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“LOTEAMENTOS FECHADOS” NAS GRANDES CIDADES: A PRODUÇÃO DA ILEGALIDADE POR ATORES REVESTIDOS DE PODER SOCIAL, ECONÔMICO E POLÍTICO
Sonia Marilda Péres Alves*


RESUMO

Nas grandes cidades brasileiras, coexistem graves e distintas questões relativas ao parcelamento do solo, entre as quais, em um extremo, os loteamentos urbanos clandestinos e precários, destinados a segmentos populacionais de baixa renda e, em outro, os loteamentos urbanos bem-estruturados, aparentemente legais, murados e administrados privativamente, através de associação constituída para esse fim, exclusivos a extratos sociais de elevada renda familiar. O presente estudo toma como objeto de análise os designados “loteamentos fechados” – com seus lotes privados e áreas comuns públicas, que se diferenciam de uma configuração condominial, a qual tem por referencial a fração ideal de um todo privado - e os principais achados colocam em relevo a falta de amparo legal dos referidos loteamentos, além do abuso do poder econômico de empreendedores imobiliários e a omissão do poder público municipal, configurando uma existência discricionária no tecido urbano.

Palavras-chaves: Parcelamento do Solo Urbano; Loteamento; Loteamento Fechado; Ilegalidade; Omissão do Poder Público; Abuso do Poder Econômico.

1. INTRODUÇÃO

O espaço urbano brasileiro multifacetado, cujos extremos oscilam entre desenvolvimento e exclusão, acesso e escassez, conhecimento e penúria, moradia digna e aglomerados populacionais desumanos, arrogância e corrupção presentes no poder público e em outras instituições sociais, esgarçamento de valores culturais, sociais e éticos, além de tantos outros contrastes e contradições, colocam à sociedade múltiplas exigências.

Entre o legal e o real, constroem-se as cidades.

O exame atento sobre a configuração da cidade permite deslocar o foco dos graves problemas dos loteamentos urbanos clandestinos, caóticos, depauperados e violentos das grandes cidades no Brasil, para centrá-lo nos bem estruturados loteamentos urbanos, murados e administrados privativamente, através de associação constituída para esse fim, destinados aos extratos sociais de renda familiar elevada.

Consta-se então que a ilegalidade habitacional nas cidades brasileiras não é exclusiva aos segmentos populacionais de baixa renda, sendo os “loteamentos fechados” um exemplo paradigmático do abuso do poder econômico e da omissão do poder público.

Nesse sentido, ao atravessar o denso espaço urbano, uma questão, aparentemente de menor importância, assume relevo como objeto de estudo desse trabalho: os denominados “loteamentos fechados”.

Para circunscrever o problema, em seus múltiplos imbricamentos, apresenta-se, de início, um panorama genérico sobre a constituição e a problemática das cidades, segue-se com os destaques atinentes às normas civis e urbanistas, para uma primeira aproximação do objeto em estudo. Na seqüência, o problema afigura-se com maiores detalhes e discussão analítica, assim como são oferecidos alguns casos que compõem a jurisprudência sobre a matéria. Por último, são tecidas as considerações finais. 

2. A CIDADE: UM MOSAICO HISTÓRICO, A PASSOS LARGOS

A cidade, até fins da Idade Média, apresenta-se como intervalo da vida agrária. A cidade medieval, fortificada, cresce espontaneamente em consonância com a natureza geográfica, promove a coexistência intramuros entre as distintas classes sociais e estabelece a associação típica entre local de habitação e trabalho. 

A partir da Idade Moderna, a cidade afigura-se como centro de poder, de comércio expressivo e de crescimento populacional, assim como estabelece vínculos crescentes com outras cidades, em escala planetária. Na medida em que assume relevância econômica, social e cultural, expande-se a cidade, redefinindo-se a dinâmica e a estrutura do espaço urbano.

Segundo Raquel Rolnik (1998, p. 39-40), o surgimento da cidade como capital de um Estado moderno, entretanto, engendra a reorganização radical do urbano, em que se sobressaem: a mercantilização do espaço, ou seja, a terra urbana de caráter comunal torna-se mercadoria; a organização do espaço consoante a divisão da sociedade em classes; e a centralização do poder.

Para a autora (1998, p. 40-52) a terra mercantilizada configura uma nova geografia urbana, com zonas habitadas conforme hierarquia de classe social, e evidencia-se diferenciada atuação do poder público, com investimentos expressivos nas áreas economicamente fortes, em detrimento dos aglomerados ocupados pela classe trabalhadora.

Os reflexos dessa transformação repercutem nas cidades contemporâneas. 

Em linhas gerais, o direito de propriedade, em regimes políticos liberais ou não, assume papel de relevo na vida da cidade. A ambos os regimes são remetidas críticas às práticas ideológicas e econômicas promotoras do sofrimento das populações em diferentes lugares históricos, sejam decorrentes da sobreposição de mecanismos de concorrência de mercado, sem a interferência do Estado, sejam fruto da contraposição do direito privado em prol do direito de propriedade absoluto do Estado. “Na atualidade, entretanto, a busca de equilíbrio entre o direito individual e o controle do Estado, e, portanto, entre os interesses privados e coletivos, afigura-se como tendência, menos ou mais avançada, nas sociedades contemporâneas”. (SALLES, 2004, p. 351-352)

Em conformidade com Raquel Rolnick, cabe destacar a contraposição entre o espaço contido na moldura da legislação urbanística e, outro, muito maior, situado numa zona intermediária entre o legal e o ilegal.

Essa contraposição não é absoluta; a ordem jurídica formal ou estatal nunca está totalmente ausente, mesmo no mais ilícito dos espaços. No mínimo apresenta-se como referente e é freqüentemente mobilizada nas negociações que se estabelecem entre moradores/ocupantes desses espaços e as autoridades estatais, que são geralmente as encarregadas da aplicação das normas. Da mesma forma, no interior dos espaços construídos de acordo com as regulamentações urbanísticas, existe uma infinidade de transgressões, fruto muitas vezes da própria atratividade e valorização das regiões ultra-regulamentadas da cidade. (ROLNIK, 1997, p. 181)

No que se refere ao espaço urbano latino-americano, a bibliografia informa a existência de dois mundos antagônicos um, amplamente infraestruturado e assistido pelo poder público, correspondendo às localidades em que habitam os economicamente favorecidos, e, outro, caracterizado pela posse irregular e escassez de bens e serviços, estando reservado às classes populares.

Verifica-se, historicamente, que o padrão de urbanização engendra exclusão social e segregação espacial. A partir dos anos 80 – em oposição às práticas da década anterior de remoção dos moradores de áreas clandestinas de ocupação do solo – assumem relevância as políticas de regularização fundiária urbana. Ainda assim, as estimativas atuais indicam que um em cada quatro cidadãos latino-americano tem acesso irregular, através de processos informais, à terra urbana e moradia. Constata-se a proliferação de assentamentos urbanos ilegais e inadequados sob os mais variados ângulos, qualidade de vida, preservação ambiental e planejamento urbano.

Segundo Fernandes (2005, p. 129), são múltiplos os processos de informalidade na produção da cidade latino-americana, variando de maior a menor visibilidade, a saber: ocupações informais de áreas públicas e privadas; compra de lotes e/ou casas em loteamentos clandestinos; adensamento de favelas e cortiços; crescimento de agrovilas, que se transformam velozmente em cidades; proliferação de mais de uma casa por lote; ocupação de áreas de risco; falta de infra-estrutura urbanística e ambiental; ausência de equipamentos e serviços públicos, precariedade das edificações.

No que se refere às transgressões da legislação atinente ao loteamento urbano, emergem, entre nós, imagens das favelas e periferias brasileiras, com seus graves problemas sócio-ambientais, da precariedade das moradias, da irregularidade da posse, da violência, da ausência ou insuficiência de equipamentos sócio-culturais, da carência de infra-estruturas e serviços urbanos, da segregação social.

Fernandes (2005, p. 129) apresenta dados oficiais sobre as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro que indicam ser entre 50% a 55% a informalidade quanto o acesso ao solo e à moradia, sendo que para Recife e Salvador oscilam entre 70% a 80%.

Essa realidade dramática repete-se nas demais regiões metropolitanas, assim como vem assumindo proporções cada vez mais elevadas nas cidades de médio e pequeno porte, de modo a lançar preocupações quanto ao futuro dessas cidades.

Em termos precisos, Fernandes (2005, p. 129) destaca não ser o problema da produção imobiliária urbana um mero sintoma do modelo de desenvolvimento econômico, mas sim da maneira latino-americana de produzir o espaço urbano à margem da legislação civil e urbanística.

Entre as causa da informalidade dos loteamentos urbanos sobressaem os pontos que se seguem, conforme Fernandes (2005, p. 131-132):

(i) inadequação das políticas habitacionais; 

(ii) tradição elitista e tecnocrática do planejamento urbano, deixando de contemplar grandes contingentes populacionais, que acabam por buscar áreas de preservação ambiental ou de risco habitacional;

(iii) escassez de opção de moradia oferecida pelo poder público e pelos mercados formais;

(iv) precária capacidade de ação do poder municipal, incluindo a excessiva e lenta burocracia que leva os promotores imobiliários a optarem pelo loteamento irregular;

(v) falta de fiscalização e repressão;

(vi) política clientelista, que estimula a produção informal da cidade; 

(vii) insuficiência dos programas de regularização do título de propriedade, incapazes, por si só, de promover a integração sócio-espacial requerida, a sustentabilidade da intervenção, assim como contemplar as dimensões urbanística, ambiental social e jurídica;

(viii) ilegalidades praticadas não apenas pelos segmentos populares, mas também pelas camadas economicamente privilegiadas;

(ix) predomínio de uma ordem jurídica “conservadora, individualista, civilista e patrimonialista dos direitos individuais de propriedade”.

Entre as conseqüências, Fernandes (2005, p.32), aponta diversos custos sociais e econômicos provocados pelo crescimento da informalidade urbana, entre os quais vale destacar a discriminação remetida às pessoas que habitam os desordenados adensamentos populacionais, assim como o fato de o caos urbano implicar altos custos econômicos, em razão da irracionalidade administrativa que perpassa o incontrolável e crescente quadro de exclusão social e segregação espacial. Ressalta, ainda, que estudos demonstram ser elevadíssimo o custo do metro quadrado da produção informal da cidade.            

Destaque-se, para fins do presente estudo, que as violações legais praticadas não são exclusivas dos espaços urbanos destinados à população de baixa renda, uma vez que avultam-se os recém designados “loteamentos fechados”, em áreas valorizadas economicamente, o que circunscreve um novo problema urbano. 

3. NORMAS URBANISTAS E CIVIS: LOTEAMENTOS E CONDOMÍNIOS

De início, imprescindível considerar que os processos de ocupação do solo no Brasil, seja sob a forma de loteamento seja sob o regime condominial, subordinam-se a duas espécies de normas jurídicas: as urbanistas e as civis, de competência Municipal e Federal, reciprocamente. As primeiras, através do plano diretor da municipalidade visam assegurar as condições mínimas de habitabilidade e o correto desenvolvimento urbano; as segundas, as normas civis, são de competência exclusiva da União.

O Decreto-Lei 58 de 10/12/1937, primeiro diploma legal brasileiro a disciplinar o loteamento, destinava-se a regular o acesso à propriedade dos lotes periféricos para as pessoas de baixa renda e o seu regulamentador Decreto n. 3.079, de 15/09/38, obrigava os loteadores a apresentarem, na prefeitura local, o plano de loteamento, além de exigir o seu registro no Registro Imobiliário competente, com o depósito do memorial do loteamento e a prova vintenária da titularidade e ainda exigir a apresentação das certidões referentes a ações reais e pessoais, pelo prazo de 10 anos, e as de protesto, assim como especificava a matéria de impugnação do registro e as cláusulas indispensáveis à minuta do compromisso de compra e venda. Outras leis e decretos surgiram, mas se revelaram insuficientes frente às medidas modernizadoras da economia. 

A legislação citada e ainda o Decreto-lei 271, de 28.02.67, foram substituídos pela Lei 6.766, de 19.12.79, que dispõe sobre o parcelamento do solo urbano, sendo ela complementada pela legislação Estadual e Municipal, para adequar as peculiaridades regionais e locais à norma Federal.

Para José Afonso da Silva,

... cabe advertir que o processo de loteamento se subordina a dois tipos de normas jurídicas: as urbanísticas e civis. As primeiras são de competência municipal e visam a assegurar aos loteamentos os equipamentos e as condições mínimas de habitabilidade e conforto, bem como harmonizá-los com o plano diretor do Município, para o correto desenvolvimento urbano; as normas civis são de competência exclusiva da União (CF, art. 22, I), que dela se utilizou, editando o Decreto-lei 58, de 10.12.1937, e seu regulamento, constante do Decreto 3.079, de 15.9.1938, e Decreto-lei 271, de 28.2.1967 – legislação, essa, substituída pela Lei 6.766, de 19.12.1979  –, visando a garantir a existência das áreas loteáveis e assegurar a regularidade das alienações dos lotes, para o quê estabeleceu os instrumentos formais necessários ao loteamento e os registros convenientes à seriedade dessas transações imobiliárias, sem afetar, e até reforçando, os aspectos urbanísticos a cargo da legislação municipal – agora, sujeita à observância das normas gerais estabelecidas pela União, nos termos do artigo 24, I, e parágrafo 1º da CF. (SILVA, 2006, p. 333-334)

De acordo com os preceitos estabelecidos pela Lei 6.766/79, exige-se para a aprovação dos loteamentos ou desmembramentos pelos órgãos competentes: a apresentação dos documentos elencados no artigo 18 da referida lei e o indispensável registro pelo Oficial Registrador do Cartório Imobiliário da situação do imóvel. Registrado o projeto do loteamento, com fundamento no artigo 22 do citado diploma legal, as vias e praças, os espaços livres e as áreas destinadas a edifícios públicos e outros equipamentos urbanos, passam a integrar o domínio do Município.

Art. 18. Aprovado o projeto de loteamento ou de desmembramento, o loteador deverá submetê-lo ao Registro Imobiliário dentro de 180 (cento e oitenta) dias, sob pena de caducidade da aprovação (...).

Art. 22. Desde a data de registro do loteamento, passam a integrar o domínio do Município as vias e praças, os espaços livres e as áreas destinadas a edifícios públicos e outros equipamentos urbanos, constantes do projeto e do memorial descritivo.

O loteamento e o desmembramento, modalidades de parcelamento do solo, apresentam características diferentes. O loteamento é meio de urbanização e sempre decorrente de procedimento voluntário do proprietário da gleba, submetendo-se às formalidades municipais, apresenta o projeto para aprovação junto à municipalidade local, para a subseqüente inscrição no registro imobiliário competente. No que concerne ao desmembramento, o procedimento é bem mais simples, restringindo-se à repartição da gleba, sem atos de urbanização.

Nos loteamentos evidenciam-se as áreas privativas que correspondem ao terreno adquirido pelo loteador e as áreas de domínio público. Em outras palavras, o terreno original, ao ser loteado, perde sua individualidade objetiva, transformando-se em lotes identificáveis e com autonomia, reservando áreas de uso comum que passam a integrar o patrimônio público da municipalidade. 

O parcelamento do solo, para fins urbanos, é regido pela Lei 6.766/79, conforme o destaque a seguir.

Art. 2. O parcelamento do solo urbano poderá ser feito mediante loteamento ou desmembramento, observadas as disposições desta Lei e as das legislações estaduais e municipais pertinentes:

Parágrafo 1º. Considera-se loteamento a subdivisão de gleba em lotes destinados a edificação, com abertura de novas vias de circulação, de logradouros públicos ou prolongamento, modificação ou ampliação das vias existentes.

Parágrafo 2º. Considera-se desmembramento a subdivisão de gleba em lotes destinados a edificação, com aproveitamento do sistema viário existente, desde que não implique a abertura de novas vias e logradouros públicos, nem prolongamento, modificação ou ampliação dos já existentes.

Foi, contudo, a promulgação da atual Constituição Federal, em 1988, o grande marco a dar suporte legal a uma nova e diversificada ordem jurídica no direito urbanístico.

A Constituição Federal de 1988, junto ao capítulo dos “Direitos e Garantias Individuais e Coletivas”, chancelou o direito à propriedade privada (art. 5º, inciso XXII combinado com o art. 170, II), em posterior acolhimento pelo Código Civil brasileiro (Título III, da propriedade, capítulo I, da propriedade em geral, seção I, disposições preliminares, artigos 1228-1268). Ao subordinar esse direito real de propriedade ao regramento do Código Civil Brasileiro, explicitou sua paralela submissão ao Direito Público, que tem sua sede fundamental nas normas constitucionais (artigo 170, II, princípio da propriedade privada, e III, função social da propriedade – CF/88), definindo os múltiplos aspectos a serem enfrentados para o alcance da função social da cidade e do bem-estar dos seus habitantes,

A Constituição Federal estabelece, em seu artigo 182, a política de desenvolvimento urbano e, em seu artigo 183, confere os benefícios sociais do domínio e concessão de uso, visando à melhoria e correções necessárias à produção da cidade, conforme destacado a seguir:

• o artigo 182 fixa a competência do poder público municipal para a execução da política de desenvolvimento urbano, conforme as diretrizes gerais a serem fixadas em lei;

• determina a obrigatoriedade do plano diretor e sua aprovação pela Câmara Municipal, para cidades com mais de vinte mil habitantes;

• estabelece o cumprimento da função social da propriedade urbana, ou seja, o atendimento das exigências fundamentais de ordenação da cidade;

• institui a desapropriação de imóveis, através de prévia e justa indenização em dinheiro;

• faculta ao poder público municipal, em conformidade com a lei federal, exigir do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, de modo a não sofrer penalidades sucessivas (parcelamento ou edificação compulsórios e/ou imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo, ou desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais – essa última hipótese funda-se no artigo 5, inciso XXII da CF); 

• o artigo 183 assegura a aquisição do domínio a quem possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, para sua moradia ou de sua família, por cinco anos ininterruptos, e sem oposição, desde que não seja proprietário de outro imóvel, urbano ou rural e, ainda estabelece que os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião, mas sobre eles poderá ser instituída a concessão de uso, tanto ao homem ou a mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.  

Assim, emerge com clareza que os caracteres tradicionais da propriedade, vistos até então como absolutos, exclusivos e perpétuos, curvaram-se a outros princípios da ordem econômica constitucional. Nessa convergência, relativiza-se a propriedade privada e inscreve-se o princípio de sua função social em todos os cânones legislativos infra-constitucionais.

A partir desta nova perspectiva, a construção dos instrumentos jurídicos convergentes ao processo qualitativo da urbanização, alinhamento e realinhamento do mercado imobiliário passa a aguardar a necessária renovação dos textos legislativos e o ordenamento jurídico contemporâneo fincou novo arcabouço conceitual buscando ultrapassar os conceitos do individualismo liberal e conferindo centralidade aos direitos coletivos.

Embora os conflitos de interesse urbanístico tivessem, a partir da Constituição Federal de 1988 novos instrumentos de ajuste jurídico, não têm sido estes suficientes para solucionar o problema dos “loteamentos fechados”, em face do silêncio legislativo e a contrapartida do abuso econômico dos empresários do mercado imobiliário. 

É certo que a Constituição de 1988 imprime uma nova concepção não só ao direito de propriedade como à ordem jurídico-urbanista, e que tal comando constitucional impulsiona maior reflexão sobre a legislação infra-constitucional vigente, já inadequada à realidade das cidades, e em especial sobre a Lei n. 6.766, de 19 de dezembro de 1979, que dispõe sobre o parcelamento do solo urbano. A seu tempo, esta lei depositou ênfase no sentido de ordenação, equilíbrio, padrão e organização dos loteamentos ou desmembramentos urbanos (art. 2º, parágrafos 1º e 2º), harmonizando seu regramento com as legislações estaduais e municipais, com vistas ao pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana. 

Em propositado contraste com o modelo de intervenção pública mobilizada pelo poder político setorial, a referida lei, com os acréscimos legislativos ocorridos em seu curso, submeteu os loteadores à apresentação de todos os documentos listados nos artigos 12 a 22, de forma precisa e exaustiva, indispensáveis ao registro dos loteamentos e parcelamentos, objetivando mesclar justiça, segurança, racionalidade política e a implementação do desenvolvimento sustentável. Desobedecer os regramentos dessa Lei passou a constituir crime contra a Administração Pública, conforme o artigo 50, prevendo a forma qualificada nas hipóteses dos incisos I e II do seu parágrafo único.

Art. 50. Constitui crime contra a Administração Pública:

I – dar início, de qualquer modo, ou efetuar loteamento ou desmembramento do solo para fins urbanos sem autorização do órgão público competente, ou em desacordo com as disposições desta Lei ou das normas pertinentes do Distrito Federal, Estados e Municípios;

II – dar início, de qualquer modo, ou efetuar loteamento ou desmembramento do solo para fins urbanos, sem observância das determinações constantes do ato administrativo de licença;

III – fazer ou veicular em proposta, contrato, prospecto ou comunicação ao público ou a interessados, afirmação falsa sobre a legalidade de loteamento ou desmembramento do solo para fins urbanos, ou ocultar fraudulentamente fato a ele relativo;

Parágrafo único. O crime definido neste artigo é qualificado, se cometido:

I – por meio de venda, promessa de venda, reserva de lote ou quaisquer outros instrumentos que manifestem a intenção de vender lote em loteamento ou desmembramento não registrado no Registro de Imóveis competente;

II – com inexistência de título legítimo de propriedade do imóvel loteado ou desmembrado, ressalvado o disposto no art. 18, parágrafos 4º e 5º desta Lei, ou com omissão fraudulenta de fato a ele relativo, se o fato não constituir crime mais grave.

Já o artigo seguinte da referida Lei, inclui terceiros concorrentes à prática dos crime anteriormente referido, conforme a seguir:

Art. 51. Quem, de qualquer modo, concorra para a prática dos crimes previstos no artigo anterior desta Lei incide nas penas a estes cominadas, considerados em especial os atos praticados na qualidade de mandatário do loteador, diretor ou gerente de sociedade.

Ainda que a Lei 6.766/79 consubstancie o presente estudo, cabe assinalar a coexistência harmoniosa da Lei n° 10.257, de 10 de julho de 2001 – Estatuto da Cidade – fixando as diretrizes gerais da política urbana a ser executada pelo poder público municipal e estabelecendo as normas de ordem pública e de interesse social que regulam o uso da propriedade urbana, com vista ao bem coletivo, a segurança, ao equilíbrio ambiental e ao bem-estar dos cidadãos.

Entre suas diretrizes, seguem-se os destaques pertinentes ao tema em questão:

(i) garantia do direito a cidades sustentáveis, ou seja, com direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho, ao lazer;

(ii) gestão democrática, com a participação da população e de associações representativas na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano;

(iii) cooperação entre os governos, a iniciativa privada e demais setores da sociedade no processo de urbanização, para atendimento ao interesse social;

(iv) planejamento do desenvolvimento das cidades, de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos ao meio ambiente;

(v) oferta de equipamentos urbanos e comunitários e serviços públicos; 

(vi)  ordenação e controle do uso do solo;

(vii) regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por populações de baixa renda;

(viii) simplificação da legislação de parcelamento, uso e ocupação do solo;

(ix) isonomia de condições para os agentes públicos e privados na promoção de empreendimentos e atividades relativos ao processo de urbanização.
 
Por todo o exposto, há de se colocar em relevo com as mesmas razões do Professor Edésio Fernandes:

A falta de cumprimento da legislação leva ao descrédito das instituições jurídicas, à cultura da impunibilidade, ao reforço das práticas clientelistas, ao avanço da justiça informal e ao fomento das formas de corrupção.

Nesse sentido, é necessário compreender o papel dos Municípios e principalmente dos Planos Diretores na regulamentação e execução da política de desenvolvimento urbano e no ordenamento das funções sociais da cidade e da propriedade. (FERNANDES, Boletim Eletrônico IRIB, n. 2347, 21/03/2006)

Entre a legislação e a prática, a realidade afigura-se complexa e contraditória. Nesse sentido, a centralidade dialógica, por um lado, da legislação, e, por outro, das suas formas materialização, na configuração do espaço urbano, é expressa por Raquel Rolnik, nos termos que se seguem:

Mais além do que definir formas de apropriação do espaço permitidas ou proibidas, mais do que efetivamente regular a produção da cidade, a legislação urbana age como marco delimitador de fronteiras de poder. A lei organiza, classifica e coleciona os territórios urbanos, conferindo significados e gerando noções de civilidade e cidadania diretamente correspondentes ao modo de vida e à micropolítica familiar dos grupos que estiverem mais envolvidos em sua formulação. Funciona, portanto como referente cultural fortíssimo na cidade, mesmo quando não é capaz de determinar sua forma final. Aí reside, talvez, um dos aspectos mais interessantes da lei: aparentemente funciona como uma espécie de molde da cidade ideal ou desejável. Entretanto, (...) ela determina apenas a menor parte do espaço construído, uma vez que o produto – cidade – não é fruto da aplicação inerte do próprio modelo contido na lei, mas da relação que se estabelece com as formas concretas de produção imobiliária na cidade. (ROLNIK, 1997, p.13)

4. “LOTEAMENTO FECHADO” EM FOCO

O presente estudo, conforme indicado na introdução, em que pesem os graves problemas dos loteamentos urbanos clandestinos, caóticos, depauperados e violentos das grandes cidades no Brasil, propõe-se como objeto de estudo os bem-estruturados loteamentos urbanos, murados e administrados privativamente, através de associação constituída para esse fim, destinados aos extratos sociais de renda familiar elevada.

O estudo analisa os denominados, na linguagem coloquial, “loteamentos fechados”. Trata-se de uma modalidade que se apresenta no mercado imobiliário, com aparente legitimidade, mas que se desenvolve sem amparo legal. No caso destes “loteamentos fechados” cria-se um núcleo populacional de caráter urbano e em seguida abandonam-se as regras jurídicas específicas para loteamento, estabelecendo-se uma associação com pretensos direitos a administrar as áreas de domínio público, como vias e praças, à luz da instituição paralela de um suposto condomínio. Não há legislação que ampare o seu fechamento.

Na realidade contemporânea brasileira, avultam-se os “loteamentos fechados”, encobertos por aparente legalidade, pois aprovados, registrados e executados sob o comando da Lei 6.766/79, que não prevê fechamento. Tais loteamentos adotam, após a conclusão das obras, inadequadamente, a roupagem dos condomínios urbanos, e fecham a área em questão ignorando a existência de áreas públicas de uso comum e desconsiderando que o regime jurídico do condomínio urbano subordina-se às normas de direito privado, conforme o citado art. 8º da Lei 4.591/64, transcrito como se segue:

Art. 8º: Quando o terreno onde não houver edificação, o proprietário, o promitente comprador, o cessionário deste ou o promitente cessionário sobre ele desejar erigir mais de uma edificação, observar-se-á também o seguinte:

a) em relação às unidades autônomas que se constituírem em casas térreas ou assobradadas, será discriminada a parte do terreno ocupada pela edificação e também aquela eventualmente reservada como de utilização exclusiva dessas casas, como jardim e quintal, bem assim a fração ideal do terreno e de partes comuns, que corresponderá às unidades; (...);

c) serão discriminadas as partes do total do terreno que poderão ser utilizadas em comum pelos titulares de direito sobre os vários tipos de unidades autônomas; 

d) serão discriminadas as áreas que se constituírem em passagem comum para as vias públicas ou para as unidades entre si.

No vácuo legislativo da Lei 6.766/79,  verifica-se na prática que o próprio loteador e/ou os adquirentes de lotes passam a murar toda a extensão do loteamento e a administrar as áreas de domínio público como se fossem bens de natureza privada em afronta à Lei 6.766/79 adotando, conforme anteriormente explicitado, o regramento do artigo 8o da Lei 4.591/64, específico para relações condominiais caracterizadas por fração ideal. Consolida-se, com tal moldura, um flagrante estelionato jurídico.

Na verdade, este dispositivo tem sido largamente usado para mascarar os “loteamentos fechados”. Em conformidade com José Afonso da Silva, tais loteamentos não existem juridicamente:

Não há legislação que os ampare, constituem uma distorção e uma deformação de duas instituições jurídicas: do aproveitamento condominial de espaço e do loteamento ou desmembramento. É mais uma técnica de especulação imobiliária, sem as limitações, as obrigações e os ônus que o direito urbanístico impõe aos arruadores e loteadores do solo. (SILVA, 2006, p. 353)

Em prosseguimento, o autor oferece o extrato a seguir:

Na modalidade de aproveitamento condominial de espaço prevista no artigo 8º da lei 4.591/1964 temos uma situação complexa, configurada pela existência de unidades autônomas (casas térreas ou assobradadas ou edifícios, ou ambos), uma parte de terreno edificada, uma parte de terreno reservada como de utilização exclusiva para jardins ou quintal, uma fração ideal sobre a qual se constitui o condomínio (edifício com unidades autônomas: apartamentos) e, ainda, as áreas que constituem passagens comuns para as vias públicas ou para as partes utilizadas entre si, ou os caminhos de acesso à praia, a pontes, a lugar aprazível. 

Essa forma de condomínio, a de propriedade horizontal, é administrada, nos termos da convenção de condomínio (Lei 4.591/1964, artigo 9º e seguintes), por um síndico, eleito pelos condôminos, o qual será auxiliado por um conselho consultivo, também eleito, em uma Assembéia-Geral (...). Não se prevê na referida lei relação com a Administração Municipal. Apenas se estabelece a necessidade de aprovação do projeto de edificação (artigo 32, letra “d”, e parágrafo 10) – o que prova ser impossível a pretendida urbanização em forma de “loteamento fechado” com base na referida lei. (SILVA, 2006, p. 353)

No que concerne ao loteamento, cabe destacar a necessidade da prévia aprovação do seu projeto na municipalidade e sua subseqüente inscrição no Registro Imobiliário da circunscrição do mesmo, o que não afasta a posterior ilegalidade de seu fechamento e da a criação compulsória de associações, via de regra imposta pelo incorporador através da inserção compulsória, nas respectivas escrituras de promessa e/ou vendas definitivas, de instrumento de mandato com o fim de se constituir tal associação e eleger um presidente para administrar o respectivo “loteamento fechado”.

Cumpre destacar que as leis existentes que tratam do parcelamento do solo urbano não contemplam, até então, regramento específico para empreendimentos com essas características. Na prática, a ocorrência freqüente do fechamento de loteamentos à revelia das autoridades, decorre:

1. da inércia da municipalidade em convergência com o interesse particular dos adquirentes dos lotes em busca de bem-estar, segurança e privacidade de seu grupo familiar;

2. da incontida ganância do loteador que já insere na propaganda do empreendimento e no preço de venda o referido fechamento, arborização, parques, clubes, quadras de tênis etc, acessórios atrativos para mobilizar os compradores;

3. da opção em assumir os serviços de coleta de lixo, iluminação, tratamento de água, pavimentação, serviços de vigilância, segurança, rede telefônica de comunicação interna, aquisição de carros e motos para permanente fiscalização dentro do loteamento, manutenção de áreas verdes, parques, vias e espaços livres; 

4. do pânico urbano com a marginalidade difusa e bem armada em face da total precariedade das corporações policiais, suscitando a necessidade dos moradores promoverem os serviços de vigilância e segurança.

Destaque-se, entretanto, que através de autorização, permissão ou concessão, por ato administrativo, o Município pode permitir a exclusividade de utilização dos bens de seu domínio aos proprietários dos lotes do “loteamento fechado”. O Município, portanto, dispõe dos instrumentos necessários para a outorga do uso privativo das vias, das praças e dos espaços livres, dentro do loteamento, aos adquirentes dos lotes. Pode, ainda, o Município, à sua discricionariedade, desafetar os bens de seu domínio, assim como editar normas ou autorizações concretas para o ingresso exclusivo dos moradores e das pessoas por eles autorizadas.

Essa regras administrativas são muito polêmicas e questionadas em face de princípios constitucionais que servem de base à estruturação do Estado. Ressalta-se que a função ordenadora e imediata desses referendados princípios fundamentais são capazes de realizar, em plena harmonia, as relações político-constitucionais e dar coerência e integração ao sistema social democrático.

A verdade é que os princípios, institutos e o regime jurídico proposto pelo Direito Administrativo não são suficientes para expressar a natureza dessas novas relações político-institucionais, não se prestando para responder às suas necessidades de regulamentação e para dar segurança jurídica às novas formas de gestão. (FERNANDES, 2006, p. 2)

Em convergência são os olhares dos constitucionalistas Jorge Miranda e José Joaquim Gomes Canotilho, os quais manifestam em suas obras, em equânime reciprocidade, a inafastável certeza de que as normas constitucionais constituem, sempre, a matriz e a síntese de todas as opções político-administrativas. A noção de “Estado” encontra sua base no Direito Administrativo que se tornou obsoleta e as relações entre o poder público e o privado ainda não se desenvolveram o suficiente para dar soluções rápidas e eficazes aos problemas jurídico-políticos, o que permite distorções consensuais e práticas precárias perpetuando a instabilidade e injustiças no cenário político-brasileiro.  

De forma oposta, Pires (2006) evoca o princípio da razoabilidade como instrumento de análise de casos concretos, para se proceder à decisão sobre o fechamento ou não de loteamentos. Para ele, o princípio da segurança pública pode colidir com o princípio da liberdade de locomoção, em casos de legitimidade em se restringir o acesso aos loteamentos, prevalecendo, a seu julgamento, o direito à segurança pessoal.  Para embasar sua posição, o autor coloca em evidência os argumentos que se seguem:

... o professor Luís Roberto Barroso trata sobre duas correntes distintas das quais evolui o princípio da razoabilidade. Para uma, com esteio na doutrina desenvolvida nos Estados Unidos, esse princípio seria um desdobramento do devido processo legal. Com duas facetas, o devido processo legal ora se apresenta no caráter estritamente processual – tal como comumente se discorre na doutrina processual – ora possui um cunho substantivo, aí sim, sob o título de princípio da razoabilidade.

Para outra, com origem na doutrina alemã, tratar-se-ia de um ‘(...) princípio não escrito, cuja observância independe de explicitação em texto constitucional, porquanto pertence à natureza e essência mesma do Estado de Direito. Demais, não constitui tal princípio um direito da liberdade, mas um direito que protege a liberdade; uma garantia fundamental, ou, antes de tudo, um princípio geral de direito’.

Mas tanto como princípio expresso – porque seria uma vertente do devido processo legal (doutrina norte-americana) – quanto como implícito – pois permearia todo ordenamento jurídico de um sistema democrático (doutrina alemã) -, o certo é que a doutrina brasileira converge, em relação aos elementos cardeais desse princípio, para o conhecimento produzido na Alemanha.

E de acordo com a ciência germânica, por sua vez, são três os requisitos do princípio da razoabilidade:  a) adequação, b) necessidade ou exigibilidade e c) proporcionalidade em sentido estrito. (PIRES, 2006, p. 110 e 111)

Levando-se em consideração que o princípio da razoabilidade prevalece no caso de proteção à vida (segurança) em detrimento do princípio de ir e vir ou mesmo da isonomia, tratamento igualitário entre cidadãos no acesso ao loteamento, cumpre destacar que aparato legal adequado contribui de forma decisiva para o melhor enquadramento da questão.

Ainda que hiatos e imperfeições sejam identificáveis, sublinhe-se os avanços legislativos, constitucionais e infra, mesmo não sendo eles suficientes para os lineamentos básicos da política urbana e das questões político-sociais. A par do descompasso temporal entre as transformações sócio-políticas e a legislação que as engendra, não podemos prescindir do direito positivo.

No âmbito do debate, a sociedade organizada, com contribuição dos poderes constituídos, busca através do  Projeto de Lei 20/07, do deputado Fernando Chucre (PSDB/SP) que apresenta regras para a regularização dos loteamentos irregulares. O projeto incorporou-se ao substitutivo do deputado Barbosa Neto (PDT-PR) – PL 3057/00 e vários outros apensados sobre o mesmo tema do parcelamento urbano, que será chancelado sob a rubrica de  Lei de Responsabilidade Territorial - que revê a Lei 6766/79,  alternativas para a política urbana e, em especial, para os irregulares “loteamentos fechados”, ou seja, concede tratamento especial ao condomínio urbanístico como modalidade do parcelamento urbano.

O Projeto tenta articular os aspectos urbanísticos e sociais do processo de urbanização, através de expedição da licença única integrada pelo Município - que tenha plano diretor, órgãos colegiados de controle social e órgãos executivos específicos em política urbana e ambiental.

Nesse enfoque o papel dos Municípios, em especial, dos Planos Diretores assume relevo na execução da política de desenvolvimento urbano e no ordenamento das cidades e da função social da propriedade pois o projeto autoriza os municípios e o Distrito Federal a formular política para incluir no plano diretor regularização fundiária sustentável a fim de regularizar loteamentos e ocupações ilegais. No Projeto em referência há previsão de novas figuras de parcelamentos fechados por definição – “condomínios urbanísticos” – (art. 12), na intenção de possibilitar a regulamentação desse fenômeno. O Laboratório de Habitação e Assentamento, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, da Universidade de São Paulo, entende que tais “condomínios urbanísticos” descaracterizam a harmonia das cidades já tão agredidas pela criação de verdadeiros bairros murados como na época medieval. Assim, essa modalidade acelera a segregação social, mutila a estética visual, agride a paisagem e embrutece o cenário urbano.

À luz do referido Projeto, os “loteamentos fechados” já existentes e a limitação ao acesso dos bens públicos em foco serão anistiados. Há contraposição, entretanto, uma vez que os parcelamentos do solo são empreendimentos abertos por sua própria natureza, pois nascem com a finalidade de integrar o tecido urbano. Assinale-se que  Jacomino (2006), destaca as grandes e benéficas inovações trazidas com o PL 3057/2000, hoje PL 20/2007, revogando leis desatualizadas e alargando a obrigatoriedade do registro, para possibilitar a transparência a todas as transações que tenham por objeto bens imóveis, assim como para evitar a conflituosidade e conceder a segurança jurídica preventiva.

Como ilustrado, coloca-se o debate em torno da questão, no cenário nacional. Múltiplos são os atores, as motivações e os interesses envolvidos.

Assim como a participação social em sua relação com o setor público assume importância crescente na formulação e consecução das políticas voltadas para os segmentos empobrecidos da população, não se pode negar os mesmos direitos, estratégias e instrumentos aos segmentos favorecidos econômica e socialmente, vitimizados por problemas como falta de segurança urbana e precariedade dos serviços públicos. Direitos não são benesses, mas conquistas. Estas, entretanto, devem ser submetidas à visibilidade do debate e aos mecanismos democráticos de concepção e controle. 

A Constituição Federal de 1988 coloca em cena, formas de participação direta no processo político, democracia direta, em combinação à forma tradicional de representação política, democracia representativa. Oferece os fundamentos para a configuração da esfera pública não reduzida à estatal.  A concretização desses novos princípios guarda estreita relação com o sucesso da gestão urbano ambiental.  Essa nova perspectiva implica novas e complexas relações entre direito, política e urbanização.

Em consonância com Edésio Fernandes, o extrato que se segue assume relevância para o tema em debate:

Não podemos mais continuar fazendo o discurso dos valores: temos de construir um discurso dos direitos que dê suporte às novas estratégias político-institucionais de gestão democrática e inclusão social, que diversos municípios têm tentado formular e implementar (...). 

Não é mais possível interpretar as graves questões urbanas e ambientais exclusivamente com a ótica individualista do Direito Civil; da mesma forma, não é mais possível buscar tão somente no Direito Administrativo tradicional (que com freqüência reduz a ordem pública à estatal) os fundamentos para as novas estratégias de gestão municipal e de parcerias entre os setores estatal, comunitário, voluntário e privado. (FERNANDES, 2006, [s. p.])

Em que pesem imprecisões ou omissões na legislação urbanística, sejam conceituais ou técnicas, colocam-se em evidência a necessidade de construção de um discurso jurídico sólido, em consonância com os novos princípios constitucionais e legais, no que se refere aos novos direitos sociais, visando à reforma urbana e suas adequadas estratégias políticas e de gestão urbana.

Fernandes (2006) prossegue e enfatiza a centralidade do papel dos juristas, assim como dos registradores, no que concerne ao papel a desempenharem na construção das bases sociais e coletivas do Direito Urbanístico, em especial na forma&cce



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