Alienação fiduciária – dezoito anos de existência
Artigo do registrador de imóveis aposentado e acadêmico da Academia Brasileira de Direito Registral (ABDRI) Ulysses da Silva
Tendo sido chamado a opinar sobre a interpretação correta de alguns dispositivos da Lei 9.514, de 20 de novembro de 1997, tive a oportunidade de dizer, na ocasião, que, no cumprimento dela, sempre foi, e continua sendo, necessário relevar os seus defeitos.
Infelizmente, essa lei, mesmo com as alterações introduzidas pela Medida Provisória 2.223, de 4 de setembro de 2001, incorporadas pela Lei 10.931, de 2 de agosto de 2004, continua provocando polêmicas depois de mais de 17 anos de vigência.
Não é difícil perceber que a raiz da situação criada se encontra na ideia de transformar a transmissão do domínio de bens imóveis em garantia do pagamento de uma dívida, agravada pela redação destituída de técnica registral, responsável pelas incongruências existentes, apontadas não só por registradores, como, também, por doutrinadores e julgadores, levando-os, com frequência, a interpretações conflitantes.
No passado, a fidúcia sempre foi entendida como uma forma de contrato mais apropriada para coisas móveis e, de acordo com esse entendimento, foi regulamentada pelo atualCódigo Civil, no capitulo IX, arts. 1.361 a 1.368, confirmando o que já estabelecia a Lei 4.728 de 1965, alterada pelo Decreto-lei 911 de 1969. E, nessa regulamentação, pensamos, não foi por acaso que os legisladores evitaram a expressão alienação fiduciária em toda a extensão dos referidos artigos codificados. Evitaram-na porque sabiam que não seria fácil utilizá-la como forma de garantia, implicando, como ela realmente implica, como já foi dito, transferência do domínio do bem alienado. Em substituição, sintomaticamente, usaram a expressão propriedade fiduciária e decidiram não estender o alcance da regulamentação aos bens imóveis. Poderiam ter estendido, como no caso do condomínio edilício, ocasião em que modificaram boa parte da Lei 4.591 de 1964, mas optaram pela omissão, a nosso ver, por razões bem compreensíveis.
Seja como for, o fato é que a alienação fiduciária de bens imóveis aí está, apesar da previsão de registradores e doutrinadores de que a sua adoção traria dificuldades de aplicação. Todos se recordam das dúvidas iniciais quanto ao alcance dela aos contratos celebrados fora do SFI e das controvérsias quanto à utilização do instrumento particular para os negócios em geral devido à redação dúbia do art. 38. É certo que, com as alterações posteriormente introduzidas, tais dificuldades foram removidas, mas outras permaneceram.
Uma dessas dificuldades relaciona-se com a forma correta do ato a praticar pelo registrador no caso de cessão do crédito pelo fiduciário: se é ato de averbação, como acontece com outras cessões de crédito, ou de registro, considerando que ela implica transferência de todos os direitos e obrigações inerentes à propriedade fiduciária em garantia, como obviamente esclarece o art. 28, o que significa dizer que se trata, no caso, de outra transmissão do domínio, a rigor sujeita ao pagamento do imposto de transmissão.
No teor do art. 29, ocorre outro problema de redação e interpretação. Diz ele que o fiduciante poderá transmitir os direitos de que seja titular sobre o imóvel objeto da alienação fiduciária, induzindo a prática do registro de uma nova transmissão, quando sabemos que os direitos que lhe restaram se resumem à posse direta e à condição resolutiva que lhe permite recobrar o imóvel, se pagar a dívida, anotado o detalhe de que posse isolada do domínio não tem ingresso no registro imobiliário. A intenção aqui não é questionar a faculdade assegurada ao fiduciante de transferir os referidos direitos, mas sim a forma de registrá-los, forma essa que leva o registrador a aceitar, constrangidamente, a ideia de que a alienação fiduciária deve ser entendida como oneração.
Outro ponto controverso, por sinal interessante, relacionado com os arts. 26 e 27, foi a causa de recente pedido de providências formulado pelo 17º. Cartório de Registro de Imóveis, a requerimento de José Garcia, no qual a Dra. Tânia Mara Ahualli, titular da 1ª. Vara de Registros Públicos de São Paulo, teve a oportunidade de proferir, em data de 11 de agosto do corrente ano de 2015, decisão que servirá, certamente, de parâmetro para outras futuras. [1].
Resumindo o caso, o requerente celebrou contrato de mútuo com o Banco Intermedium S. A. e, com escopo de garantia, transferiu a propriedade de seu imóvel ao referido credor. Tendo se tornado inadimplente, foi realizada, na matrícula correspondente, a averbação de consolidação da propriedade.
Aconteceu que já estava em curso o prazo para realização dos leilões previstos, quando, embora tardiamente, o requerente e fiduciante decidiu, com a concordância do fiduciário, saldar a dívida. Firmado o instrumento de quitação, foi ele apresentado ao Oficial registrador com o pedido de cancelamento da aludida averbação de consolidação, de forma a permitir a volta da propriedade do imóvel às mãos do devedor.
Fundamentado no disposto no art. 27, o Oficial entendeu que os leilões deviam ser realizados e recusou o pedido, ensejando a solicitação de providências em apreço. Chamado a manifestar-se, o fiduciário reportou-se ao Decreto-Lei 70/66, que admite o pagamento do débito até a assinatura do auto de arrematação.
Analisando o caso e considerando aplicável o disposto no art. 34 do referido decreto-lei, a digna magistrada considerou válida a quitação, mas decidiu pela improcedência do pedido, mantendo, assim, a recusa do Oficial, por entender que o retorno do imóvel às mãos do fiduciante não podia se operar pelo simples cancelamento pretendido, mas, sim, por meio de um novo negócio jurídico.
Não havia como, a nosso ver, a digna magistrada decidir de outro modo, levando em conta que no regime estabelecido pelo Decreto-Lei 70/66, a propriedade permanece em nome do devedor até a realização dos leilões previstos, não havendo, portanto, nenhum impedimento à quitação da dívida até a assinatura da arrematação, como esclarece o citado art. 34. Diferentemente, no regime criado pela Lei 9.514, uma vez não pago o débito, a propriedade do imóvel, já alienado fiduciariamente, consolida-se em nome do credor-fiduciário, nada mais restando em mãos do devedor-fiduciante, de acordo com interpretação literal da lei.
A situação criada torna evidente, a nosso ver, o erro do legislador ao estabelecer a necessidade da consolidação da propriedade em nome do fiduciário, fator que levou a eminente julgadora, Dra. Tânia Mara Ahualli, a socorrer-se de disposição de outra lei para, em interpretação ponderada, solucionar o problema sem maiores prejuízos para ambas as partes. Melhor seria se o legislador tivesse dispensado essa anomalia e ido direto para os leilões, evitando-se, dessa forma, o pagamento de outro imposto de transmissão e a extinção da condição resolutiva até a venda do imóvel leiloado, o que permitiria o seu retorno às mãos do devedor-fiduciante sem nenhum entrave. Aliás, nessa parte, o Código Civil, foi mais sábio que a Lei 9.514 ao silenciar quanto à mencionada consolidação, estabelecendo, no art. 1.364, que, vencida e não paga a dívida, o credor fica obrigado a vender, judicialmente ou extrajudicialmente, a coisa e aplicar o preço no pagamento de seu crédito, entregando, o saldo, se houver, ao devedor.
Para encerrar, a conclusão a que chegamos depois de exaustivas análises dessa lei, ao longo de tantos anos de vigência, é de que poderíamos perfeitamente passar sem ela se fossem introduzidas alterações no estatuto da hipoteca, aproveitando a iniciativa do Decreto-Lei 70/66, de forma a estender os seus benefícios aos contratos em geral, simplificando a forma contratual e o processo de execução da dívida hipotecária.
Autor: Ulysses da Silva. Registrador aposentado, Acadêmico da ABDRI – Academia Brasileira de Direito Registral.
Notas: [1] – Processo 1043214-93.2015.8.26.0100, DJe de 13/08/2015.
Fonte: Observatório da Registro
Em 12.9.2015
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