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Registro de Imóveis, segurança jurídica e financiamento imobiliário. - Pronunciamento do presidente do Irib no seminário O Crédito Imobiliário em face do novo Código Civil promovido pela Abecip.


A convite da Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança, Abecip, pelo Superintendente Carlos Eduardo Duarte Fleury, o Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, Irib, participou do seminário O Crédito Imobiliário em face do novo Código Civil, realizado entre os dias 2 e 4 de abril, no Pestana São Paulo Hotel, em São Paulo.

Veja a seguir, na seção Opinião, o inteiro teor da palestra proferida pelo presidente do Irib Sérgio Jacomino, focalizando o registro de imóveis, a segurança jurídica e o financiamento imobiliário.

A reportagem completa sobre o evento, com o pronunciamento do presidente da Abecip Décio Tenerello, pode ser acessada em http://www.irib.org.br/notas_noti/boletimel665a.asp 

Confira, ainda, a palestra do vice-presidente do Irib/RJ, Eduardo Pacheco Ribeiro de Souza, sobre o tema A Promessa de Compra e Venda no NCC.

OPINIÃO
Registro de Imóveis, segurança jurídica e financiamento imobiliário.  
Pronunciamento do presidente do Irib Sérgio Jacomino no seminário O Crédito Imobiliário em face do novo Código Civil promovido pela Abecip.

Muito bom dia a todos. Muito obrigado ao doutor Décio Tenerello, que me antecedeu, ao Dr. Carlos Eduardo Fleury, pela oportunidade de estar aqui com uma platéia tão seleta, tão preparada e por que não dizer, de certa forma tão desconhecida dos registradores imobiliários. Quero referir-me ao contato pessoal, já que, via de regra, com muitos dos senhores travamos diuturnamente contatos profissionais, seja recebendo os contratos para registro, seja propiciando, como resultado de nossas atividades, o que o doutor Décio Tenerello acabou de falar: segurança jurídica nas transações imobiliárias.

O eixo desta breve exposição, que tem um caráter de apresentação institucional, é o tema da segurança jurídica. Não será propriamente uma palestra, enfocando aspectos tópicos do novo Código Civil. A base de meu pronunciamento é pôr em relevo aspectos da segurança jurídica preventiva que os registros públicos provêm. É disso que estaremos tratando aqui; é disso que todos nós necessitamos para viabilizar os negócios, para a impulsão das transações econômicas. Eu gostaria de expor de que maneira o registro imobiliário pode ser um ator coadjuvante nesse processo de consolidação da segurança jurídica preventiva, tão importante, tão necessária para o fomento e o desenvolvimento dos negócios.

Registro brasileiro - uma longa trajetória

Nós temos experimentado uma transformação muito profunda no registro imobiliário brasileiro e essa transformação está em curso. Desde o advento da Lei 8.935, em 1994, que faz eco à Reforma Constitucional de 1988, temos no Brasil um novo perfil do registro imobiliário. Esse novo perfil significou também uma renovação dos próprios operadores que, hoje, acedem às posições de oficiais registradores, em todo o Brasil, por meio de concursos públicos. Isso, naturalmente, fez surgir novos atores e o reflorescimento da doutrina registral e notarial no país e a procura de identificação da singularidade dessa atividade.

Os cartórios brasileiros se inscrevem em uma larga tradição. Remontam ao tabeliado português cujos vestígios podem ser traçados, pelo menos, desde o século XIV. 

No caso específico do sistema registral, sabe-se que o registro hipotecário brasileiro foi se insinuando nas discussões parlamentares pelo menos desde 1830, quando os primeiros projetos foram sendo apresentados.

Na sessão parlamentária de três de julho de 1830, por exemplo, o Deputado Ernesto Ferreira França apresenta um pequeno projeto de lei prevendo que em cada vila ou julgado do Império, a cargo do primeiro tabelião do lugar, deveria existir um livro das hipotecas. Previa o projeto que seriam nulas, simplesmente, todas as hipotecas constituídas depois do advento da lei que se não provassem por escrituras inscritas no dito livro.

Oito anos mais tarde, fazendo referência a um outro projeto, em andamento desde 1836, o deputado Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho apresentou um mais robusto projeto de registro hipotecário, assim justificado: “parece de necessidade uma lei, que criando em cada município um ofício e registro especial de hipotecas, e de protesto de letras, ponha os cidadãos, e particularmente o comércio, a abrigo das contínuas fraudes que diariamente se praticam, hipotecando-se a indivíduos por um cartório prédios já hipotecados a outros por cartórios diferentes; e bem assim o habilite a conhecer prontamente aqueles, que pouco pontuais em seus pagamentos, deixam apontar e protestar suas letras, a fim de que estabelecida a confiança, mãe do comércio, possa esse prosperar, como muito convém aos interesses do país” (sessão de 16 de junho de 1838, primeiro ano da Quarta Legislatura – Câmara dos Deputados do Parlamento Brasileiro).

Vê-se, pela justificativa do deputado Oliveira Coutinho, que a atomização e dispersão de cartórios não especializados – seja em razão da matéria hipotecária, seja em virtude de estrita competência territorial – já é um fenômeno que deveria logicamente ser obviado, isso pelos graves prejuízos sociais que representa. Um argumento histórico poderia, pois, ser levantado contra o palpite infeliz de se instalar cartórios-farmácia de que se vai falar logo a seguir.

Discorrendo sobre a insegurança jurídica e econômica, decorrência direta da falta de informação, o deputado Oliveira Coutinho registra: “é sabido que muitos sujeitos, que, aliás, desejam fazer girar e reproduzir seus fundos recusam dá-los sobre hipotecas de bens de raiz por ignorarem se tais bens estão já sujeitos, em todo ou em parte, a outros contratos e por temerem os prejuízos, que de tais fraudes se tem seguido”. (id. Ib).

Os capitais imobilizados, pela falta de segurança jurídica e pela sinecura informativa, decorrência da inexistência de um sistema de publicidade minimamente organizado, são fenômenos bem apanhados pela argúcia do deputado, que conclui: “com o fim de animar, por meio da segurança, as transações comerciais, o giro de fundos, e por conseqüência o melhoramento das fortunas e propriedades particulares, tenho a honra de propor o seguinte projeto de lei” – e segue-se o projeto de criação de um registro hipotecário que em tudo deve ser conhecido pelo testemunho de uma era de grandes transformações econômicas para o país.

Mas os projetos caminhavam no remanso parlamentar, a ponto do deputado Moura Magalhães registrar, em pronunciamento da tribuna, em 11 de maio de 1840, que as dificuldades inerentes à matéria constituiriam fato suficiente para se adiar a votação de tão importantes matérias.

Assim é que, já em 18 de março de 1843, nas vésperas das discussões da lei orçamentária daquele ano, o deputado J. M. Pereira da Silva remete à Comissão de Justiça Civil o tema do registro hipotecário, jungindo: “sendo de absoluta necessidade a adoção de uma lei que fixe regras invariáveis e um sistema claro sobre hipotecas, a fim de assegurar a propriedade individual e de acabar com abusos imensos que têm resultado do estado imperfeito da legislação civil existente: indico que a nobre Comissão de Justiça Civil organize, com toda a brevidade, um projeto de resolução sobre hipotecas, colhendo os precisos dados de outros projetos apresentados à Câmara por diversos Srs. Deputados em diferentes legislaturas, a fim de se prosseguir na sua discussão com a presteza e a urgência compatíveis com objetos de tanta transcendência” (sessão de 18 de março de 1843).

O próprio deputado J. M. Pereira da Silva cuidaria de apresentar, já na sessão de 1o de abril de 1843, o seu próprio projeto de lei, que criava a figura dos tabeliães privativos de hipoteca. No projeto, o problema da circunscrição era enfrentado, com uma noção, ainda bastante difusa, de reserva de prioridade (art. 3 o). O projeto previa a competência territorial para a prática dos atos de inscrição, definindo-se a regra da prioridade (art. 5 o) e finalmente a responsabilidade civil e penal do tabelião (art. 6 o).

A dita Comissão de Justiça Civil, aliás, integrada pelo notável Nabuco de Araújo, considerou-se exonerada da responsabilidade de organizar um projeto sobre hipotecas, tendo em vista a apresentação do projeto pelo mesmo deputado Pereira da Silva (parecer de 19 de abril de 1843). Nabuco de Araújo voltaria à cena para nos brindar com um consistente sistema de registro hipotecário, já livre das imperfeições da legislação a que se fará referência abaixo.

Pois bem, concebido no bojo das discussões orçamentárias de 1843, que redundou na lei 317, de 21 de outubro de 1843, seria finalmente criado o registro hipotecário brasileiro em 1846, pela via do Decreto 482, de 14 de novembro de 1846.

Defendido pelo deputado Barreto Pedroso, que apresentaria uma emenda aditiva, o registro hipotecário seria criado justamente para oferecer uma garantia eficaz dos financiamentos dirigidos à produção agrícola brasileira, justificado claramente por necessidades econômicas e sociais.

Aliás, Antônio Pereira Barreto Pedroso, talvez por ser filho dileto de Miguel Pereira Barreto (que foi o primeiro tabelião da cidade de Resende, em 1801) tinha plena consciência das potencialidades de um registro hipotecário e de seu benefício para o incremento do financiamento agrícola. Esse mesmo deputado chegaria ao posto de Ministro do Supremo Tribunal. 

Para se ter uma idéia da importância histórica do tema, vamos dar voz ao deputado Barreto Pedroso, que na sessão do parlamento de 4 de julho de 1843 verberava a criação do regime de registro hipotecário no país nos seguintes termos:

“Ora, Sr. Presidente, o comércio que é a outra parte da nação que carrega com os impostos, tem mais facilidade de achar capitais do que a lavoura; trago, por exemplo, o que acontece no Rio de Janeiro; existe aqui um banco, os negociantes que podem apresentar firmas acreditadas acham dinheiro a 8 e 9 por cento, porque o banco e outros capitalistas conhecem que com facilidade reembolsam os dinheiros que são apresentados aos negociantes. Mas acontece o mesmo com a lavoura? Decididamente não. Vejo lavradores que têm o valor de 50, de 100 e mais contos de réis, entretanto, se precisam de dinheiro, vêm-se na precisão de obter com um juro muito crescido”.

Em outro momento dos debates, registrou o lúcido deputado: “É inegável que, logo que se criar um registro de hipotecas, a lavoura há de achar dinheiro com muito menor juro que atualmente. Quando os capitalistas das cidades e vilas souberem que podem dar o seu dinheiro, que o tem seguro com a hipoteca sobre um prédio de muito valor, hão de por certo baixar o juro de seu dinheiro, porque o dão com mais ou menos interesse, conforme a segurança que têm.” (Annaes do Parlamento Brazileiro – Câmara dos Srs. Deputados – segundo anno da Quinta legislatura, Segunda sessão de 1843, pronunciamento no dia 4 de julho de 1843).

O diagnóstico era preciso. Ainda hoje verificamos que os juros cobrados pelos investidores guardam estrita relação com os riscos inerentes ao negócio. É regra comezinha de economia. O mesmo Sr. Barreto Pedroso viria a concluir, com pronunciamento de notável clarividência, já na sessão do Parlamento de 5 de julho do mesmo ano, em resposta às objeções que lhe foram levantadas: “Eu fiz ver muito resumidamente que, se nós criássemos um registro de hipoteca, facilitaríamos ao lavrador os meios de obter dinheiro por juro muito menor. Os nobres deputados não podem desconhecer que, quando os capitalistas dão dinheiro a juros, procuram com muito cuidado a garantia da segurança para o sem embolso. Disse eu que o juro estava na razão inversa da segurança, que quanto maior era a segurança, tanto menor era o juro” (id. Ib).

Como se viu, a palavra chave era segurança jurídica. O mesmo imperativo se coloca atualmente diante dos operadores do direito, convocados a repensar as virtudes que o nosso sistema registral representa.

Enfim, tendo sido aceita e apoiada a proposta de emenda aditiva apresentada pelo deputado Pedroso, acabou figurando na Lei Orçamentária de 1843, com eficácia limitada a ulterior decreto que estabelecesse e definisse os lugares em que seriam instalados os Registros, pelo modo que o Governo estabelecesse em regulamento.

Não é caso de se continuar, aqui, a descrição da trajetória histórica do aperfeiçoamento do sistema registral do país. Basta que se consigne que, desde o século XIX, conjuntamente com outros países, na vanguarda de um movimento que se irradiaria para todo o mundo, o Brasil criou o seu sistema de publicidade hipotecária. A modelagem desse serviço público delegado, com seu desenho institucional plasmado nos alvores do Estado liberal do século XIX, ainda pode ser tido e havido como modelo e referência para os países em desenvolvimento econômico.

De lá para cá, o sistema registral não parou de se desenvolver, colhendo, modernamente, milhões de moradias, provendo garantia jurídica a um número expressivo de pequenos e médios proprietários, acompanhando o fenômeno de concentração urbana do país a partir da década de 50, acentuando o caráter social de sua atividade. Nesse largo período, contribuiu decisivamente para o desenvolvimento econômico e social. Bastaria o exemplo eloqüente dos milhões de contratos que foram celebrados no âmbito do BNH, cujas garantias foram registradas e se mantiveram hígidas até o final adimplemento das obrigações, somente perdendo a importância e o valor pelas sucessivas intervenções no mercado pelo dirigismo estatal e pela imprevisibilidade de decisões judiciais, que relativizaram o valor das garantias reais em favor de um difuso direito social.

Para nós, é crucial responder às seguintes questões: quanto significa, em custos sociais, a prevenção de litígios, representada pela segurança jurídica cautelar propiciada pelo sistema de registro? 

Quanto pode representar o registro, em termos de redução dos custos pela dramática mitigação do grau de insegurança nas transações econômicas que têm por objeto bens imóveis?

Explosão de cartórios

Eu havia trazido, como epígrafe da minha exposição, o pronunciamento de uma alta autoridade governamental, que, tendo em vista os problemas enfrentados para a regularização urbanística e fundiária e para a conferência de títulos de propriedade para milhões de brasileiros – identificando nos cartórios os obstáculos mais importantes para a regularização almejada –, sugeriu simplesmente que os cartórios fossem explodidos.

Sabe-se que 50% da população de cidades como São Paulo e Rio de Janeiro vivem, hoje, numa espécie de limbo jurídico. Vivemos a época da clandestinidade jurídica, que atende a vários interesses. Especialmente a população de baixa renda vive em propriedades que não estão tituladas, não estando, portanto, integrada no grande arco do mercado formal. Esses cidadãos não podem se habilitar para receber um crédito – seja para a reforma da sua moradia, seja para a construção de sua habitação, seja mesmo para a aquisição ou regularização da sua propriedade. Essas pessoa não podem, em suma, tirar uma mais-valia da sua propriedade e contribuir com a circulação de riquezas.

O Governo Federal tem um desafio importante pela frente, no sentido de regularizar a propriedade informal, captar recursos para financiar a aquisição da moradia, seja para a população de baixa-renda, seja para a classe média, e este é um desafio importante que está posto não só para o atual governo, mas para todo a sociedade.

Premida pelas dificuldades inerentes ao complexo processo de regularização fundiária, essa alta autoridade saiu-se com a seguinte manifestação: ”só se fosse possível explodir os Cartórios de Registro de Imóveis, verdadeiras fábricas de papéis, há mais de 300 anos, que só existem no Brasil e Portugal”. Esta a primeira parte da manifestação. E, logo em seguida, com aposto registra, “legalizar propriedades é uma guerra burocrática e judiciária, daí a atual confusão”.

Eu gostaria de fazer alguns comentários para poder compreender qual é a verdadeira função do Registro Imobiliário, qual é o papel que joga no fomento do crédito imobiliário. Esse papel, logo devo dizer, é o da segurança jurídica; é a segurança que os senhores procuram; na outra ponta está a segurança daqueles que contratam com os agentes financeiros e que adquirem a propriedade. É esta a pedra angular de todo o sistema. 

Cartórios só existem no Brasil?

A primeira inverdade que existe nessa declaração é que os cartórios só existem no Brasil e em Portugal. Esse é um mito que está circulando, ultimamente, na imprensa. Mas não só. Figura em papers, alguns apresentados no recente Fórum Social (RS), contendo virulenta manifestação contra cartórios, dizendo que são um enguiço burocrático e que só existem no Brasil e em Portugal, como se Brasil e Portugal estivessem condenados a uma espécie de periferia civilizatória no que respeita à tutela da segurança jurídica.

Isto não é verdade e não representa evidentemente a realidade dos fatos. Nós, lusófonos, temos registrado em exclusividade em nossos léxicos a belíssima palavra cartório, que a última flor do Lácio consagrou na longa trajetória da língua. É uma palavra tipicamente portuguesa, de boa fonte latina, que não se encontra em nenhuma outra língua neolatina.

Entretanto, embora não conhecidos como cartórios, os serviços de registro de imóveis existem em toda a Europa, encontram-se em todos os países desenvolvidos – assim como há, em grande profusão, notários em todo o planeta, em todos os países. A recorrência da atividade em todos os quadrantes deve representar algo de relevante, responde a indisfarçadamente a uma necessidade social e, decorridos alguns séculos, indica o bom-senso que tal fato deve representar um alto valor para a sociedade.

Como identificar essa necessidade social a partir de uma perspectiva econômica?

Sabe-se que a especialização dos recursos produtivos incrementa a produtividade e essa é o motor do desenvolvimento econômico, nas palavras de Benito Arruñada (na senda de quem estaremos transitando). Continua o economista: “a especialização somente poderá ser considerada útil se os produtores intercambiam recursos e produtos, entre si e com os consumidores. O caráter custoso desses intercâmbios constituiu seguramente um freio fundamental à especialização e, conseqüentemente, ao próprio desenvolvimento. Para reduzir os custos de transação, são empregados numerosos mecanismos. Destacam-se, entre eles, instituições jurídicas que possibilitam a existência e a contratação de direitos de propriedade sobre bens imóveis. A função dessas instituições – fundamentalmente o direito imobiliário e o registro de imóveis – é a de proteger os direitos de propriedade e reduzir as assimetrias informativas entre os protagonistas das transações”. (Organização do registro da propriedade em países em desenvolvimento, 1996).

Custos de transação. Em poucas palavras: informação segura. Eficácia negocial e segurança jurídica estática e dinâmica – em outros termos, segurança dos titulares inscritos no registro e segurança de terceiros que contratam; estabilidade no direito e dinamismo na circulação de riquezas.

Como atingir esses altos objetivos?

Nas sociedades economicamente desenvolvidas deve existir um mecanismo eficiente que proveja à sociedade informações seguras a respeito do bem que se vai adquirir. Essas informações devem ser rápidas, seguras, baratas e necessitam garantir não só a figura e atributos físicos, mas a qualidade do bem que se vai adquirir. Quais as características que ostenta? Visto de uma perspectiva subjetiva, aquele que está alienando o bem é o seu verdadeiro proprietário? O que aliena, pode fazê-lo? Não tem sua disponibilidade afetada por alguma restrição? Em relação ao bem, quais as limitações de ordem legal ou convencional que experimenta? Ou visto de outro ângulo: aquele que se credencia a obter um crédito imobiliário pode oferecer garantias seguras? O devedor está legitimamente titulado (ou poderá sê-lo) como proprietário do bem? O bem que pode ser objeto da garantia, não responde por outras obrigações?

Essas indagações devem ser respondidas de maneira rápida, eficiente, e barata por qualquer sistema preventivo de segurança jurídica. Deverá ser consagrada a independência do decisor, para que se alcance (para usar uma expressão que circula nos meios econômicos) o enforcement do sistema. Só assim a constituição, manutenção, alteração, oneração ou extinção de direitos reais poderá se dar com um nível tolerável e administrável de riscos.

Os cartórios e seus sistemas de segurança jurídica preventiva

Os modelos de sistemas de segurança preventiva variam em todo o mundo. Mas é possível reduzi-los a uma tipologia essencial. Temos, de um lado, os sistemas que se filiam à comunidade do common law, mais nitidamente os EEUU, já que alguns países, como a Inglaterra, já articulam sistemas mais eficientes de registro de direitos. De outro, encontramos os países que podem ser considerados herdeiros naturais da longa tradição do direito romano-germânico.

Em linhas muito gerais, nos primeiros temos um sistema de liberdade de formas; seus cidadãos gozam da mais completa liberdade e flexibilidade para alcançar a satisfação de seus interesses. Recorrem à ajuda especializada (advogados, assessores, analistas, corretores etc.) e acabam por lograr a segurança dos contratos a posteriori, i.e., socorrendo-se de instâncias jurisdicionais, quando têm que ajustar aspectos contratuais ou quando se vêm na necessidade de executarem-no. A expressão explosão litigiosa, que povoa a literatura da sociologia jurídica, qualifica uma realidade presente nesses países, pois a atuação de advogados e assessores negociais na contratação radicaliza a perseguição dos interesses parcelares dos contratantes, muitas vezes às custas da contraparte. Quando ocorrem conflitos, que são um índice da complexidade dos contratos e da falta de um profissional que, para além dos interesses das partes, persegue o interesse social, as partes socorrem-se do Judiciário, com os custos inerentes ao processo.

Já nos segundos, temos o sistema de prevenção de possíveis conflitos e litígios, com a atuação primeira do notário – para intermediar os interesses dos contratantes, postos os olhos não somente nos seus interesses parcelares, mas na consecução do contrato, fazendo incidir regras gerais que concretizam objetivamente a boa-fé dos contratantes. A atuação dos notários é, pois, um verdadeiro sistema preventivo de litígios, pois o delegado concorre com seus conhecimentos especializados para que se diminuam os ruídos de informação, previne defeitos jurídicos e evita afrontas à ordem legal. Ainda assim, se o conflito se instaura, a atuação notarial prevê um título autêntico, de caráter público, dotado de fé-pública, o que, por si só, contribui para facilitar e agilizar a tramitação do processo judicial.

Além do notário, nesses países encontramos os sistemas de registros de segurança jurídica, com a atuação de um profissional especialmente capacitado para concretizar as mutações jurídicas que se operam com o registro. No caso brasileiro, como todos sabemos, o registro tem o efeito constitutivo do direito, isto significando que, pela atuação do registrador, que qualifica e aptifica o título que consagra a avença translativa de domínio, e o inscreve, nascendo daí o próprio direito, que passa a ser oponível erga omnes.

O registro é um precioso mecanismo que diminui, dramaticamente, os custos inerentes às transações econômicas e se constitui em fator importante para o desenvolvimento econômico.

O nosso sistema registral chega a atingir esse grau de eficiência? Não hesitamos em declarar que sim. A história está a demonstrá-lo pelos exemplos acima citados. Ainda que pudéssemos lamentar profundamente que, por desconhecimento da própria mecânica registral, e do importante jogo econômico que joga, o legislador tenha consagrado regra que pode malferir o adquirente de boa-fé. Ao prescrever, no artigo 1247 do NCC, que o registro poderá ser cancelado em virtude de postulação do proprietário, nesses casos poderá ser atingido, em pleno, os direitos do terceiro adquirente, aquele que, de boa-fé, a título oneroso, confiado no que o registro publica, adquiriu o domínio.

Isso representaria um verdadeiro retrocesso. Mas é possível uma exegese mais consentânea com o espírito que inspira os modernos sistemas registrais.

Quando se diz que o registro deve, de maneira primacial, garantir o direito do verus dominus  – cumprindo, assim, o registro, o papel de segurança estática – o que se quer dizer é que o registro protege aquele que titulariza o direito, isto é, aquele que figura no registro como seu legítimo titular. Essa a raiz da qual pode aflorar o direito de retificação, manejado unicamente para endireitar, tornar reto, o registro, na acepção própria da palavra. Ao consagrar o direito do titular, estar-se-á garantindo, dialeticamente, os direitos de terceiros, cumprindo, assim, o registro, o papel de garante dinâmico do tráfego jurídico-imobiliário. Verso e reverso da medalha da segurança jurídica, a segurança estática e dinâmica do registro representa aspectos indissolúveis do mesmo fenômeno.

Não tem sentido permitir que se retifique o registro, ou que se lhe possa fulminar com decretação de nulidade, por postulação de quem não figure no registro e contra quem seja legitimamente titulado. Não seria lógico, nem defensável, que qualquer interessado na retificação ou anulação, ainda que comprovasse seu legítimo interesse, tivesse o direito de ameaçar a posição daquele que, igualmente de modo legítimo, tenha adquirido o imóvel naquelas condições referidas (boa-fé, título oneroso etc.).

De outra forma estaremos retrocedendo à época do ancién regime, onde a força do título e da contratação privada prevalecia sobre a publicidade garantidora do fenômeno translatício.

Enfim, dizer que “cartórios só existem no Brasil e Portugal” é uma inverdade que não tem a inocência dos ignorantes. Chega a ser um grande desserviço ao debate, quando nós pensamos que há muito que fazer para aperfeiçoar estas instituições, para que sejam efetivamente consideradas e respeitadas como suporte eficiente e barato para as transações econômicas que tenham por objeto os bens imóveis.

As profundas transformações experimentadas pelos países de economia planificada dão-nos exemplos muito importantes.

O exemplo do leste europeu

Quando o Banco Mundial foi chamado para financiar a reconstrução da economia nesses países, com os acertos e desacertos que todos nós conhecemos, um aspecto que é residual nessa discussão e que eu gostaria de trazer à reflexão dos senhores é que, conjugadas todas as medidas que propiciaram aquela mutação de uma economia planificada por uma economia de mercado, o Banco Mundial exigiu, como ponto de partida, a instituição de quê? De um registro imobiliário organizado.

Trouxe aqui referências para quem quiser aprofundar o assunto, com um elenco de documentos que foram objeto de projetos aprovados e colocados em prática, impulsionados, e alguns até já consumados, no leste europeu, especificamente na Federação Russa, onde, aliás, nós vamos ter um encontro em junho para discutir justamente a reconstituição do registro imobiliário na província de Moscou.

Entre os vários trabalhos apresentados nos fóruns internacionais abordando o valor dos registros de segurança jurídica, destaquei alguns, para início de debates.

Publicamos, na Revista de Direito Imobiliário (RDI 53/13) texto de importância capital para se compreender, da perspectiva sócio-econômica, a importância dos registros de segurança jurídica. Trata-se do A função econômica dos sistemas registrais, de Fernando P. Méndez González, conferência pronunciada no Club Siglo XXI, de 21 de março de 2003, no ciclo Espanha em um mundo globalizado. O autor analisa nesse texto que a contribuição dos sistemas registrais de segurança jurídica é decisiva ao crescimento econômico. Enfatiza a importância da segurança jurídica cautelar em geral, e dos sistemas registrais, em particular. O autor demonstra que quanto mais eficientemente um sistema de registro de imóveis desempenhar suas atividades, em maior medida poderá contribuir com o crescimento econômico. Em seu trabalho, Fernando Méndez González realiza uma aproximação teórica às razões pelas quais um sistema registral de segurança jurídica preventiva é essencial ao crescimento econômico. Em segundo lugar, alude às razões pelas quais os Registros de direitos são superiores aos Registros administrativos de documentos. Em terceiro lugar, faz referência aos limites dos efeitos públicos dos documentos que contêm atos e contratos privados com relação ao Registro, caso se deseje manter um sistema registral de direitos. Em quarto lugar, faz referência ao caso espanhol e à recente e profunda reforma da qual foi objeto.

Sobre a estreita implicação que há entre desenvolvimento econômico e social e registros de imóveis, poderíamos indicar vários papers.

a) The effects of land registration on financial development and economic growth - a theoretical and conceptual framework, de Frank F. K. Byamugisha. Aqui o autor constrói um arcabouço teórico para guiar uma análise empírica de como o registro imobiliário afeta o desenvolvimento financeiro e o crescimento econômico. A maioria das abordagens conceituais investiga os efeitos do registro de imóveis em um único setor. Nesse trabalho, o registro predial é observado afetando não só alguns setores, mas a própria economia como um todo. O autor desenvolve o trabalho baseado na interação bem-testada entre propriedade imobiliária segura e produtividade agrária, acrescentando à teoria a importância da informação positiva em relação aos custos de transação. Para traçar a relação entre registro imobiliário, desenvolvimento financeiro e crescimento econômico, une à construção teórica: 1. segurança de posse e propriedade da terra e incentivos de investimento; 2. título de propriedade e crédito; 3. mercados imobiliários, transações e eficiência; 4. mobilidade da mão-de-obra e eficiência; 5) liquidez imobiliária, mobilização de depósito, e investimento. 

b) Land registration and land titling projects in ECA countries, de Csaba Csaki et. alii. EC4NR – agriculture policy note #2, Banco Mundial. Aqui o Banco responde à questão: por qual razão deveria a instituição suportar a titulação imobiliária e seu registro no âmbito da Europa e Ásia Central? E responde, em epígrafe: Toda economia de mercado tem um sistema formal de registro de domínio e de bens imobiliários e um bom cadastro. O sistema visa à segurança jurídica do proprietário, propicia garantias para os investimentos e sustenta outros direitos – públicos ou privados – sobre a propriedade imobiliária. Um sistema de registração de direitos imobiliários e de cadastro, que serve à avaliação imobiliária, utilização da terra e outros dados relacionados com gerenciamento fundiário, é uma ferramenta crítica para que uma economia de mercado possa funcionar apropriadamente.   

c) El registro de la propriedad español y las recomendaciones del Banco Mundial, de José Poveda Díaz. Esse texto foi inteiramente baseado no documento indicado no item b, supra, e foi escrito por um dos participantes da comissão encarregada de dar suporte técnico e jurídico à reconstituição dos sistemas registrais do Leste Europeu. O texto é uma descrição do sistema registral espanhol – que guarda notáveis semelhanças com o nosso – e comenta o documento de Csaba Csaki et. alii. com tradução para o espanhol.  

O Irib foi convidado, como representante dos registros imobiliários brasileiros, há alguns anos, para compor uma comissão de apoio à restauração dos sistemas registrais da Federação Russa, emprestando nossa experiência para aquela importante iniciativa. Presidida pelo Cinder (Centro Internacional de Direito Registral, com sede em Madri) e co-patrocinada pelo Colégio de Registradores de Imóveis, Mercantis e Bens Móveis da Espanha, os trabalhos se desenvolveram com bastante proveito econômico e social, rendendo outros projetos de financiamento aprovados pelo Banco Mundial. O texto Registros Públicos brasileiros são exemplo para o mundo e contém alguma informação sobre esse convênio (vide site do Irib).

Especificamente em relação ao desenvolvimento dos cartórios da Europa Oriental, notadamente da Federação Russa, e a necessária conexão com os cadastros imobiliários, deve ser consultado o projeto que figura no relatório PID11501, do mesmo Banco Mundial, que se acha em pleno desenvolvimento. O documento intitulado Russian Federation - Land Registration e Cadastre Project detalha a importância da conexão entre os sistemas de registro imobiliário e cadastro, sem desfigurar um ou outro, sem que um possa absorver o outro. 

Cartórios-farmácia, compulsoriedade e concorrência.

Uma das propostas que tem circulado pela imprensa e que soa como uma maviosa melodia para aqueles que atuam no mercado é que o registro de imóveis deveria atuar de forma autônoma e de maneira concorrencial, ou seja, que os Cartórios de Registro de Imóveis pudessem concorrer entre si, derrubando, por efeito natural do mercado, o custo do registro.

Luís Nassif sugeriu, em artigo publicado na FSP de 29 de novembro de 2002, que os cartórios poderiam ser extintos ou o modelo fundamente reformado. Vamos conhecer suas sugestões. Noticiava que o deputado José Genuíno havia proposto “um modelo de regulação tipo farmácia. Pode-se abrir cartório à vontade, mas com a atividade sendo regulada por um conselho federal – é assim nos Estados Unidos. O cliente registraria o imóvel onde quisesse, pulverizando, mas com uma fiscalização severa”. Para o articulista, “o registro não seria obrigatório. O cliente que quisesse mais segurança pagaria por ele”.

Afora as erronias que se verificam em todo o artigo (não é o caso de respondê-las aqui neste encontro) o fato é que a proposta não conta, a seu favor, com o peso da tradição e da experiência internacional e doméstica.

Em primeiro lugar, os diversos sistemas diferem quanto à voluntariedade do registro. No caso brasileiro, o registro é obrigatório – não no sentido de que haja uma sanção concreta pelo não-registro; visto de uma perspectiva social, o registro dos títulos passa a interessar não só aos titulares dos direitos, mas à própria sociedade, que necessita de um sistema eficaz de publicidade acerca dos bens imóveis e direitos a eles relativos.

O registro obrigatório do artigo 1227 do NCC deve ser compreendido de modo justo. O registro é essencial para constituição do direito real. A compulsoriedade do registro, como gravou o articulista econômico, não existe no Brasil – e bastariam os exemplos dos contratos de gaveta, admiravelmente prestigiados pelos nossos tribunais superiores, que o admitem oponíveis contra a hipoteca inscrita! Deve-se ponderar que, por conta de um interesse que é muito maior que o do proprietário singular, não se alcança a mutação que faz nascer o direito real de propriedade sem o correspondente registro. É simples saber o porquê. Existe um interesse público, legítimo, de que as parcelas urbanas e rurais estejam registradas, pois o registro garante de um lado a posição do titular do direito inscrito, por outro favorece a circulação das riquezas; provê, numa palavra, segurança jurídica. Mas a vocação do registro alcança o interesse da administração, no planejamento de políticas públicas, provendo informações essenciais para a cidade. Basta verificar o exemplo eloqüente da recente lei 10.267/2001, que prevê o intercâmbio de informações entre o registro e o Incra. Depois, o registro é o passaporte para a plena cidadania. Não é necessário estender-me sobre o evidente interesse público aninhado na recuperação, para a economia formal, de milhões de cidadãos cuja riqueza (patrimônio) é representada por títulos tirados nos balcões das ditas farmácias, vocacionados ao litígio, que assoberbam o sistema de clandestinidade jurídica representada pelos "econômicos" contratos particulares de gaveta.

Não seria lógico, nem mesmo econômico, nem socialmente tolerável, que o cidadão pudesse escolher registrar o imóvel onde quisesse ou quando bem entendesse. Não se pode concordar que o "cliente que quisesse mais segurança pagaria por ele [registro]", como chegou a sugerir Luís Nassif. Simplesmente porque o cliente (prefiro a expressão utente), na esmagadora maioria dos casos é representada por pequenos adquirentes de imóveis unifamiliares, facilmente subjugado pelas forças do mercado, que lhes impõem contratos de adesão, povoados de cláusulas abusivas, que não são discutidas previamente, nem são concertadas por um equilíbrio de interesses que essas avenças devem consagrar por intermédio de notários. Os "cartórios-farmácia" geram contratos vocacionados ao berço esplêndido das gavetas, são opacos ao sistema e geram a maior evasão tributária de que temos notícia.

Depois, o registro habilita a consulta qualificada do terceiro. Aqui o eixo fundamental do sistema, onde sobejam os interesses sociais. Atento ao terceiro, condiciona, a lei, a aquisição do domínio ao requisito do registro. A compulsoriedade deve ser vista numa dúplice vertente: condição para a consagração do domínio (função estática) e irrupção da disponibilidade (função dinâmica). Quando me referi, um pouco atrás, que a lei civil brasileira desvestiu o terceiro (art. 1247, parágrafo único), para garantia do verdadeiro senhor de domínio, insisto que a perfeita compreensão desse texto legal deverá ser feita com a conjugação dos princípios gerais do direito, impedindo que o registro possa sofrer com a instabilidade infra-registral, sediada no pantanoso mundo negocial.

Regime concorrencial nos registros?

A concorrência destrói a idéia de independência e fulmina a segurança jurídica. Assim como não podemos escolher o juiz que irá julgar nossos litígios – por mais ilustrado, independente, honrado e ético que possa ser – também não podemos escolher o registrador que vai acolher, examinar a legalidade e deferir o registro de nossos títulos.

É preciso enfatizar a função saneadora do Registrador, que nunca é bem ponderada – provavelmente pela predominância de uma cultura excessivamente jurisdicionalizante, que acaba por sujeitar todas relações jurídicas a um imprevisível desenlace jurisdicional, aumentando a carga do Judiciário e amplificando a insegurança do tráfego jurídico.    

Ainda recentemente, escrevendo para o Anoreg-SP Jornal, referimos que a função registral, se foi diluindo e perdendo importância na exata medida em que se imprimiu um caráter concorrencial às atividades registrárias, quando a concorrência, por conta das faculdades do próprio sistema, era consentida legalmente – falo especificamente do Registro de Títulos e Documentos. Nesse caso, toda vez que se remarcou a nota de individualização e atomização do serviço, acarretou-se, via de conseqüência, uma depressão na sua importância. Toda vez que se pendeu a balança, enfatizando aspectos de uma pseudo-eficiência privada, de cariz desburocratizante e modernizadora, despontando verdadeiras ilhas de excelência, com a derribada de anteparos críticos, como a eficaz qualificação registral - jogando um contraponto crítico com as atividades públicas -, se esgarçou a noção do serviço público essencial. Em suma, quanto mais débeis são as exigências do registro público, maiores são as possibilidades de que o mercado erija outras, de caráter privado, visando, sempre, balancear o ponto de equilíbrio que deve existir entre agilidade e segurança. Investir, portanto, na concorrência entre os serviços registrais, além de irracional, é simplesmente destruir o sentido mais essencial da atividade registral.

Já tivemos oportunidade de afirmar que as atividades registrais sobrevivem, hoje, principalmente após o espartilho constitucional, no desconforto de binômios tensivos e não superados dialeticamente - gestão privada de atividades públicas - acarretando uma figuração pavorosa de irmãos siameses. A superação dessa aparente antinomia é tarefa das mais urgentes. Há um progressivo descolamento das atividades registrais em face das necessidades sociais, decorrência de um desajuste procedimental que precisa ser conhecido e reparado. O diagnóstico é relativamente simples: o input do sistema registral foi potencializado com facilidades e outros expedientes que acabaram deprimindo o controle de legalidade que os registros de segurança pública deveriam exigir como expressão de sua especial vocação histórica. É a mal-amanhada “desburocratização” do registro, apregoada como vantagem econômica e como índice de modernidade. De outro lado, o output do sistema foi completamente descurado, com canais de saída complexos, onerosos e ineficientes. É o sistema de publicidade formal, atomizado, desintegrado, desbalanceado. O resultado desse desequilíbrio acaba condenando o sistema a um mero apêndice burocrático, disfuncional e afastado das reais necessidades do mercado. 

A atividade do registrador é o que se poderia confortavelmente chamar de jurisdição voluntária - tutela pública de interesses privados. E essa atividade não tem sentido se não for, como é no Brasil, exercida de forma independente. A segurança jurídica é um bem comum, por ele deve zelar o sistema. Instaurar a concorrência é inocular o germe da corrupção. É degradar os anteparos que o sistema, calcado em rígido arcabouço formal, impõe para exercer um filtro purificador da titulação que possa padecer de nulidades ou abusividades, visto da perspectiva do consumidor, visto da perspectiva do titular.

Já referi, logo acima, que a idéia de permitir um sistema de livre concorrência foi condenada historicamente e que a delimitação territorial, deferindo-se uma competência comarcal, é a maneira mais racional de se concentrar a publicidade.

A livre eleição do registrador é, ainda, elemento de desagregação do sistema, impondo ao cidadão verdadeira via crucis toda vez que necessitar da certidão de propriedade – que equivale, em nosso sistema, a um título de propriedade. A informação deve ser concentrada segundo critérios objetivos. As redes permitem a interconexão dos cartórios, provendo informação sem a necessidade de concentração física e burocrática. A circunscrição imobiliária continua sendo o mais perfeito sistema de concentração de informação registral.

A “farmácia registral” poderia eventualmente servir como metáfora – recuperando o original sentido grego da palavra –, mas é na verdade um lapsus linguae que insinua uma falha estrutural, pois que representa uma resposta sistêmica a uma patologia instalada. E nós estamos cuidando de mecanismos preventivos, isto é, anteparos purificadores que provêm segurança jurídica preventivamente.

O sistema de farmácia não funciona em lugar algum do mundo. Não confundir, por óbvio, esse desvio sistemático com a necessária interconexão do sistema através de modelos de redes informatizadas – modelo, aliás, seguido, mais uma vez, pelo paradigmático sistema registral espanhol, secundado pelos sistemas francês e italiano como se pode conferir em www.registradores.org/ultimahora/3_oct_02notafirmaelectronica.pdf  

Outro aspecto deve merecer nossa consideração. Não tem sentido pautar o registro predial brasileiro em moldes concorrenciais sabendo-se, de antemão, que, visando à garantia de terceiros, justamente estes, desconhecidos à época da contratação, não podem influir nas decisões do registrador, cuidando de equilibrar, assim, a pletora de interesses que se instauram. Desse modo, quem estaria elegendo o registrador, degradando o grau de segurança do sistema, não seria o terceiro que se fiaria na informação registral para movimentar suas decisões, mas provavelmente o próprio interessado em mobilizar o mecanismo registral, o que se pode dar em descompasso com os interesses daqueles. Em outras palavras, a liberdade de eleição das partes contratantes acabará condicionando as decisões do registrador.

Pode-se eleger o advogado, o notário que vai formalizar o título, o corretor de imóveis, o agente financeiro, mas não se pode escolher o registrador. Como registrou Benito Arruñada no trabalho já referido, “com relação à concorrência, é factível introduzi-la entre aqueles que prestam serviços de preparação de documentos, sobretudo quando operam grandes empresas, com importantes ativos. De outro modo, na organização dos registros e da jurisdição há que se cuidar da independência daquele que decide, no que diz respeito às partes contratantes, para assegurar, assim, a proteção eficaz dos direitos reais de terceiros. Nesse segundo caso, a liberdade de eleição, elemento imprescindível da concorrência, é inapropriada porque nem todos os interessados podem exercê-la”. E conclui: “Portanto, parece inevitável manter algum tipo de monopólio, no que pesem os riscos e custos que tal decisão pode acarretar. O fato de que todos os países, sem exceção, tenham optado por monopólios territoriais confirma a lógica dessa pauta organizativa”. (id. Ib.).

Enfim, com o modelo do registro-farmácia o cidadão estará sempre refém de um custoso e ineficiente sistema de livre eleição do registrador que acaba gerando exatamente o reverso do que se espera: insegurança e maiores custos de informação, sem o barateamento da registração.

Conselho de notários e registradores e agências regulatórias

O conselho de notários e registradores é matéria que ainda rende muitas discussões.



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