais (LC 116, de 31.07.2003) –  ROQUE ANTONIO CARRAZZA
 
5.2 A necessidade de lei para a criação de cartórios extrajudiciais – HERCULES ALEXANDRE DA COSTA BENÍCIO
 
5.3 Política nacional de regularização fundiária: contexto, propostas e limites – EDÉSIO FERNANDES
 
6. JURISPRUDÊNCIA
 
Seleção e organização SÉRGIO JACOMINO
 
6.1 Superior Tribunal de Justiça
 
6.1.1 Registro de imóveis. Matrícula. Bem público. Desafetação. Permuta –RO em MS 12.958-SP – 3.ª T. – STJ – Min. CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO
 
6.1.2 Loteamento. Parcelamento do solo. Casas populares. Regularização. Valores urbanísticos e ecológicos (arts. 2.º a 17). Registro imobiliário (art.18) – Lei 6.766/79 – Precedentes do STJ – REsp 227.655-SP – 2.ª T. – STJ – Min. FRANCISCO PEÇANHA MARTINS
 
6.1.3 Ação anulatória de escritura pública cumulada com cancelamento de registro imobiliário. Compromisso de compra e venda não registrado – REsp 235.288-SP – 3.ª T. – STJ – Min. ANTÔNIO DE PÁDUA RIBEIRO
 
6.1.4 Compromisso de venda e compra. Anuência em escritura definitiva de venda e compra a ser celebrada com terceiro. Possibilidade jurídica do pedido. Legitimidade ativa ad causam. Direito de arrependimento. Não pactuação. Execução do contrato já iniciada. Compromisso de compra e venda. Registro. Desnecessidade. Ação. Direito real imobiliário. Cônjuge. Citação. Litisconsórcio passivo necessário. Escritura definitiva a ser celebrada por terceiro. Mera aposição de anuência do réu. Desnecessidade de citação do cônjuge – REsp 424.543-ES – 3. ª T. – STJ – rela. Ministra NANCY ANDRIGHI
 
6.1.5 Bem de família. Nomeação à penhora pelo próprio devedor. Ilegitimidade do credor hipotecário para argüir a impenhorabilidade do referido bem. Recurso desprovido – REsp 440.974-PR – 1.ª T. – STJ – Min. JOSÉ DELGADO
 
6.1.6 Desapropriação. Domínio e posse. Retificação de registro. Abertura de nova matrícula. Impossibilidade quanto à área de posse. Exegese do art. 213, § 2.º , da Lei 6.015/73 ( Lei de Registros Públicos). Alegativa de afronta aos arts. 2.º, 29 e 34 do Dec.-lei 3.365/41. Ausência de prequestionamento. Inexistência de ofensa ao art. 535, II, do CPC. Divergência demonstrada. Recurso especial conhecido e desprovido – REsp 493.800-RS – 1.ª T. – STJ – Min. JOSÉ DELGADO
 
6.1.7 Desapropriação. Indenização. Obra realizada por terceira pessoa em área desapropriada. Benfeitoria. Não-caracterização. Propriedade. Solo e subsolo. Distinção. Águas subterrâneas. Titularidade. Evolução legislativa. Bem público de uso comum de titularidade dos Estados membros. Código de Águas – Lei 9.433/97. CF, arts. 176, 176 e 26, I – REsp 518.744-RN – 1.ª  T. – STJ – Min. LUIZ FUX
 
6.2 Jurisprudência notarial e registral
 
Seleção e organização ADEMAR FIORANELLI
 
6.2.1 Conselho Superior da Magistratura de São Paulo
 
6.2.1.1 Hipoteca. Fração ideal. Condomínio. Extinção. Credor hipotecário. Anuência. Garantia real – ApCív 06-6/0 – Conselho Superior da Magistratura de São Paulo – Corregedor-Geral da Justiça LUIZ TÂMBARA
 
6.2.1.2 Instrumento particular. SFH. Cessão de crédito. Natureza da Emgea – ApCív 08-6/9– Conselho Superior da Magistratura de São Paulo – Corregedor-Geral da Justiça LUIZ TÂMBARA
 
6.2.1.3 Penhora no rosto dos autos. Intimação do cônjuge. Continuidade. Inventário – ApCív 65-6/8 – Conselho Superior da Magistratura de São Paulo – Corregedor-Geral da Justiça LUIZ TÂMBARA
 
6.2.1.4 Parcelamentos sucessivos. Registro especial. Preservação urbanística – ApCív 76-6/8 – Conselho Superior da Magistratura de São Paulo – Corregedor-Geral da Justiça LUIZ TÂMBARA
 
6.2.1.5 Promessa de dação em pagamento. Compromisso de compra e venda. Obrigação. Extinção. Legalidade – ApCív 84-6/4 – Conselho Superior da Magistratura de São Paulo –Corregedor-Geral da Justiça LUIZ TÂMBARA
 
6.2.1.6 Incorporação. Domínio. Área indígena – ApCív 87-6/8 – Conselho Superior da Magistratura – Corregedor-Geral da Justiça LUIZ TÂMBARA
 
6.2.1.7 Formal de partilha. Meação. Espólio. Doação. Usufruto vitalício. ITCMD – ApCív 82.885-0/8 – Conselho Superior da Magistratura de São Paulo – Corregedor-Geral da Justiça LUIZ TÂMBARA
 
6.2.1.8 Condomínio especial. Loteamento. Parcelamento irregular. Edícula. Unidades autônomas. Qualificação registrária. Legalidade. Moralidade. Chácaras de recreio – ApCív 100.767-0/9 – Conselho Superior da Magistratura de São Paulo – Corregedor-Geral da Justiça LUIZ TÂMBARA
 
6.2.2 1.ª Vara de Registros Públicos de São Paulo
 
6.2.2.1 Matrícula. Fusão. Imissão. Posse. Registro. Favelas. Regularização fundiária. Propriedade. Função social. Plano diretor. Parcelamento do solo urbano de interesse social. Bens públicos. Afetação e desafetação. Posse pública. Apossamento administrativo. Arruamento. Desapropriação indireta – Processo 000.03.044447-0 – 1.ª Vara de Registros Públicos de São Paulo – Juiz de Direito VENÍCIO ANTONIO DE PAULA SALLES
 
6.2.2.2 Execução fiscal. Penhora. Arresto. Custas e emolumentos. Cônjuge. Intimação. Fraude à execução – Processo 000.03.049678-0 – 1.ª Vara de Registros Públicos de São Paulo – Juiz de Direito VENÍCIO ANTONIO DE PAULA SALLES
 
6.2.2.3 Despesas condominiais. Responsabilidade. Execução condominial. Penhora. Registro. Obrigações propter rem – Processo 000.03.149297-5 – 1.ª Vara de Registros Públicos de São Paulo – Juiz de Direito VENÍCIO ANTONIO DE PAULA SALLES
 
6.2.2.4 Incorporação imobiliária. Escritura. Compra. Venda. Financiamento. Alienação fiduciária. Certificados de recebíveis imobiliários. CRI. Anuência. Hipoteca. Consumidor. Cédula de crédito imobiliário. Consulta do registrador. Corregedor permanente. Contrato de gaveta – Processo 000.03.152901-1 – 1.ª Vara de Registros Públicos de São Paulo – Juiz de Direito VENÍCIO ANTONIO DE PAULA SALLES
 
7. GEORREFERENCIAMENTO DE IMÓVEIS RURAIS (APLICAÇÃO DA LEI 10.267/2001 E DEC. 4.449/2002)
 
7.1 Corregedoria-Geral de Justiça do Mato Grosso do Sul
 
7.1.1 Imóvel rural. Especialidade. Averbação de georreferenciamento – Processo 2004/1.03.114/0002 – Corregedoria-Geral de Justiça do Mato Grosso do Sul – Corregedor-Geral de Justiça Des. ATAPOÃ DA COSTA FELIZ
 
7.2 Corregedoria-Geral da Justiça de São Paulo
 
7.2.1 Parecer 1/2004-E da CGJSP, de 23.12.2003 – MARCELO FORTES BARBOSA FILHO
 
7.2.2 Parecer 94/04-E da CGJSP, de 25.03.2004 – FÁTIMA VILAS BOAS CRUZ e JOSÉ ANTONIO DE PAULA SANTOS NETO
 
7.2.3 Aprovação dos pareceres pelo Des. José Mário Antonio Cardinale
 
7.2.4 Provimento CG 09/2004
 
7.3 Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
 
7.3.1 Instrução Normativa 12, de 17.11.2003 – Fixa roteiro para a troca de informações entre o INCRA e os Serviços de Registro de Imóveis, nos termos da Lei 10.267/2001, regulamentada pelo Decreto 4.449/2002
 
7.3.2 Instrução Normativa 13, de 17.11.2003 – Estabelece fluxo a ser observado pelas Superintendências Regionais do INCRA, com vistas à certificação e atualização cadastral, de que trata a Lei 10.267/2001, regulamentada pelo Decreto 4.449/2002
 
7.3.3 Portaria 1.101, de 19.11.2003
 
7.3.4 Portaria 1.102, de 19.11.2003
 
7.3.5 Resolução 9, de 17.11.2003
 
7.3.6 Resolução 10, de 17.11.2003
 
7.3.7 Resolução 11, de 17.11.2003
 
7.3.8 Resolução 12, de 17.11.2003
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COLABORADORES
 
ANDREA F. T. CARNEIRO
Engenheira Cartógrafa. Mestre em Ciências Geodésicas. Doutora em Engenharia de Produção. Docente e Pesquisadora na área de Cadastro Imobiliário do Departamento de Engenharia Cartográfica da Universidade Federal de Pernambuco.
 
BENEDITO SILVÉRIO RIBEIRO
Juiz do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo.
 
BENITO ARRUÑADA
Catedrático em organização de empresas pela Universidad Pompeu Fabra (Trías Fargas, Barcelona).
 
CARLOS EDUARDO DUARTE FLEURY
Superintendente Geral da Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança – Abecip.
 
EDÉSIO FERNANDES
Jurista e urbanista. Mestre e Doutor em Direito. Professor da Universidade de Londres. Foi coordenador do Programa nacional de apoio à regularização fundiária sustentável, do Ministério das Cidades, em 2003.
 
EDUARDO PACHECO RIBEIRO DE SOUZA
Titular do Serviço Registral e Notarial do 2.º Ofício de Teresópolis – RJ.
 
FLAUZILINO ARAÚJO DOS SANTOS
1.º Registrador de Imóveis de São Paulo – Capital.
 
HERCULES ALEXANDRE DA COSTA BENÍCIO
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Titular do 3.º Ofício de Registro Civil, Títulos e Documentos do Distrito Federal. Ex-Procurador da Fazenda Nacional.
 
J. MIGUEL LOBATO GÓMEZ
Professor Titular de Direito Civil da Universidade de León (Espanha). Professor Visitante na Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
 
LUIZ EGON RICHTER
Registrador Substituto do Registro de Imóveis de Lajeado-RS. Professor de Registro de Imóveis da Faculdade de Direito de Santa Maria – Fadisma e do Colégio Registral do Rio Grande do Sul e de Registros Públicos e Direito Administrativo da Universidade de Santa Cruz do Sul – Unisc.
 
MARCELO BRAUNE
Titular do Serviço Registral e Notarial do 1.º Ofício de Nova Friburgo – RJ.
 
PAULO FERREIRA DA CUNHA
Professor Catedrático e Director do Instituto Jurídico Interdisciplinar da Faculdade de Direito da Universidade do Porto.
 
RICARDO DIP
Juiz do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo. Professor convidado da Pós-Graduação (doutoramento) na Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Buenos Aires. Membro fundador do Instituto Jurídico Interdisciplinar da Faculdade de Direito da Universidade do Porto (Portugal). Acadêmico de honra da Real Academia de Jurisprudencia y Legislación de Madrid. Membro da Academia de Ciências Políticas e Sociais Oikos de Anápolis. Membro Titular da Academia Paulista de Direito. Membro do Conselho Científico da Revista de Filosofia Práctica (Buenos Aires).
 
ROQUE ANTONIO CARRAZZA
Professor Titular da Cadeira de Direito Tributário da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Consultor Tributário.
 
SÉRGIO JACOMINO
Registrador Imobiliário. Presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil.
 
VENÍCIO ANTONIO DE PAULA SALLES
Especialista em Direito Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Sub-Coordenador do Curso de Especialização latu sensu em Direito Público pela Escola Paulista da Magistratura.
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APRESENTAÇÃO
 
O fortalecimento do registro.
A quem interessa?
 
Ainda há pouco, dando curso a um ininterrupto diálogo que ultrapassa o Atlântico, alcançando o Prof. Edésio Fernandes na sua cátedra londrina, sustentei a importância do registro imobiliário brasileiro em temas tão sensíveis como o são os direitos sociais e a segurança da posse.
 
Dizia ao grande especialista em direito urbanístico que o enforcement do sistema registral não pode significar, não quer significar, simplesmente, “empoderamento” dos cartórios, como um fim que esgotasse em si mesmo todas as virtudes que representa o encarecimento dessa instituição. Recuperando um discurso francamente preconceituoso: não colima o fortalecimento “dessa casta privilegiada que sobrevive às custas de prebendas”, como afirmou importante figura pública há bem pouco tempo. Mesmo por que, dizia eu (estribado em pesquisa que merece fé), a esmagadora maioria dos cartórios é muito modesta, economicamente falando.
 
O fato é que o Registro Predial Brasileiro está diante de um enorme desafio: vencer as abissais diferenças que marcam os cidadãos titulados e a esmagadora maioria da população que vive à míngua e à margem do mercado formal, ocupando precariamente áreas públicas e privadas, carentes dos benefícios que o registro imobiliário pode proporcionar à sociedade como um todo.
 
No caso específico dessa parcela significativa da população que vive em áreas públicas ocupadas – e que agora tem, como se verá num dos artigos publicados nesta edição, direitos subjetivos à concessão especial para fins de moradia –, mais do que garantir o fato da posse, devemos conceber um sistema que proporcione instrumentos jurídicos para que essa posse se qualifique e robusteça com a assinalação de direitos em um título. E que esse título atinja o registro, para daí irradiar-se para a sociedade, com as conseqüências jurídicas de um direito. Que a tutela pública dessa posse acarrete uma inflexão das instituições públicas (entre as mais importantes nesse caso, o próprio registro) para garantia efetiva do cidadão menos favorecido, normalmente marginalizado do processo econômico e social, carente das garantias que o sistema de registro pode oferecer.
 
A segurança da posse representa uma faceta pouco considerada nos debates técnicos e jurídicos – cuja garantia aparece como uma das preocupações mais agudas dos que refletem a efetividade dos direitos sociais. Sem descurar dos titulares inscritos, a posse precisa alcançar meios efetivos para blindar-se adequadamente. Não só, e exclusivamente, com a força do fato ostensivo do gozo da posse, mas principalmente com a força dos direitos. A posse é fato, exercício ostensivo de atributos inerentes ao domínio. A posse-fato está anelando conformar-se em direitos no mundo do direito. Por que não garantir o acesso dos cidadãos a esses direitos? Por que não pensar em garantir a publicidade desses direitos? Por que razão estamos renitentes em conceber o relacionamento dos sujeitos com as coisas corpóreas tão-somente mediatizados pela idéia galvanizante desse direito arquetípico que é a propriedade? O Estatuto da Cidade nos obriga a essas reflexões.
 
Cedo ou tarde compreenderemos que a própria idéia de domínio absoluto cederá passo a uma idéia plural desse direito. Falar-se-á em propriedades. Retomando: antes da recomposição completa do domínio, nada impede que essa pletora de direitos parcelares possa figurar nos registros. Exemplo muito concreto é a faculdade concedida pela lei (§§ 3.º, 4.º e 5.º do art. 26 da Lei 6.766/1979, com a nova redação que lhes deu a Lei 9.785/1999).
 
Voltando ao registro, não custa reprisar um pensamento que é um belo lugar comum: assim como se pode perfeitamente compreender e aceitar que os interesses sociais não se confundem com os estatais, igualmente se pode construir a idéia de que os interesses do sistema registral não se imiscuem com os estritos dos registradores. Muito embora o desejável, em ambos os casos, fosse uma aproximação, um ajustamento, de molde a constituir um círculo virtuoso com que as instituições pudessem estar a serviço pleno da sociedade.
 
Seja imbricado no tecido estatal, seja um serviço delegado, é preciso conhecer as virtudes e os defeitos do sistema, fazendo adrede abstração dos seus modelos organizativos, que hoje não respondem a mais do que um mero retraço da sua larga história institucional. Afinal, o que importa é a eficácia dos sistemas registrais na consagração dos direitos e na segurança jurídica estática e dinâmica.
 
No caso do Brasil, o registro está onde está há 158 anos. O mesmo padrão de delegação de serviço público ao particular, inspirado pelas grandes vagas liberais do século XIX, ainda hoje rende benefícios, justificado, embora, presentemente, por outras razões políticas e econômicas.
 
Insistentemente se vêem propostas de estatização dos registros. Não parece razoável favorecer uma captura, nessa quadra da história política brasileira, dos registros públicos pela Administração. Em seus aspectos negativos, o poder político enxerga, na distribuição de lotes, legais ou ilegais, formais ou informais, públicos ou privados, um componente apreciável no cômputo geral de seus dividendos políticos. Seria a farra dominial. Tampouco devem essas instituições registrais ser deixadas ao léu da disputa da livre concorrência, como já seriamente se propôs entre nós, mitigando, ao limite, as barreiras que se antepõem pelo escrutínio registral às demandas variegadas de inscrição. A dinâmica e a estática jurídicas devem estar sob o manto de um rígido arcabouço formal, que impeça a instrumentalização política de uma instituição que, no limite, é tutela pública de interesses privados.
 
Em matéria de cidadania, e especialmente no que respeita aos direitos patrimoniais disponíveis, não podemos ficar na dependência do administrador ou do político, ainda que esclarecido, dando-se ensanchas à possibilidade de esventrar-se o âmago de interesses juridicamente tutelados, que devem estar fortificados. Por essa razão simplíssima se afirma que o registrador deve obter do sistema legal a necessária independência jurídica que se exercitará, inclusive, em face do próprio Estado.
 
Nesse contexto, enxergo o registro como instância da sociedade civil, instituição que recebe uma delegação diretamente do Estado, para defesa dos seus direitos; conceda-se (numa linguagem que parece modelar as intenções do século): para defesa da cidadania. O registro obtém essa confirmação pela modulação social – digamos que seja o crisma estatal – já que a atividade é uma nítida necessidade social que se projeta irresistivelmente para o reconhecimento de seus contornos, já pré-definidos, pela sucessiva ordem jurídica estatal. Pode-se pensar numa resistência civil aos excessos confiscatórios de Leviatã, como se pode pensar, igualmente, e com boas razões, numa adscrição da propriedade a um interesse social que legitimamente se instaure, com claro balizamento jurídico e legal.
 
Nesse sentido, o registro acolhe e acomoda, instrumento que é, os lados aparentemente contraditórios do fenômeno dominial, flagrando as faces de Jano na estática e dinâmica desse terribile diritto. Aí se justifica falar em função social do registro. É na consumação desses direitos, que se concretizam historicamente, que flagramos o registro em sua essencialidade.
 
Esse desafio não é de somenos para o tumultuado transcurso de reformas e contra-reformas institucionais de uma sociedade que insiste na construção de suas instituições sociais, políticas e jurídicas. Os registradores são tributários de uma larga tradição, que é multissecular, e que se filia diretamente (no caso brasileiro) aos notários, remontando a Justiniano, com uma antevisão espantosamente nítida já nas Novellae, no século VI, no bojo das reformas protobizantinas.
 
Retrocedendo aos primórdios da civilização, encontrar-se-ão, nitidamente delineados, os contornos do registro em expressivas reminiscências da antiga cultura sumeriana, projetando-se ao antigo Egito e Grécia, para alcançar o império oriental já robustecido. O seu percurso pode ser claramente rastreado na cristandade medieval, chegando até nós com um sentido social e econômico que já não pode ser negligenciado. Desde sempre, os registros – pode se dizer assim – são instituições “sociais”, preexistentes ao Estado, e que se confirmam mesmo para além dele, quando não pode alcançar certas comunidades segregadas e marginalizadas, com seus modos homólogos de registro e de notas que sobrevivem como uma espécie atávica recursiva. Os contratos de gaveta dormitam na imobiliária controlada pelo tráfico tanto quanto nos confortáveis escritórios especializados em tornar opacas as relações jurídico-patrimoniais, sem perder, cautelosamente, o liame que mantém a segurança que sempre se espera de um título.
 
Pois esta edição traz o registro para o centro dessas discussões. Função social da propriedade, função social do registro, função social do registrador; organização do registro em países em desenvolvimento, Estatuto da Cidade e seus instrumentos, regularização fundiária (urbana e rural) e a participação de registradores brasileiros em fóruns internacionais são temas eleitos e que dão o tom desta publicação. Ver-se-á que o ofício registral imobiliário pátrio, que tantos serviços prestou à sociedade brasileira na última centúria, é chamado, uma vez mais, a dar sua contribuição essencial para a clarificação e difusão das situações jurídicas, colhendo os fenômenos sociais e econômicos, proporcionando segurança e previsibilidade.
 
A nossa Revista de Direito Imobiliário sempre foi um índice expressivo das mudanças do sistema registral, aqui e no exterior. Um lanço retrospectivo já é possível nesses quase trinta anos de jornada. Foi possível acompanhar e favorecer o aperfeiçoamento dos instrumentos criados para a garantia da segurança jurídica. Mas é chegado o tempo de mudar. E mudar, para nós, significa avançar firme e decididamente, com os olhos postos na tradição, contudo. O diálogo entre as sucessivas gerações que confirmaram o registro será mantido, e a ele serão agregados novos interlocutores.
 
A revista transforma-se neste número, regenera-se sincronicamente com a renovação dos principais atores jurídicos – falo especificamente da nouvelle vague dos registradores concursados, mas atento igualmente às mudanças legislativas cujo índice mais expressivo é justamente o Estatuto da Cidade. Com essa transformação – que não é meramente morfológica –, a revista retoma firmemente sua proposta original: servir de fórum qualificado de debates e estudos, agora granjeando, para o âmbito da comunidade de estudiosos do direito registral, novos atores jurídicos e pensadores com os quais o registro haverá de dialogar – especificamente especialistas em direito urbanístico, social, ambiental, agrário, economia, sociologia, filosofia... além, é claro, do perene direito privado.
 
Renovam-se também os conselhos editorial, científico e jurídico, aos quais se agregam o conselho internacional, com nomes de expressão.
 
Enfim, estamos prontos para retomar a longa jornada. Que possamos trilhar nossa senda em muito boa companhia!
 
Do sobrado paulistano, inverno de 2004.
 
Sérgio Jacomino
Presidente