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Philadelpho Azevedo – destinação do imóvel - Apresentação - José Guilherme Braga Teixeira


Na cidade de Franca, numa tarde amena, conversávamos Sérgio Jacomino e eu a respeito de questões da atividade dos registradores de imóveis, sobre a qual Sérgio discorria com largo descortino. Lembramos, a propósito do assunto, de vários autores insignes que versavam a matéria em épocas anteriores, dentre os quais cumpre salientar, enunciativamente apenas, Lysippo Garcia, Soriano Neto, Serpa Lopes, Afrânio de Carvalho e o notável jurista, professor e autor da obra que o Instituto de Registro Imobiliário do Brasil nos brinda com a presente reedição, Philadelpho Azevedo, quando Sérgio, num momento feliz, pronunciou palavras que ficaram gravadas em minha mente de modo indelével: “há homens cujo pensamento não se restringe aos eventos do seu tempo, mas se projeta para o futuro” (escuso-me com o Presidente do IRIB se não logrei repetir textualmente aquelas palavras suas). 

Logo a seguir, ainda durante a mesma conversa, Sérgio teve a idéia de reeditar, pelo Instituto que presidia e continua presidindo, diversas obras daqueles doutrinadores citados e de outros que merecem figurar no estamento deles, sugerindo que se iniciassem as republicações por Philadelpho Azevedo e seu livro “Registro de Imóveis”, magnífica refutação à opinião de José Soriano de Souza Neto, exposta em “Publicidade Material do Registro Immobiliário (Effeitos da Transcripção)”, editado pela Gráfica d`A Tribuna, no ano de 1940, no Recife. Com Philadelpho Azevedo, o IRIB iniciaria uma série de reedições de obras dos saudosos autores mencionados e de outros de similar estatura jurídica, formando a coleção “Homens além do seu tempo”. 

Pouco tempo mais tarde, estive com Sérgio Jacomino no 5.º Cartório de Registro de Imóveis de São Paulo, após ele ter assumido tal serventia, onde foi-me, por ele, cometido o honroso encargo que aqui estou procurando desempenhar. 

Depois de muito pensar, voltei a procurar o prezado amigo em dito Cartório, não com o intuito de demitir-me do encargo que me cometera, porém para dizer-lhe que não me sentia como sendo a pessoa mais indicada para realizar os misteres que o encargo me exigia. Disse-lhe, outrossim, que aceitaria com enorme satisfação aceitar a incumbência desde que a primeira obra a ser reeditada fosse a célebre “Destinação do Imóvel”, do mesmo Philadelpho Azevedo, trabalho de altíssimo coturno com o qual preclaro autor concorreu e alcançou a cátedra de direito civil da Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro, dada a conhecer ao público pela edição do ano de 1932, editada pela Typographia Alba, de Moreira, Cardoso & Freitas, na então Capital do Brasil. É que eu já conhecida essa obra, já tendo me valido principalmente do seu quarto capítulo, que foi o tema da tese de meu doutoramento na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, no ano de 1982, com o título de “Servidão por destinação do proprietário no Direito Brasileiro”; e, demais disso, já voltara ao assunto no ano de 1997, quando, de modo sintético, publiquei estudo sobre o instituto no livro “Servidões”, pela Lejus – Livraria e Editora Jurídica Senador, desta Cidade de São Paulo. 

Bem acolhida essa sugestão, comecei a reler as obras do eminente Philadelpho Azevedo que possuía: “Registro de Imóveis (Valor da Transcrição)”, Livraria Jacintho Editora, Rio de Janeiro, 1942; “Um triênio de judicatura”, Max Limomad editor, São Paulo, sem data (2ª. Tiragem); vários outros trabalhos e pareceres; e, principalmente, “Destinação do Imóvel”. Isso tudo renovou e aumentou em mim a admiração que nutria sobre o eminente jurista (advogado com largo senso jurídico, professor de direito da mais alta envergadura e ministro do Supremo Tribunal Federal em época na qual era este uma reconhecida assembléia de notáveis), o qual, em 1941, formulara, juntamente com Orozimbo Nonato e Hahnemann Guimarães, um valioso anteprojeto de Código das obrigações que, malgrado o seu alto valor doutrinário, não se transformou em codificação. 

Durante largo tempo, contudo, persisti numa aflitiva indefinição sobre se deveria atualizar uma obra que constituía um clássico da literatura jurídica pátria, com todos os inconvenientes que resultariam de faze-lo, ou mantê-la na sua forma original, tão bem cuidada, contendo todas as oportunas citações de autores nacionais e estrangeiros efetuadas por Philadelpho Azevedo?  

Optei, finalmente, pela segunda de tais soluções, a exemplo do que fizera a Editora Saraiva com as obras “Posse de direitos pessoais” de Rui Barbosa e “Teoria simplificada da posse” de Rudolf von Jhering, publicando-as num só e único volume da série “Clássicos do Direito Brasileiro”, sob o cuidado de Alcides Tomasetti Jr. e com a apresentação de Orlando Gomes, mantendo a “Destinação do Imóvel” conforme fora publicada em sua primeira edição. 

Homem além do seu tempo, Philadelpho Azevedo, ou melhor, José Philadelpho de Barros e Azevedo, apresentou, em todas as suas publicações, inúmeros exemplos de sua extraordinária clarividência, dos quais mencionaremos, apenas exemplificadamente, alguns poucos, a seguir: 

1.º) – Opondo-se a Soriano Neto, que pregava dever ser adotado entre nós o sistema de registro imobiliário alemão, cuja exatidão proclamava, retrucou-lhe Philadelpho: “Se é, para o nosso século, e, quiçá, para o vindouro, inacessível o sistema, que se apóia no cadastro, ainda assim com pequenas falhas, não há outro remédio senão procurar uma aproximação e nunca deixar que o desânimo nos assoberbe pela impossibilidade de atingir ao ideal. Completado o Código Civil pelas providências integradas no regulamento de registros, é possível proclamar o princípio da fé pública, ainda que sem dependência do cadastro, derrubando o preconceito da reivindicabilidade absoluta” (“Registro de Imóveis”, p. 89); 

2.º) Opondo-se àquele mesmo antagonista quanto à adoção do sistema “Torrens” de registro, considerou tratar-se este de uma “utopia, artificalismo inimplantável no Brasil, a despeito dos excelentes resultados, tão apregoados e regiões novas e pouco aproveitadas da Oceania e da África” (op. cit., pp. 84-85); 

3.º) “Para a frente é o nosso lema e nada mais útil ao Brasil do que a adoção do sistema da fé pública, até onde as nossas circunstâncias permitirem, sem grave abalo social” (idem, p. 90); 

4.º) Relatando interessante caso de servidão de trânsito e de encravamento de imóvel, resumiu a questão sub iudice de modo sintético e com a agudeza de raciocínio que sempre o distinguiu: “Destarte, quando se deparar com o encravamento, haverá direito de vizinhança imposto mediante indenização e sempre instável, eis que a qualquer tempo poderá desaparecer por inútil... A servidão, ao contrário, responde, não a necessidade, mas a simples conveniência de um prédio não encravado e, normalmente, para alcançar: ‘comunicação mais fácil e próxima. Por isso, não pode ser reclamada, senão obtida por contrato’” [fl. 239, excerto do “Voto” n.º 273, publicada nas fls. 236-242 do segundo volume (Direito das Coisas) da coleção “Um triênio de judicatura”, retrocitada]; 

5.º) Já em 1932, observava que “o direito de propriedade se vem mitigando, pela prevalência do aspecto social, e temperando, pela repulsa ao abuso da face individual, para ser afinal apreciado como direito e como dever” (“Destinação do Imóvel”, Capítulo III, item 13, 3.º parágrafo). 

Poderíamos muitas considerações tecer à obra ora republicada pelo IRIB, ademais do que já referimos até aqui, pois “Destinação do Imóvel” é um clássico da literatura jurídica brasileira, da qual constitui um dos mais expressivos marcos e da qual se realça o objeto do “Capítulo IV – Servidão por destino do proprietário”, modo aquisitivo de servidões aparentes não contemplados pelo Código Civil pátrio de 1916 (como não o é, outrossim, pelo Código Civil brasileiro de 2002 – evento este que, só por si, justifica a reedição da obra). Contudo, encerramos esta singela “apresentação”, com sucinta referência à defesa que o autor fez desse modo aquisitivo com tanta veemência, que Clóvis Bevilaqua, seu ferrenho opositor no caso, reconheceu expressamente: “Filadelfo Azevedo disserta, erudita e longamente, sobre essa matéria, para concluir pela possibilidade, em nosso direito civil atual, de se constituir servidão, por destino dado pelo proprietário de dois prédios” (Clóvis Bevilaqua, “Direito das Coisas”, Editora Forense, 5ª. Edição, p. 298, penúltimo parágrafo), mencionando, em rodapé: “Com ele opinam Alfredo Bernardes e Jair Lins, e devo reconhecer que a jurisprudência vai, com eles, modificando o Código Civil, nesta parte, embora sem vantagem” (op. et loc. cit., infra). 

É que, escudando-se nas opiniões de Amâncio de Souza, Corrêa Telles, Borges Carneiro, Almeida e Souza, Lacerda de Almeida, Lafayette, Aguiar e Souza, Demolombe, Caloin e Capitant, Latreille, Alessandro Sacchi, Sala-Contarini e outros doutrinadores nacionais e estrangeiros, assim como nos códigos civis francês, italiano de 1865, espanhol, argentino, mexicano, português de 1867, austríaco, chileno, uruguaio e outras codificações, Philadelpho Azevedo demonstrou, no Capítulo IV da obra aqui reeditada, que as servidões aparentes podem constituir-se por destinação do proprietário, sem embargo de ser controvertido o reconhecimento de sua existência no Direito Romano; que, admitida, ou não, tal existência, “o direito romano só é subsidiário do nosso se for conforme à boa razão”, citando Mendes Pimentel; e que “não se pode e não se deve, portanto, estudar a questão à luz dos princípios romanos, mas, sim, à luz do direito francês, pois foi graças ao direito costumeiro francês que se ampliou o conceito jurídico das servidões, graças a ele foi que se criaram as chamadas servidões, legais e naturais que não existiam no direito romano”, referindo Jair Lins. E, tomando o partido de Alfredo Bernardes da Silva contra o parecer de Clóvis Bevilaqua, em caso concreto de ação negatória de servidão, Philadelpho Azevedo entendeu  não ter importado o silêncio do Código Civil brasileiro (a respeito da servidão por destinação do proprietário) em excluir o instituto do nosso direito, sendo possível mantê-lo em face do que dispunha o art. 7.º da Lei de Introdução ao Código Civil, remetendo, afinal, para os princípios gerais do direito, à conta dos quais pode o instituto ser recebido entre nós, na omissão da lei nacional, diante da prática estrangeira, que o consagra mesmo nos casos, raros, de ausência de lei expressa. 

Comentando o parecer de Clóvis Bevilaqua, refere Philadelpho Azevedo os três argumentos básicos do projetador do nosso primeiro Código Civil, a saber: 1.º) – o conceito de servidão exige a diversidade de donos (Código Civil de 1916, art. 695); 2.º) – a exigência da transcrição abrange todos os direitos reais (Código Civil de 1916, art. 676); 3.º) – as servidões não se presumem (Código Civil de 1916, art. 696)], para, depois de elencá-los, refutá-los, como mencionaremos a seguir. 

Quanto ao primeiro argumento, diz Philadelpho Azevedo que assim é também necessária a existência de dois imóveis pertencentes a distintos donos nos códigos civis dos países que contemplam a servidão por destino do proprietário; e que, “reunidos sob o domínio de um mesmo proprietário, se as servidões aparentes, demonstrando uma causa contínua e permanente entre dois imóveis contíguos, não revestem o caráter de servidões, no sentido técnico, é por simples subtileza jurídica, que desaparece, quando os ditos imóveis vêem a separar-se, como bem observa o referido Sala-Contarini em sua monografia citada”, ou seja, o que importa é a inerência real, que não pode ser suprimida pelo arbítrio da lei e, muito menos, por sua omissão. 

Quanto ao segundo argumento, diz derivar do art. 676 do Código de 1916 a exigência de transcrição dos direitos reais sobre imóvel, salvo os casos expressos previstos no código, para argumentar, rebatendo, que o direito anterior era mais rigoroso (Decreto n.º 370, de 1890, art. 238: “a lei não reconhece outros ônus reais, senão...”) e, nada obstante, juristas do tomo de Lafayette e Lacerda de Almeida admitiam a existência da servidão por destino”. Defende, por outro lado, a opinião de não estarem os direitos reais circunscritos a um numerus clausus e propugna por que o Código só exige o registro das servidões não-aparentes. 

No que tange ao terceiro argumento de Clóvis Bevilaqua, observa que também os códigos civis estrangeiros excluem as presunções de existência de restrições ao domínio que, este sim, presume-se livre, citando o exemplo do art. 3.044 do Código Civil argentino, o qual, embora prescreva reputar-se o domínio sempre livre, admite a servidão por destinação do proprietário. E defende a opinião de que “não constitui mera presunção a existência real, visível, aparente e contínua, ou mesmo só aparente, da serventia, da inerência”. 

Por fim, citando a jurisprudência (lato sensu, englobando a doutrina e os julgadores tribunalícios, como era costumeiro na época), nosso autor defende a possibilidade de virem a constituir-se, por destinação do proprietário, não somente as servidões aparentes e contínuas, como também as servidões aparentes e descontínuas, em particular a servidão de caminho, de que cuida em especial. 

Não tiremos, porém, aos leitores, o enorme prazer de leitura, aprazível e proveitosa (e, mais do que isso, deleitosa) da obra que o IRIB traz, agora novamente, àqueles a quem interessa o assunto. E fiquemos por aqui. 

José Guilherme Braga Teixeira. 


DESTINAÇÃO DO IMÓVEL
Philadelpho Azevedo

CAPÍTULO I

NATUREZA  DO IMÓVEL


1 – Conceito de direito real. 2 – Função jurídica da coisa. 3- Conceito de imóvel.
4 – Divisão dos imóveis. 5 – Acessão. 6. Autonomia da mina.


Conceito de direito real

1 – Bacon, ao assentar as bases da moderna indução, preconizou a tortura da natureza, pelos processos experimentais, que desenvolveu na sua Instauratio magna.

Na ordem conceitual, têm os juristas e filósofos usado de análogos processos de tortura, ao analisar os elementos constitutivos do direito.

A essa dissecação anatômica tem resistido o elemento sujeito, dada a persistência de opiniões, respeitáveis, no sentido de negar a sua revelação em alguns casos.

Pacífica é, porém, a asserção de que a coisa não pode assumir a função de sujeito, afora certas extravagâncias de atribuí-la a animais e plantas.

O Código Civil Português dispôs no art. 369:

 

“Coisa diz-se em direito tudo aquilo que carece de personalidade”.

Mesmo apreciada como objeto de direito, a coisa tem descido a um plano inferior; na conceituação dos direitos reais, por exemplo, a opinião de que consistem na submissão direta da coisa ao poder da pessoa, como relação entre esta e aquela, tem cedido o passo à concepção do vínculo universal entre um sujeito ativo, determinado, e todos os outros sujeitos passivos, obrigados a respeitá-los: continua aqui



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