Doação Modal
José Mello Junqueira
1. Submete-nos, à apreciação, o registrador Sérgio Jacomino questão que reputa deva ser reexaminada, ainda que em suscitação de dúvida, de ser possível a imposição de cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade incomunicabilidade sobre imóvel adquirido com dinheiro doado por terceira pessoa, interveniente-doadora, que comparece no mesmo ato da compra e venda, impondo aquelas condições ao donatário. Em outras palavras, qualifica-se modal a doação de pecúnia em que se impõem cláusulas restritivas na aquisição onerosa de bem imóvel?
O tema já mereceu diversas decisões divergentes, prevalecendo, em parte da doutrina, sua admissão.
Como bem ponderou, no entanto, o ilustre Registrador e, para tanto, oferecendo excelentes considerações e fundamentos, o negócio em apreço não se pode caracterizar como doação modal, patenteando-se nulidade na imposição daquelas cláusulas.
Senão, vejamos.
2. Doação modal é aquela que traz consigo um encargo, consistente numa prestação que se impõe ao donatário, em favor do próprio doador, de terceira pessoa ou no interesse geral.
Constitui-se o encargo, ou modus, em um ônus a que o doador sujeita o donatário, obrigações impostas, em benefício do doador, de terceiro ou em benefício do interesse geral.
Kohler, citado por Clóvis Bevilacqua, define o encargo “uma obrigação que se impõe ao donatário, em conexão com a liberalidade, e que imposta em correspondente limitação da mesma liberalidade” (apud. Código Civil, vo. 4. p. 283, 10ª ed. Francisco Alves).
Na doação modal é necessária a conexão acima lembrada. Num só momento há que vir unidas – a liberalidade e a obrigação imposta.
Como adverte Agostinho Alvim, “se a restrição, ou a obrigação for imposta no mesmo ato da liberalidade, haverá associação entre esta, de um lado, e a restrição ou obrigação, de outro lado. E isto basta para a existência do encargo” (Da Doação, Ed. R.T., 1963, p. 224).
No modus ou encargo, necessário, para sua completude, a conexão, associação, liame entre a doação e a obrigação.
Isto é essencial, tanto que, conclue Agostinho Alvim, “se a restrição, ou a obrigação for imposta em ato posterior, não haverá associação alguma, e sim dissociação, e conseqüentemente não haverá acessoriedade; por isso mesmo, encargo não existirá, ainda que se lhe dê esse nome. Haverá negócios autônomos” (op. cit. p. 224).
3. Passemos ao exame das cláusulas restritivas, especialmente de inalienabilidade, que envolve a impenhorabilidade e incomunicabilidade, para que, associadas à doação em pecúnia, se oportunize ou não sua incidência na aquisição do bem pelo donatário.
Constitui ela disposição imposta pelo autor de uma liberalidade, determinando que o beneficiário não pode dispor da coisa recebida, de sorte que o domínio que o beneficiário recebe é um domínio limitado, pois, embora tenha ele a prerrogativa de usar, gozar e reivindicar a coisa, lhe falta o direito de dela dispor. (SILVIO RODRIGUES, Direito Civil, Sucessões, 20ª ed., p. 132).
ALVARO VILLAÇA AZEVEDO define-a como “imposição, pelo proprietário de um bem, da impossibilidade de sua transferência patrimonial por parte de quem o adquire, quer no interesse daquele, quer no do adquirente, quer no de terceiros” (Enciclopédia Saraiva, vol. 15, p. 48).
Trata-se, segundo mesmo autor, de uma indisponibilidade real, gravame ou ônus real (op. cit. p. 50).
Essa cláusula somente pode ser imposta no âmbito das liberalidades, o que se deduz da redação do artigo 1676 do Código Civil de 1916 (imposta aos bens pelos testadores e doadores).
Conclui disso Clóvis que ela não aparece nos negócios onerosos, porque importaria inalienabilidade por determinação do adquirente, o que repugnaria a razão jurídica (op. cit. v. 6 p. 104).
Essas cláusulas gravativas, como bem definiu Pontes de Miranda, citando Regelsberger, não contêm encargo ou modus. Não há nelas um dever, mas sim restrição de poder (op. cit. tomo LVI, p. 303).
As cláusulas restritivas, que se pretendem gravar o imóvel, devem incidir sobre o próprio bem a ser doado, como bem ensinou Aubry et Rau: “la defense d’aliener ne pourrait pas avoir pour objet d’autres bièns que les bièns donnés” (citação apud op. 227.817).
4. Posta a matéria e caracterizada a natureza jurídica da cláusula de inalienabilidade, definindo o alcance do encargo, conclue-se inadmissível a inserção daquelas no negócio jurídico ora em comento.
As cláusulas restritivas se qualificam, segundo PONTES DE MIRANDA como limitação de poder. E AGOSTINHO ALVIM assume idêntico posicionamento, afirmando não constituírem um encargo, pois não são impostas em benefício do doador, nem de terceiro, nem da coletividade, sendo estas as três hipóteses da lei (Código Civil de 1916, art. 1180) (op. cit. p. 239).
Ainda que se considere a inalienabilidade e suas variações como ônus real, ainda assim não estamos diante de uma obrigação. Além do que, tal restrição só favorece o próprio gratificado. Neste ponto é categórica a conclusão de Pontes de Miranda: “não há modus se o interesse no cumprimento é exclusivamente do donatário” (Sérgio Jacomino, trabalho apresentado).
Inarredável, pois, a conclusão de que inexiste doação modal no exemplo aqui enfocado.
5. Conforme já acentuado, falta, ainda, a conexão necessária entre os negócios da doação, aquisição do bem e encargo.
No exemplo aqui objeto de estudos instrumentalizaram-se dois distintos negócios: doação do numerário, aquisição do bem imóvel, com cláusula restritiva.
A imposição do encargo caberia ao doador, sobre o bem que está doando, requisito caracterizador da própria cláusula restritiva, conforme acentuado ao defini-la.
Daí porque impossível a vinculação dessa cláusula ao bem adquirido; quando muito, incidiria sobre o dinheiro doado, com a obrigação de se adquirir um imóvel.
Não importa, sendo despiciendo, tenha a doação da pecúnia e aquisição do imóvel sido documentadas em um mesmo instrumento.
Persiste a desconexão, por serem atos distintos.
Como bem afirma Sérgio Jacomino, a conexão que existe entre o ato de liberalidade e a obrigação se aperfeiçoa, no máximo, na aquisição do bem imóvel. Esse o encargo. Aqui a doação modal. E só.
O doador não pode impor as cláusulas sobre imóvel que não está dispondo em doação ou testamento e, ainda, sobre bem alheio.
Muito menos tal restrição seria imposta pelo adquirente do imóvel ou pelo vendedor, sabido que ela não aparece nos negócios onerosos.
6. A obrigação de cumprir um encargo na doação, nos termos do artigo 1180 do Código Civil, somente existirá se for a benefício do doador, de terceiros ou do interesse geral.
Nenhuma dessas hipóteses ocorre no caso em exame, onde o benefício visa favorecer o próprio donatário.
E pelo argumento de exclusão, AGOSTINHO ALVIM conclui que neste último caso não lhe assiste obrigação de sujeitar-se ao que foi imposto. Há, nessa hipótese, mero conselho ou recomendação (op. cit. p. 236).
Nem se diga que o benefício alcançaria terceiros, a prole do donatário. Isto seria efeito, apenas, nunca encargo, porque tal benefício não é o fim querido pelo doador, mas conseqüência (op. cit. p. 240).
Persiste o favorecimento do próprio donatário.
7. Tratando-se de cláusulas restritivas que colocam obstáculos à livre circulação dos bens, não se pode olvidar a regra de que nesses casos, o intérprete deve se ater aos estritos termos da lei, não a dilargando por ficções ou interpretações extensivas.
Não se trata de excesso de formalismo, mas sim adequação aos negócios formulados e seus efeitos.
8. Ainda que assim pensemos, em sintonia com o ilustre registrador Sérgio Jacomino, não podemos olvidar forte corrente jurisprudencial em sentido oposto, bem como colocações judiciosas de cultos registradores deste Estado, dando legalidade ao ato de registro envolvendo tais negócios, com respaldo em decisões normativas.
Assim enfileiram-se os ensinamentos respeitáveis de Ademar Fioranelli, Elvino Silva Filho, Afrânio de Carvalho e Álvaro Villaça Azevedo, este último admitindo a imposição dessas cláusulas, inclusive, nos negócios onerosos.
* José de Mello Junqueira é desembargador aposentado e Conselheiro Jurídico do Irib. OAB/SP nº 18.789
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