BE787

Compartilhe:


 

Corrupção, registro civil estatizado e outras questões


O atento leitor deste Boletim, Dr. José Guilherme Soares Filho, enviou-nos um link para interessante matéria, publicada na revista dominical do The New York Times.  

Traduzido pelo Sr. Eduardo Palo, da equipe do Irib, o texto dá-nos exemplos de corrupção no México - entre outros, a dificuldade de se efetuar o registro civil de um filho.  

Diz o Dr. José Guilherme  que “nesse momento em que a própria legitimidade dos cartórios está em discussão, como aconteceu na Comissão de Defesa do Consumidor da Câmara dos Deputados, acho interessante mostrar o risco que se corre quando se estatiza, nos velhos moldes, os serviços hoje prestados com eficiência pelos cartórios”. 

Vale conferir o texto e sopesar a advertência. (SJ)

O Estigma da Corrupção
Tina Rosenberg

Ao ser empossado presidente do México, em 1º de dezembro de 2000, Vicente Fox estava assumindo um grande fardo: a expectativa de toda a sociedade de que ele libertaria da corrupção um país que havia se tornado símbolo de calamidade. Fox foi o primeiro presidente mexicano eleito de um partido de oposição, após 71 anos de domínio autocrático do Partido Revolucionário Institucional (PRI), que manteve o poder no México principalmente através da corrupção.

As esperanças dos mexicanos em Fox eram enormes, mas novos presidentes, praticamente em todas as nações, assumem o poder em seus países com a expectativa de que extirparão algum tipo de suborno — geralmente porque prometeram fazê-lo. Talvez na Finlândia, a nação com mais baixo índice de corrupção em todo o mundo, os candidatos não precisem concorrer em uma plataforma anticorrupção, mas na maioria dos outros países, e não apenas em nações pobres ou autoritárias, isso é necessário. Discursos de posse nas capitais de todo o mundo são recheados de condenações de má conduta anterior, com promessas de que a tolerância ao peculato e suborno terminou. Em seu discurso de posse, Fox disse que combater a corrupção, "até então uma meta de importância secundária, será, doravante, uma prioridade nacional".

No entanto, tão certa quanto a promessa do novo líder de eliminar a corrupção deixada pelo seu antecessor, é a certeza de que seu sucessor estará, em poucos anos, fazendo a mesma coisa. Presidentes que assumem o cargo prometendo combater o suborno quase sempre falham, e muitas vezes deixam o cargo com alguns milhões de dólares a mais nos próprios bolsos. Prisões são feitas, mas geralmente apenas de rivais políticos. Campanhas anticorrupção vêm e vão, mas continuam as propinas de 30 por cento para a construção de uma auto-estrada, edifícios desmoronam pois fiscais são subornados, e motoristas se preparam para um assalto em suas carteiras quando avistam um policial.

Todavia, existe uma curiosa gama de lugares onde, nos últimos anos, as coisas mudaram. A Austrália, agora uma das nações mais "limpas" do mundo, foi, por um longo tempo, um faroeste sem lei. A Cingapura é hoje modelo de probidade, mas na década de 50 nadava em um mar de corrupção. A Bolívia é uma das nações mais corruptas do mundo, mas durante um certo tempo, um prefeito reformista concedeu aos habitantes de sua maior cidade, La Paz, uma moratória. Ferdinand Marcos, entre todos, honestou a receita federal das Filipinas. Mesmo em muitos países onde a fraude tem fúria rompente, alguns órgãos ou regiões se destacam pela integridade.

Nas últimas décadas, programas de combate à corrupção consistiam, principalmente, em lamentar o caráter humano. Estudos acadêmicos sobre corrupção eram prejudicados pela relutância dos eruditos em parecer condescendentes com países do terceiro mundo. Ao enfocarem a corrupção, os eruditos, absurdamente, questionavam se o problema era de fato prejudicial.

Atualmente, os custos da corrupção são amplamente discutidos, e são impressionantes. Francisco Barrio, o czar anticorrupção do México até abril passado, estimou que o suborno custava a seu país 9,5 por cento de todo o Produto Interno Bruto — duas vezes o orçamento da educação —, e notem que o México ocupa apenas posição intermediária dentre os países afetados pela corrupção. A corrupção também distorce os gastos. Há provas de que quando o nível de corrupção é elevado, governos gastam menos com educação e saúde e mais com obras públicas — obras escolhidas não pelo seu valor para a nação, mas pelo potencial da "mordida". A corrupção desestimula, em grande parte, investimentos estrangeiros. Com a globalização, seus efeitos atravessam fronteiras: quando o Banco de Crédito e Comércio Internacional fechou suas portas em 1991, 40.000 depositantes em Bangladesh perderam suas poupanças de toda uma vida.

À medida que o mundo adota nova postura, ou seja, se deve combater a corrupção para como combatê-la, surgem algumas lições surpreendentes.

• As nações mais corruptas são, de fato, as mais pobres, mas é possível encontrar corrupção de porte incalculável em qualquer lugar: negócios ilícitos entre autoridades do alto escalão e grandes empreendimentos derrubaram governos no Japão e na Europa. O dinheiro também distorce o sistema político dos Estados Unidos — o que é em grande parte legal não é menos corrupto.

• Grandes governos tendem a ser menos corruptos. Pode parecer intuitivo que uma participação ativa do governo na economia propiciaria maior oportunidade para conduta ilícita, mas, de fato, estados fracos geralmente não têm mecanismos para combater a corrupção.

• Democracia ajuda — imprensa livre, fortes partidos políticos de oposição, poder judiciário independente e sociedade civil vigorosa, todos limitam a corrupção. Mas chegar lá é um caminho perigoso. A transição para a democracia tende a ser um período bastante corrupto, durante o qual instituições frágeis, privatizações rápidas e regras confusas contribuem para o problema. Países recentemente emergindo de regimes ditatoriais tendem a ser mais corruptos que as ditaduras que derrubaram.

• Variações regionais são imprevisíveis. Países do norte-europeu tendem a ser menos corruptos que países do sul-europeu. Mas ter um colonizador honesto não significa ter uma colônia livre da corrupção. Embora a Grã-bretanha seja atualmente um dos países europeus menos corruptos, Bangladesh e Nigéria, antigas colônias britânicas, estão entre os países mais corruptos do mundo.

• Um dos fatores-chave é a forma como os país obtêm suas receitas. Petróleo é coisa grave. Países que ganham com petróleo geralmente desprezam o desenvolvimento da classe média e de sólidas instituições políticas. Alto grau de comércio internacional, excluindo o petróleo, ajuda, talvez porque o comércio tenha, historicamente, gerado nos poderosos cidadãos privados interesse efetivo em incentivar o governo e líderes a elevar os padrões a níveis internacionais. Cingapura, Hong Kong, Chile e Botswana, todas nações comerciais, são significativamente menos corruptas que seus vizinhos, e mais íntegras que muitos países mais ricos.

Nas últimas duas décadas, campanhas anticorrupção tiveram sucesso esporádico em alguns países isolados. Mas agora, pela primeira vez, o esforço contra a corrupção tornou-se global. Um grupo não governamental fundado em 1993, o Transparência Internacional, já tem divisões em 90 países. O grupo é conhecido principalmente por sua classificação anual de percepção da corrupção, ou seja, a percepção geral das pessoas trabalhando em um dado país que funcionários públicos exigem propinas. Mas o Transparência, com sede em Berlim, também mobiliza pessoas no combate à corrupção, divulgando informações sobre a melhor forma de fazê-lo.

Organizações internacionais estão tomando novas medidas contra lavagem de dinheiro e sigilo bancário. Desde 1996, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional também estão tratando da questão da corrupção. Até então, o alto escalão do Banco Mundial ignorava a corrupção, rotulando-a de problema político e dizendo que estava fora da alçada econômica do banco. Mas o motivo real para o banco não tratar da corrupção era sua representação de governos de todo o mundo, e governos não ficam satisfeitos quando sua desonestidade é exposta. Assim, desastrosamente, a questão não era tratada. (Autoridades do Banco Mundial literalmente não podiam usar o termo ''corrupção'' em seus documentos. Eles deviam escrever ''c. . . . '').

James Wolfensohn, que assumiu a presidência do Banco Mundial em 1995, decidiu que não seria mais possível fazer vistas grossas à corrupção. Assim, ele autorizou um estudo mostrando que a corrupção era um atraso significativo ao desenvolvimento, e portanto uma questão econômica, e declarou que dali para diante o banco poderia financiar projetos anticorrupção e também reter empréstimos em virtude da falta de progresso na questão.

No governo Fox, o México (onde tenho morado há mais de um ano) tornou-se um laboratório ideal para observação e entendimento desse novo enfoco global à corrupção. O México mostra como é fácil combater a corrupção quando o governo realmente deseja — e como é tão difícil chegar a esse ponto, apesar do que presidentes afirmam em seus discursos inaugurais.

Em julho de 1989, Francisco Gil Díaz, secretário-assistente do tesouro mexicano, assumiu o controle do sistema aduaneiro do país. O Presidente Carlos Salinas estava abrindo a economia do México. O país havia recentemente aderido ao Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio, precursor da Organização Mundial do Comércio, e o Acordo de Livre Comércio da América do Norte estava em fase de preparação. O México se preparava para absorver um grande aumento no fluxo de comércio exterior. Mas suas aduanas pareciam depósitos de lixo.

Gil Díaz não queria o trabalho. Quando a ele foi oferecido o cargo de secretário-assistente, ele disse ao seu chefe, Secretário do Tesouro, Pedro Aspe, que aceitaria o cargo na condição de que não trataria da alfândega. Todos sabiam que a alfândega era algo irreformável. A sabedoria convencional à época — e mesmo hoje entre o público em geral — era de que eliminar a corrupção exigia ações penais. Essa não foi uma opção para Gil Díaz, já que as complexas investigações necessárias consumiriam todos os seus recursos. Outra coisa que Gil Díaz não podia fazer era demitir fiscais alfandegários, já que eram protegidos pelo sindicato. Serviços aduaneiros, historicamente, abasteciam os bolsos das altas autoridades governamentais, e o Presidente Salinas conduzia uma administração de extraordinário descrédito e cinismo. Os interesses que Gil Díaz estaria enfrentando seriam, de fato, poderosos.

Desanimador bastante, de todas as instituições mexicanas corruptas, talvez nenhuma fosse comparada a um manicômio medieval, como a alfândega. Quando Pompilio Cárdenas, contratado para chefiar a alfândega do aeroporto internacional da Cidade do México, adentrou o armazém em seu primeiro dia de trabalho, seu instinto foi de ir para casa. O aeroporto era o ponto de entrada das mercadorias mais caras chegando ao México, definindo a imagem do país perante o comércio internacional. Além disso, o armazém estava repleto de uma desordem de mercadorias abandonadas, até carros de luxo, que haviam sido pilhadas. Caixas com substâncias radioativas claramente marcadas com a instrução "refrigerar" encontravam-se depositadas ao sol. Não havia segurança; não havia iluminação. Mesmo a cerca ao redor da pista do aeroporto havia sido derrubada.

''A desordem era intencional", disse Cárdenas ao mostrar-me fotos do antigo armazém. ''Não havia registro efetivo do que chegava. Se você não sabe o que chega em 100 vôos diários de todas as partes do mundo, dá para imaginar a magnitude da corrupção". Havia furto direto, especialmente à noite quando qualquer pessoa podia entrar e sair com mercadorias valiosas. Pessoas até entravam nos aviões. Uma máfia controlava a alfândega, com participação efetiva do pessoal das companhias aéreas, funcionários do governo, agentes alfandegários, motoristas de caminhões e policiais.

Outro problema era a quantidade de exigências necessárias para liberar mercadorias na alfândega. Eram 16 etapas e portanto 16 oportunidades para fiscais pedirem propinas. E naturalmente havia conluio, motivo pelo qual importadores influentes toleravam o sistema. Empresas pagavam funcionários para proteger suas mercadorias e liberá-las sem pagamento de impostos.

Gil Díaz conseguiu que o congresso mexicano convertesse a alfândega em um sistema adotado hoje em dia na maioria dos países. Grandes remessas eram agora manipuladas por agentes alfandegários licenciados, que faziam o levantamento das mercadorias e calculavam o imposto correto. Uma vez pago o imposto, a mercadoria passava através de um sinaleiro de inspeção aleatória. Dez por cento das mercadorias recebiam "luz vermelha" e eram inspecionadas, com severas penalidades para falsidade de informação, inclusive a possibilidade de prisão. Das 16 etapas sobraram três. Um processo que levava até um mês foi reduzido para 10 minutos. De um mês a outro, os impostos oficialmente coletados aumentaram 30 por cento.

Além de aumentar a receita e azeitar a máquina de movimentação de mercadorias, essa reforma também reduziu a corrupção. O uso do sinaleiro reduziu a possibilidade de escolha de alvos pelos fiscais, eliminando uma grande fonte de propina. ''Gil Díaz queria que o critério humano não tivesse função'', afirmou Luis Manuel Gutierrez Levy, chefe da alfândega.

Mas Gil Díaz também implantou outras mudanças. Qualquer pessoa que entrasse no armazém deveria portar identificação. Gerentes deviam deixar suas mesas e caminhar pelo local. Ele mudou postos de barreira para fronteiras reais — muitos estavam a quilômetros de distância, tornando a viagem através da alfândega opcional para os importadores. Mais importante ainda, Gil Díaz nomeou profissionais e encerrou a orgia de parentes de políticos e parceiros de jogo que herdavam a lucrativa atividade de comandar um posto aduaneiro.

Toda semana Gil Díaz voava para um posto diferente para uma inspeção surpresa, nem contando ao próprio piloto o destino da viagem até que o avião estivesse em pleno vôo. Uma vez ele até chegou a um posto de aduana em um caminhão de lixo, em um aeroporto sem serviço de táxi, o que o forçou a pedir carona.

''Pessoas dizem que os mexicanos precisam de mais educação e uma nova cultura, e eu concordo, disse Cárdenas. ''Mas não precisamos esperar três gerações para mudarmos. Precisamos de um sistema que dificulte ações ilegais". Gil Díaz mudou o comportamento dos funcionários da alfândega, ao eliminar a possibilidade de furto e suborno, aumentando a probabilidade de serem pegos. Em resumo, ele dificultou as ações ilegais.

Em seu livro ''Controlando a Corrupção'', Robert Klitgaard, agora reitor da RAND Graduate School em Santa Mônica, Califórnia, mostra como em alguns dos lugares mais improváveis a corrupção foi combatida através de simples reformas administrativas. Seu exemplo mais espetacular é a limpeza feita no Departamento de Receita Federal das Filipinas, sob comando do renomado caçador de corruptos, Ferdinand Marcos. É incrível lembrar que Marcos declarou lei marcial, em 1972, em parte para combater a corrupção. Três anos mais tarde, ele empossou Efren Plana, respeitado juiz, como diretor da receita federal. Plana demitiu cerca de cem dos mais corruptos funcionários. Ele definiu padrões profissionais mais rígidos e baniu a contratação de parentes de funcionários. Anteriormente, assessores tributários ganhavam promoções através de suborno de seus superiores. Plana criou incentivos que davam promoções e prêmios em dinheiro aos funcionários mais eficientes e justos. Contratou auditores externos e instituiu auditorias freqüentes para checagem no local. Recomendou mudanças para simplificar a legislação tributária, reduzindo o critério individual dos agentes. Em resumo, ele usou estratégias que qualquer primeiranista de administração de empresas teria imaginado. 

Da mesma forma, as reformas de Gil Díaz também foram diretas. ''Não que eu seja um gênio administrativo", disse ele. ''Essas mudanças eram simplesmente lógicas". Se era tão fácil fazer o certo, perguntei a ele, por que a alfândega estava em tal condição precária?

Veja os interesses por trás, disse ele.

E por que o governo permitiu que as coisas chegassem a esse ponto? ''Ninguém se importava'', afirmou.


E todos aqueles discursos de posse declarando guerra implacável ao suborno? Mentiras. É muito fácil acabar com a corrupção, absurdamente fácil, quando se deseja. O que é difícil é realmente querer. Gil Díaz foi capaz de quebrar a máfia da alfândega, pois tinha uma arma letal: o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA). O governo mexicano e empresários poderosos precisavam limpar a alfândega para que obtivessem o acordo comercial que tanto desejavam. Não fora pelo NAFTA, o Presidente Salinas não teria dado importância à questão aduaneira.

Quando a corrupção se instala, o sistema descarta aqueles que tentam combatê-la. Luis Moreno Ocampo, ex-diretor do grupo Transparência Internacional na Argentina, atualmente promotor-chefe do Tribunal Criminal Internacional, dá um exemplo de seu país. Logo após sua eleição, em 1999, o Presidente Fernando de la Rua, mantendo sua promessa de campanha, reduziu a "caixinha" usada para comprar legisladores. Mas quando o Congresso não aprovou suas reformas na legislação trabalhista, onze senadores foram citados como tendo recebido propina dos membros de seu gabinete. Quando de la Rua tentou manter dois membros de seu gabinete acusados de corrupção através de um rearranjo administrativo, o Vice-presidente Carlos Alvarez protestou, mas acabou renunciando. Os acusados de corrupção o derrotaram, e as reformas trabalhistas foram aprovadas.

''Você pode anunciar uma luta contra a corrupção, mas também é preciso governar'', disse Moreno Ocampo. ''E fica mais fácil governar quando não se questiona a corrupção''.

Por que é tão difícil mobilizar uma nação contra essa calamidade? A razão mais importante é a história. Tomemos o Chile como exemplo. É muito mais limpo que seus vizinhos, embora tenha poucos dos atributos da vida política que normalmente protegem da corrupção. Sua imprensa e poder judiciário são talvez os menos politicamente independentes da América Latina, sendo sua legislatura uma das mais fracas. Mas a cultura chilena de estado de direito prevalece. Essa cultura, paradoxalmente, é resultado da limitada perspectiva de potencial oferecido pelo Chile na época de sua conquista. O Chile não oferecia riquezas minerais aos espanhóis, e não havia nenhuma grande civilização indígena a conquistar. Assim, o Chile se desenvolveu como um país de classe média cujos cidadãos exigiam um governo eficaz e não corrupto.

Em outros locais, a história tem força maligna muito maior. Condena outras partes do mundo a continuarem na corrupção, mesmo quando instalam instituições que supostamente deveriam salvá-los. Um desses lugares é a Cidade do México, o clássico exemplo de cidade onde a corrupção movimenta tudo. A Cidade do México é corrupta hoje porque tem sido corrupta há meio milênio. Tem sido uma capital imperial rica e autocrática desde o império asteca do início do ano 1300.

Há dois anos, a divisão mexicana do Transparência Internacional pesquisou domicílios em todos os 31 estados e Distrito Federal da Cidade do México, perguntando às pessoas com que freqüência pagavam propinas por serviços públicos. Observou-se que a corrupção estava espetacularmente concentrada na Cidade do México. Pessoas da capital, quando paradas por um guarda de trânsito, reportaram pagar propina em 69 por cento das vezes.

Até as eleições instituídas em 1997, os prefeitos da Cidade do México eram nomeados pelo partido PRI. Todos os três prefeitos desde então vieram do Partido Democrático Revolucionário (PRD), partido esquerdista dissidente do PRI. A mudança no primeiro escalão foi significativa. Enquanto que o último prefeito do PRI, Oscar Espinoza, aguarda julgamento acusado de desviar 42 milhões, um dos três prefeitos do PRD tem apenas mancha relativamente pequena, e os outros dois tiveram reputação pessoal ilibada. O prefeito atual, Andres Manuel Lopez Obrador, conhecido em todo o México como AMLO, é considerado um puritano e dirigi pela cidade em um automóvel sedan da marca Nissan.

Mas enquanto o furto no alto escalão goteja lentamente, a probidade não. De fato pode até prejudicar. Hoje em dia, o poder na Cidade do México parece pensar que já faz bastante só por não ser do PRI. O PRD caiu vítima de um erro conceitual básico: os outros é que são corruptos. Políticos de toda parte parecem acreditar que as coisas mudam automaticamente quando eles vencem, quando de fato a cultura corporativa da corrupção é geralmente tão poderosa que devora as boas intenções de qualquer partido.

''Você espera que os partidos assumam o processo administrativo'', afirma Federico Reyes Heroles, diretor do Transparência no México, "e não simplesmente que digam 'Quando os bons assumirem o poder tudo ficará bem'. Não tenho dúvida de que AMLO seja honesto, mas o mais importante é o sistema''.

De fato, juntamente com a cultura política corrupta, o poder na Cidade do México herdou problemas que dificultam mudar essa cultura. Enquanto os mafiosos do PRI lá do topo foram varridos do governo da cidade nos últimos anos, o sindicato dos trabalhadores municipais protege da demissão os funcionários das classes mais baixas. Funcionários municipais poderiam tentar assumir o sindicato, historicamente aliado ao PRI. Mas o PRD quer o controle dos mais de 100.000 membros do sindicato e de sua formidável máquina eleitoral. Esse é só um exemplo do maior motivo individual pelo qual a corrupção persiste em todo o mundo: combatê-la requer alienar grupos e pessoas influentes, de sindicatos trabalhistas a empresários bilionários, que mantêm os políticos em seus cargos e os ajudam a fazer coisas.

Pergunte aos funcionários públicos da Cidade do México como está sendo combatida a corrupção e eles apontarão para o "controller" e auditor do Conselho Municipal. Mas esses órgãos são prejudicados por mandatos curtos e pequeno orçamento. O controller é limitado a recrutar cidadãos voluntários para supervisionar licitações de contratos municipais, e a secretaria que monitora os preços de projetos de obras públicas somente recentemente começou a usar computadores. Relatórios do auditor do Conselho Municipal geralmente são emitidos com dois anos de atraso.

Por que os funcionários municipais não pagam um preço por desatentarem a uma questão de tamanha importância pública? Um dos motivos é o segredo inescrupuloso da corrupção: como as promessas de posse, o lamento das pessoas de que estão cansadas de pagar propina é um exagero. Para aqueles sendo extorquidos, é fácil acabar com a corrupção — absolutamente fácil. Simplesmente não pagar. Mas de fato, a grande maioria dos cidadãos que queixa da corrupção é plena participante do processo. Detesto tanto a corrupção a ponto de escrever um artigo sobre ela, mas durante meu primeiro ano na Cidade do México, quando minha família morava em uma casa na região de Condesa, eu subornava meu lixeiro toda sexta-feira, como faziam todos os meus vizinhos. Com dois filhos pequenos usando fraldas, não podia nem imaginar as conseqüências de ter meu lixo deixado na lixeira.

Apesar das queixas dos cidadãos, a corrupção que acompanha uma transação comum na Cidade do México geralmente começa por eles. Meu lixeiro, que exigia sua gorjeta semanal e reclamava quando a quantia não estava exata, era uma exceção — funcionários raramente pedem propina. Ao contrário, eles trabalham tão lentamente, tão porcamente e arbitrariamente que as pessoas não têm esperança de conseguir os serviços de que têm direito, sem oferecer uma gorjeta "para o refresco".

Minha experiência tentando passar o registro de um carro usado que compramos para o nome da família — precisamos ir cinco vezes aos órgãos públicos durante meses — é mais típico. Também foi nossa experiência tentando obter uma certidão de nascimento para nossa filha nascida no México. Quando meu marido e eu fomos ao cartório de registro civil em nosso bairro, dezenas de pessoas, muitas carregando seus filhos, aguardavam sentadas em precárias pilhas de caixas de papelão em duas salas pequenas repletas de lixo. Ninguém se preocupava em ajudar as pessoas a saberem por onde começar, não havia avisos nas paredes informando a documentação necessária, não havia entrega de senhas. Um funcionário nos disse que não poderíamos registrar o bebê sem as certidões de nascimento dos avós. No balcão seguinte nos disseram que poderíamos. (Em um cartório próximo, um funcionário tinha oferecido conseguir a certidão por uma gorda propina). Pagamos um despachante (também chamado de "coiote") para nos ajudar com a transação, e pelo menos conseguimos quase tudo pronto em uma manhã. Um conhecido nosso, que fez tudo sozinho, precisou fazer quatro viagens.

Não sou a única residente na Cidade do México farta de tudo isso. Todos se queixam o tempo todo. Mas quando a propina é a única forma de conseguir serviços sem perder uma semana de trabalho, as pessoas subornam.

O que a sociedade realmente precisa, naturalmente, é de um sistema que não exija propina para se fazer as coisas. Mas isso está longe da experiência das pessoas em lugares como Cidade do México, onde funcionários públicos não são punidos quando não produzem. Nem as pessoas aqui acreditam na sua capacidade própria de influenciar em um processo de mudança. Hoje o México sofre duplamente o fatalismo comum na América Latina, já que é também, de certa forma, uma sociedade pós-União Soviética. A doutrina do partido PRI não era Marxista, mas sim Leninista, após um modismo, eliminando eficazmente a sociedade civil ao engolir organizações independentes. A ressaca persiste, criando um círculo vicioso de corrupção e inatividade que torna o fatalismo totalmente racional. Será que deveria queixar-me ao chefe do meu lixeiro? Ele provavelmente fica com parte da minha gorjeta. A fartura geral é uma emoção sem sentido, a menos que haja um canal para transformá-la em ação, mas não há nenhum.

Em teoria, é claro, existe um canal — o voto. Os cidadãos agora podem desbancar funcionários corruptos. Mas acho que isso jamais aconteceu na Cidade do México. Funcionários aqui ignoram a corrupção porque podem — não pagam o preço de perderem um período eleitoral. A maioria dos eleitores tem necessidades mais urgentes do que limpar o governo, como empregos, segurança e alimentação. E se os eleitores não acreditarem verdadeiramente que a corrupção pode um dia desaparecer, então imaginam que seriam idiotas se não tirarem uma "casquinha".

Aqui os votos não são ganhos por bons serviços, mas por favores no estilo caudilho para grupos de constituintes. O partido PRI já não controla a Cidade do México, mas seu sistema político ainda o faz. A Cidade do México é uma versão em tamanho gigante da máquina do prefeito Daley em Chicago, ou de Tammany Hall em Nova Iorque. As pessoas mais idosas, por exemplo, conseguem suplemento de renda especial — mas sempre é bom estar perto de uma autoridade local do PRD. AMLO, o prefeito, pode ser pessoalmente puritano (como também era Daley), mas ele confia nos jogos eleitorais estilo PRI para manter seu apoio político.

A estratégia funciona. Nas eleições de meio mandato realizadas no mês passado, os mexicanos premiaram as duas principais máquinas políticas da nação. Em todo o país, o PRI, que nunca parou de distribuir guloseimas, ressurgiu. E na Cidade do México, o PRD venceu com absoluta maioria no Conselho Municipal, e controla 13 dos 16 distritos. AMLO, com nível de popularidade acima de 80 por cento, é o líder atual para substituir o Presidente Fox.

Assim, a democracia não trouxe ganhos imediatos para o México. Mas aos poucos, acredito, está ajudando a nação a criar um sistema de pressão política para longo prazo. Em regimes ditatoriais é sempre possível que reformas aconteçam, mas acontecem ao bel-prazer do líder, e desaparecem quando ele se cansa. Nas Filipinas, as reformas implantadas por Efren Plana se consumiram lentamente, desaparecendo completamente quando o Presidente Marcos aparentemente decidiu nomear amigos para a receita federal, em meados de 80, buscando ajudar sua família a fugir dos impostos e gerar dinheiro para sua campanha de reeleição de 1986. Mesmo em locais onde autoridades têm poder, iniciativa e imaginação para limpar a casa, esse trabalho pode dissolver-se em nada quando assim desejam.

Em uma democracia, cidadãos podem ser aliados nas reformas do governo, exercendo pressão para manter as reformas no trilho. Isso está acontecendo — embora de forma enfuriantemente lenta  — no México de hoje.

Mesmo antes de Fox tornar-se presidente, a abertura política no México libertou forças independentes contra a corrupção. Jornalistas tinham seus salários complementados por um envelope de dinheiro regularmente entregue por algum empreendimento ou ministério governamental do qual faziam cobertura. Esse não era um sistema que estimulava a reportagem investigativa. A imprensa escrita foi domada pela sua dependência à propaganda do governo. Esses conchavos terminaram nos últimos anos do PRI. Embora grande parte do jornalismo ainda seja constrangedoramente precário no México, os jornais estão começando a relatar a corrupção.

Talvez a vitória singular mais importante sobre a corrupção no México tenha sido o processo eleitoral propriamente. As vitórias do partido PRI no México foram motivos de grande infâmia durante décadas. Atualmente, o instituto eleitoral mexicano aconselha outras nações sobre como organizar eleições honestas. Essencialmente, o modo de registro, voto e apuração no México provavelmente seja melhor que o dos Estados Unidos.

Mesmo assim, eu ainda preciso conhecer um mexicano que possa afirmar que o Presidente Fox está fazendo muito para combater a corrupção, exceto aqueles que para ele trabalham. Um ano após a posse de Fox, mais pessoas realmente pensavam que a corrupção estava aumentando em vez de cair. Acredito que essa percepção do público com relação ao fracasso de Fox não é correta, mas é compreensível. Ele é um presidente reconhecidamente letárgico. Cortar a corrupção pela raiz era o tema de seu partido. Para ninguém ele atingiu as esperanças nele depositadas.

Outro motivo para a percepção do público de que Fox fracassou é que sua administração optou por não tentar adotar medidas penais em grande escala contra a corrupção — e quando tentou pegar os peixes graúdos, até agora fracassou em fisgá-los. Para a maioria dos mexicanos, e na verdade para pessoas em qualquer parte, pegar os tubarões é sinônimo de combate à corrupção. Mas de modo geral, Fox acertou ao enfatizar outras estratégias. Ações penais movidas contra corrupção passada consome tempo e dinheiro melhor gasto em outras áreas. Particularmente em sistemas judiciais disfuncionais como o do México, elas geralmente fracassam, e mesmo quando pessoas são presas, o evento é tão raro que não apresenta efeito de detenção do comportamento dos funcionários atuais.

Mas Fox fez, de fato, importantes investimentos no futuro de um governo limpo. Ele está elevando o padrão global do órgão anticorrupção. E por pressão sua, este ano o Congresso criou um serviço público federal que deverá profissionalizar o governo e cortar o favorecimento, nepotismo e empregos criados pela vontade de candidatos em deixar parte de seus salários com seus superiores.

Além disso, no mês de junho entrou em vigor a nova lei de acesso à informática de Fox. A lei reconhece que informações públicas são de propriedade dos cidadãos, e estabelece um mecanismo para permitir que as mesmas possam ser solicitadas.

A lei transfere, de forma eficaz, parte do encargo de monitorar a corrupção pelo governo, para a sociedade. Será uma fonte contínua de pressão pública específica contra a corrupção. E especificidade é importante. Como demonstra a Cidade do México, a repugnância geral à corrupção não gera mudanças. Somente quando setores poderosos exigem novos meios específicos de trabalho as reformas ocorrem.

Chamar o México, onde a sociedade civil mal consegue respirar após anos na folha de pagamento do PRI, de exemplo de sucesso no combate à corrupção é um exagero neste momento. Mas talvez não seja em alguns anos. ''No passado, presidentes não tinham organizações cívicas para as quais prestar contas'', disse Stephen Morris, perito sobre o tema "México" da Universidade do Sul do Alabama. ''Hoje o ritmo das reformas foge da administração. A sociedade civil está ampliando sua demanda e apontando falhas nos programas do governo".

Há três anos, bem após Gil Díaz ter deixado o Tesouro e pouco antes de Vicente Fox ter assumido a presidência, um elefante de nome Benny foi contrabandeado do Texas para o México para trabalhar em um circo, mediante propina de 4.500 dólares. A alfândega, parece, é uma instituição inerentemente inclinada à corrupção. Mas Francisco Gil Díaz está de volta — Fox o nomeou secretário do tesouro — e ele está novamente com suas garras na corrupção aduaneira. Demitiu toda a cúpula administrativa do departamento. Salários foram dobrados ou triplicados. Fiscais aduaneiros fazem rodízio a cada 15 dias. Até agora, mais de 1 em cada 10 agentes alfandegários perderam suas licenças.

No governo do antecessor de Fox, Ernesto Zedillo, funcionários do primeiro escalão encarregados da alfândega eram trocados quase que anualmente, e alguns deles eram claramente ineptos. Novos computadores não foram instalados durante seis anos. ''A alfândega estava abandonada'', disse Gil Díaz. ''Fizemos uma reforma durante o governo de Salinas, e agora estamos fazendo outra. Reformas são deprimentemente familiares. Dentre as pessoas sendo demitidas provavelmente muitas delas ele próprio contratou há mais de uma década. Em uma viagem recente ao porto de Manzanillo, Gil Díaz tentava fazer com que funcionários da alfândega erguessem uma cerca ao longo da rota de caminhões até as docas.

Gente dedicada, como Gil Díaz, pode continuar a erguer cercas. Mas elas só permanecerão de pé quando existir pressão de empresários preocupados com o fato de que o caos na alfândega pode lhes custar negócios, se a imprensa envergonhar a administração quando um elefante de três toneladas é contrabandeado, quando impostos coletados forem publicamente divulgados, quando houver um canal para demonstração da indignidade de cidadãos extorquidos, e um sistema judiciário capaz de realmente colocar funcionários corruptos na cadeia. Em resumo, a chave para combater a corrupção é encontrar fontes de pressão política para equilibrar o enorme peso do "nós sempre fizemos isso desse jeito" do corrupto.

No México, como em qualquer outro lugar, cercas são erguidas e derrubadas. Somente permanecem de pé quando o governo reconhece que sua fortuna está amarrada à ela, e se a cerca cair o governo cai junto.

Tina Rosenberg escreve editoriais para o The New York Times. Seu último artigo para a revista enfocou a globalização.

Confira aqui a matéria original.



Últimos boletins



Ver todas as edições