Em 02/01/2019

Artigo - A ciência de dados e a inteligência artificial no Direito em 2018 - Parte I – Por Alexandre Zavaglia Coelho


Na última década, tive a oportunidade de participar de congressos, publicações, projetos e cursos sobre as relações entre o direito e tecnologia. Inclusive, de muitos eventos que trataram não só do reflexo da tecnologia no dia a dia da sociedade e, consequentemente, no direito (direito digital), mas principalmente sobre o seu uso para aprimorar a prestação de serviços jurídicos.


Na última década, tive a oportunidade de participar de congressos, publicações, projetos e cursos sobre as relações entre o direito e tecnologia. Inclusive, de muitos eventos que trataram não só do reflexo da tecnologia no dia a dia da sociedade e, consequentemente, no direito (direito digital), mas principalmente sobre o seu uso para aprimorar a prestação de serviços jurídicos [1].
 
O uso efetivo de ferramentas tecnológicas na área do Direito, ao longo de boa parte desse período, foi basicamente do pacote de editor de textos, de apresentações, e com algum destaque para as planilhas que começavam a tratar os dados praticamente “na mão”. E pude conhecer bons escritórios que já conseguiam sair das médias para política de acordo e provisão do passivo judicial individualizados, ao utilizar planilhas gigantescas alimentadas por profissionais e seus estagiários que, por sua vez, buscavam esses dados incompletos e despadronizados em milhares de processos físicos (primeiro xerox, depois câmera digital, escaner de mão, e assim por diante).
 
E nessa última década também acompanhei a inserção de tecnologia em alguns escritórios de advocacia e em diversos departamentos jurídicos, especialmente no setor da educação, quando os sistemas de classificação de processos e contratos trouxeram nova dimensão para a gestão. E a mudança de cultura se acentuou a partir do instante em que os tribunais lançaram pesquisas digitais de jurisprudência e os recortes de publicação dos atos processuais, que antes recebíamos pelo correio, passaram a ser automatizados e enviados por email — em um movimento que sempre contou com o pioneirismo da Associação dos Advogados de São Paulo (Aasp).
 
Se o tom é de retrospectiva, então é bom lembrar que não faz tanto tempo assim desde que saímos da máquina de escrever para esse ambiente digital, e isso trouxe a insegurança natural de períodos de transformação e o aprimoramento constante na forma de prestar serviços na nossa área.
 
Mas foi no ano de 2016 que esse cenário realmente começou a acelerar. E isso não tem a ver só com a área do Direito, mas com todos os setores da ciência e da economia.
 
Com o custo mais baixo de armazenamento e a capacidade de processamento de dados, de forma integrada com a queda de barreiras para a criação de inovação — com startups nascendo a cada minuto, criou-se esse ambiente totalmente digitalizado e que está proporcionando o uso de técnicas de ciência de dados para o tratamento dessa massa.
 
Acrescente-se a isso, ainda, a (a) produção intensa de conteúdo pelos nossos dispositivos (tablets, celulares, entre outros) e (b) a internet, com seu “espaço” para o acesso a esse repositório e, ao mesmo tempo, para o estudo de nossos padrões de comportamento.
 
Tudo isso junto, está democratizando o acesso à informação e promovendo a desintermediação entre pessoas, bens e serviços.
 
E as técnicas de inteligência artificial, criadas nos anos 1950, encontraram o ambiente ideal para concretizar sua potencialidade, tanto para a organização dos dados não estruturados (voz, imagens e textos) como para correlações e sugestões voltadas para a criação de cenários de risco e para a tomada de decisão. E essas soluções melhoram constantemente de acordo com a interação com os seres humanos (machine learning) e com a análise de padrões de grande quantidade de dados (big data + deep learning), de modo que esses últimos 2 a 3 anos são tão ou mais relevantes, para o avanço desse tipo de tecnologia, como os últimos 50.
 
E assim começaram os buscadores, as redes sociais, os streamings de vídeo e de música, até que essas inovações fossem utilizadas nos demais setores da economia. Mas é preciso constatar que o que conhecemos como inteligência artificial, até esse momento, se limita a definição de padrões a partir da análise de muitos dados e necessita da interação constante com os usuários e com quem tem experiência e entende de cada assunto.
 
Acompanhando de perto esse fenômeno, foi em 2016 que realmente vivenciei os primeiros trabalhos de ciência de dados na área do Direito, e que estavam efetivamente utilizando algumas dessas novas técnicas. Foi incrível poder compreender melhor como era possível “treinar” o robô (software) em uma determinada quantidade de processos, para que “ele” pudesse “ler” outros “sozinho”, e nos “trazer” as informações corretas e depois classificá-las.
 
São várias técnicas para isso acontecer, mas, para simplificar, funciona como se alguém tivesse que pintar o que definimos como entidades em milhares de sentenças, “explicando” para a máquina por meio de diferentes cores o que são partes, CPF, endereço, decisão, etc.
 
Vamos imaginar que escolhemos que “decisão” será azul claro: então um advogado indica em milhares de documentos a decisão (julgo improcedente, nego procedência, indefiro o pedido, etc.), ao destacar essa parte com um espécie de marca texto azul claro. O software então “entende” todas as formas de decidir, os padrões de linguagem, e “consegue” buscar em um novo set de dados essa entidade para nos “dizer” onde estão e quais são as decisões.
 
Essa é uma das técnicas de inteligência artificial, chamada processamento de linguagem natural, que funciona em conjunto com a aprendizagem de máquina e ultrapassa o modelo de buscador de palavras para levar em consideração a semântica, o contexto, o sentido da frase. E o robô, obviamente, não “entende” a decisão, mas consegue classificar o que é uma decisão, se ela é igual ou parecida com outras e quantas são procedentes ou improcedentes.
 
E o que fazer com essas informações depende da interpretação, que é e continuará sendo do ser humano.
 
Assim, tudo o que existe de mais avançado na área de tecnologia aplicada ao contencioso, até agora, não são soluções que criam decisões ou petições a partir da inteligência de máquinas, mas sim softwares que melhoram a pesquisa jurídica, que identificam, enriquecem e classificam os processos, sua causa raiz (fato gerador) e o resultado (decisão), para a tomada de decisão do advogado, do juiz, do promotor.
Mas é lógico que nada é tão simples assim, e achar as partes é muito mais fácil do que achar a decisão, e correlacionar a decisão com um fato ou uma doutrina é certamente ainda mais difícil. E nada está pronto como a maioria das pessoas imagina. Na verdade estamos longe disso.
 
Além disso, para fazer petições repetitivas normalmente nem se utiliza IA, mas na maioria das vezes apenas soluções de automação baseadas em uma árvore de problemas.
 
A questão, portanto, está forma como isso será utilizado, e é preciso discutir os limites éticos para essa utilização [2].
 
Dessa forma, o desafio principal deve ser outro: compreender os problemas da sociedade, das organizações e os individuais a partir da análise profunda dos temas de maior relevância, obviamente que com o respeito a regulação e a conformidade com as normas de proteção de dados. E validar as informações não só em uma amostragem de processos, mas poder estudar todos os casos já julgados sobre o assunto. Sendo assim, uma das principais aplicações dessas novas ferramentas é a busca por evidências que colaborem com a solução dos principais problemas sociais, mas que também auxilie na sistematização do direito como ciência.
 
Em todos os trabalhos que tive o privilégio de participar, o enfoque foi sempre a organização dos dados para trazer mais assertividade para a tomada de decisão, e em nenhum aspecto a substituição ou a decisão pela máquina. Mas já falaremos melhor sobre isso.
 
Juntando o tempo dedicado à gestão jurídica e o lado acadêmico de professor, de pesquisador, fiquei tão empolgado com tudo isso, a ponto de decidir que seguiria cada vez mais por esse caminho, aprendendo e fazendo. Primeiro porque muito além das manchetes sensacionalistas, existe uma oportunidade de trabalho gigantesca para os profissionais do direito no desenvolvimento dessas ferramentas; e depois porque aprendi logo cedo que para a sua utilização depende muito de metodologia de pesquisa, de lógica e de tecnologia jurídica.
Ou seja, não funciona sem as pessoas, especialmente as pessoas daquela área específica e que têm experiência em cada tipo de problema. No nosso caso, problemas jurídicos.
 
E comecei a participar de forma crescente como consultor dos primeiros projetos no distante segundo semestre de 2016, funcionando como uma espécie de tradutor entre a tecnologia e os profissionais do direito.
 
Naquela altura, comecei a perceber que eram realmente poucos os que conheciam em profundidade o potencial dessas soluções, e menos ainda os que sabiam como utilizá-las. Nas reuniões, inclusive, a maioria das pessoas se mostravam céticas em relação a possibilidade de um software (robôs) “ler” documentos jurídicos para organizar as informações.
 
Como um dos aprendizados das reuniões sobre os projetos de pesquisa, identificamos a necessidade de uma formação específica para essas demandas, e que os cursos sobre direito e tecnologia estavam mais ligados até esse momento aos reflexos da tecnologia no dia a dia (Direito Digital). Não existiam cursos focados na utilização dessas novas tecnologia para a prestação de serviços jurídicos e sobre como organizar dados para essa finalidade.
 
E, após essas análises, lançamos no final daquele ano o primeiro Curso de Ciência de Dados aplicada ao Direito, com turma prevista para o primeiro semestre de 2017. Isso demonstra o quanto acreditamos (e aprendemos na prática) que nada disso funcionam sem as pessoas.
Existe uma necessidade de formação contínua dos profissionais que já estão no mercado para essas novas habilidades e competências, tanto no setor público como privado.
 
Pelo pioneirismo da iniciativa e o crescimento da repercussão desses temas na área, logo em janeiro de 2017 foi publicada uma reportagem sobre inteligência artificial no direito, pela revista Exame [3], que entre outras informações mencionou o lançamento do Curso e ajudou a gerar uma grande demanda para a primeira turma. Naquela reportagem, saiu a seguinte fala: “a carreira de analista e estrategista de dados deve ganhar muita relevância no meio jurídico, diz (...) o coordenador do curso”.
 
No fundo, achei que boa parte das pessoas já começavam a entender melhor o potencial dessas aplicações na nossa área. Mas, logo no mês de abril seguinte, em uma publicação especializada, li o parágrafo de um texto que comentava essa reportagem da Exame, especificamente a frase acima, dizendo: “seja lá o que for um estrategista de dados jurídicos, os advogados não serão substituídos” [4]. Achei legal a repercussão dessa pauta e com a segunda parte concordo plenamente, está claro; mas a primeira parte demonstrou mais uma vez, no longínquo abril do ano passado, que pouca gente ainda conhecia o tema!
 
Agora muito se fala de ciência de dados para jurimetria, automação de documentos, plataformas de acordo, mas no ano passado ainda era apenas: “seja lá o que for” isso…
 
No segundo semestre de 2017 foram muitos eventos e textos publicados, mesmo que ainda com alguns conceitos e temas que se confundiam, bem como a grande quantidade de manchetes que destacavam a substituição dos profissionais pela tecnologia, sem mostrar o que realmente estava sendo feito. Mas foi um período importante de divulgação desses assuntos.
 
A criação da AB2L – Associação Brasileira das Lawtechs e Legaltechs, em meados de agosto, foi certamente um dos grandes marcos dessas discussões, pois deu visibilidade aos macrotemas e como cada empresa estava direcionando suas pesquisas para determinados assuntos/problemas (automação de documentos, plataformas de acordos e de correspondentes, analytics, monitoramento de dados públicos, entre outros). E o Radar da AB2L [5] criou o mapa das startups e empresas tradicionais que estão se adaptando a essas novas necessidades do mercado: automação e geração de valor e insights a partir dos dados. Sem contar o importante papel institucional de conformidade e respeito às prerrogativas profissionais, tratando a tecnologia como complemento e suporte a essas atividades.
 
E começamos a perceber que a jurimetria (estudar as tendências da jurisprudência), assunto que ficou conhecido mais rápido, é fantástico por si só, mas apenas uma das possibilidades da ciência de dados aplicada ao Direito.
 
A automação de documentos, da mesma forma, nada mais é do que a classificação das cláusulas e a criação de uma árvore de problemas. Mas tanto a análise sobre quais cláusulas utilizar em cada caso, como gerir a ferramenta para saber quantos contratos foram feitos, quais cláusulas são mais usadas, quais ocasionaram discussões judiciais ou falta de cumprimento para o seu aprimoramento, são outros exemplos do que a ciência de dados pode nos proporcionar.
 
Da mesma maneira, usar uma plataforma de acordo é fácil e intuitivo, mas o bacana é saber depois de um tempo de utilização qual o padrão dos acordos, a abordagem ideal para cada tipo de caso, entre outras estratégias. Portanto, por trás de toda essa tecnologia estão os dados e a maneira como tratamos esse conteúdo, para melhorar a tomada de decisões e gerar resultados mensuráveis.
 
E os debates e publicações foram clareando as diferenças entre direito digital (como reflexo do uso da tecnologia no dia a dia e, assim, nos vários ramos do direito), automação e ciência de dados [6].
 
O maior exemplo de automação é o processo digital, que além de organizar as informações pela digitalização, cria a cadência e a sequência de atos por meio de um workflow. Na grande maioria das vezes, não são utilizadas técnicas de inteligência artificial na automação (o que acaba virando uma espécie de mito urbano que se aplica a tudo o que nos parece avançado).
 
Mais importante do que entender a diferença, é aprender que nesse ambiente digitalizado (pela automação) é que são gerados os dados, que podem ser utilizados para entender melhor os problemas sociais e como solucioná-los. É aí que entra a ciência de dados, que pode usar desde uma planilha de excel para essas atividades até as técnicas mais avançadas de computação cognitiva, uma vez que a tecnologia é só a ferramenta. As possibilidades estão na cabeça do profissional e na sua tecnologia jurídica, que com o apoio de um time multidisciplinar definem em conjunto o design para cada solução.
 
E como o fogo pode ser utilizado para aquecer no frio ou para auxiliar a prática de um crime, essas novas soluções também podem ser utilizadas para vender contratos prontos direto para os consumidores, sem a presença de advogados (afrontando os limites éticos profissionais), mas por outro enfoque podem permitir que um escritório de advocacia passe meses organizando os contratos, cláusulas e suas possibilidades, fazendo com que cada documento automatizado seja o resultado do conteúdo e do trabalho dos próprios advogados. A questão não está na tecnologia, mas sobre como e para que são criadas essas aplicações.
 
Outra característica, é que essas ferramentas inovadoras servem para organizar informações e atividades repetitivas ou que demonstrem determinando padrão (seja pelo uso de IA ou não), e precisam de desenvolvimento contínuo. Desse modo, serão sempre menos utilizadas para questões sui generes ou que requeiram análises mais subjetivas ou de provas específicas ligadas a determinado fato, até em função da impermanência e das sempre mutantes dinâmicas sociais.
 
[1] Um texto muito relevante para entender essa diferença entre reflexos da tecnologia no direito e uso da tecnologia na prestação de serviços jurídicos é o do Juliano Maranhão, disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-dez-09/juliano-maranhao-pesquisa-inteligencia-artificial-direito-pais.
[2] Zavaglia Coelho, Alexandre. A e?tica e o uso de computac?a?o cognitiva (robo?s) na a?rea do direito. Revista Direito e Novas Tecnologias – RDTec, Editora Revista dos Tribunais – RT, edição de dezembro de 2.018.
[3] Edição impressa de 20/01/2017, disponível em: https://exame.abril.com.br/revista-exame/deixa-que-o-robo-resolve/
[4] Disponível em: https://www.jota.info/?pagename=paywall&redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/advocacia-artificial-meu-caro-watson-01042017
[5] www.ab2l.com.br/radar
[6] O artigo “7 tendências do uso de inteligência artificial no direito em 2018”, também discute esses conceitos e temas. Disponível em https://www.thomsonreuters.com.br/pt/juridico/legal-one/biblioteca-de-conteudo-juridico/as-7-tendencias-da-inteligencia-artificial-no-direito.html
 
Alexandre Zavaglia Coelho é advogado especializado em direito e tecnologia, coordenador do Curso de Ciência de dados aplicada ao Direito e VP de Educação da Future Law, um dos coordenadores da RDTEC – Revista Direito e as Novas Tecnologias da RT – Revista dos Tribunais.
 
Fonte: Conjur
 


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