Bens de domínio público - matriculação no Registro de Imóveis
Por provocação da Dra. Cláudia Berê, Promotora de Justiça na Capital de São Paulo, integrante do Caohurb - Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Habitação e Urbanismo, de São Paulo, e tendo sido questionado na Audiência Pública realizada pelo Ministério Público de Guarulhos (BE #499, de 20/06/2002), gostaria de submeter aos assinantes deste Boletim Eletrônico um importante tema para debates e confronto de opiniões: a viabilidade jurídica da matriculação de bens de domínio público.
Desde logo sustentei a viabilidade do atendimento do pedido, quando formulado pelo ente público, provocando o début matricial do bem de domínio público. O procedimento conta com o aval de alguma jurisprudência da Eg. Corregedoria-Geral da Justiça de São Paulo, material que nesta oportunidade tenho o gosto de divulgar.
No longínquo ano de 1992, em São Bernardo do Campo, havia enfrentado o tema quando escrevente do excelente Registro de Imóveis daquela comarca, a cargo do colega Vicente do Amaral Gurgel, a quem rendo minhas sinceras homenagens nesta oportunidade.
O Município de São Bernardo do Campo, àquela altura, havia requerido diretamente ao Juiz Corregedor-Permanente do cartório a abertura de matrícula de área relativa a leito de um logradouro público que, desafetado, seria posteriormente permutado com um particular para regularização do traçado viário.
O pedido foi indeferido. Posteriormente, em decorrência de recurso administrativo, a Eg. Corregedoria-Geral da Justiça acabou deferindo a pretensão, reformando a decisão originária.
Embora a pretensão tivesse sido deduzida diretamente em face do Corregedor-Permanente, nas informações prestadas pelo Cartório era necessário enfrentar diretamente a questão - e se possível afirmar a viabilidade de se proceder à matriculação de bens públicos, que, desafetados por lei municipal, passariam a integrar a categoria de bens públicos patrimoniais.
Assim se fez. O Registrador Vicente do Amaral Gurgel sustentou o acesso do pedido.
Mas o tema não era pacífico, doutrinária e jurisprudencialmente; divergem ainda hoje os autores e os tribunais brasileiros acerca de questões como: bens públicos são registráveis? Se positivo, a que título o são? Logradouros públicos originados de loteamentos irregulares, ou daqueles instituídos anteriormente ao Dec.-Lei 58/37, integram o patrimônio público? Esses bens são registráveis? Qual o efeito do registro? Havia uma série infindável de questões, cujas respostas haveriam de repercutir, favoravelmente ou não, na pretensão do Município.
O Primeiro Registro de Imóveis de São Bernardo do Campo entendeu ser possível o registro dos chamados bens públicos de uso comum do povo, perfilando os argumentos e opiniões que abalizaram esse entendimento. Cuidou-se, especialmente, de alguns bens públicos, quais sejam: os logradouros que, em decorrência de implantação de loteamentos, regulares ou não, passaram a integrar o domínio público.
As anotação feitas àquela época são as seguintes:
O parcelamento do solo urbano e a instituição de loteamentos foram regulados em nosso país por diversos diplomas legais, desde o Dec.-Lei 58, de 1937, e seu Decreto Regulamentador n. 3.079, de 1938, passando pelo Dec.-Lei 271, de 1967, até a vigente Lei 6.766, de 1979, que derrogou as antigas disposições legais concernentes ao parcelamento do solo urbano.
A progressiva preocupação do legislador com aspectos urbanísticos, se afastando daquela angulação excessivamente privatista que caracterizava a antiga lei de loteamentos, acarretou um considerável aperfeiçoamento no tratamento dispensado aos logradouros públicos em loteamentos, que agora se transmitem, ex-vi lege, ao domínio do município, tão-só pelo registro no Ofício Imobiliário. Se na vigência do Dec.-Lei 58/37 as vias de comunicação e espaços livres eram gravados com a inalienabilidade (art. 3º), hoje passam a integrar o domínio do município (art. 22 da Lei 6766/79).
Parece indiscutível que, sob a égide da atual Lei de Parcelamento do Solo Urbano, as vias e praças, espaços livres e áreas destinadas a edifícios públicos e outros equipamentos urbanos, são integrados ao patrimônio do município desde a data do registro do loteamento. Há, inclusive, prescrições normativas da Corregedoria-Geral da Justiça de São Paulo, facultando a matriculação desses bens.
Domínio público - domínio eminente
A desnecessidade do assento nos registros imobiliários dos chamados bens de domínio público é enfaticamente defendida pelo acurado comentarista da Lei de Registros Públicos, Walter Ceneviva:
"O registro do loteamento tem efeito constitutivo de direito em favor do município. Efeito que nasce com o registro, na data deste. As vias, praças e espaços livres, áreas destinadas a edifícios públicos e equipamentos urbanos, constantes do projeto e do memorial descritivo, passam a pertencer ao domínio municipal, independentemente de outros assentos. Os bens públicos integram o patrimônio da União, dos Estados e dos Municípios. O domínio público é uma das formas de exercício da soberania, nem confundível com a propriedade, nem a ela equiparável. Por isso não é sujeito ao registro imobiliário, destinado às modificações dos direitos reais sobre imóveis" (Lei dos Registros Públicos Comentada, São Paulo: Saraiva, 7ª ed., 1991).
Não se pode concordar com o ilustre professor em seu corolário, resultando não registrável o bem de domínio público tão-só por ser este "uma das formas de exercício da soberania". Entre outros motivos porque a expressão domínio público não comporta um entendimento unívoco; ademais, não é o fato de ser este uma das manifestações de Soberania interna que tornam necessariamente insuscetíveis de registro os bens assim categorizados – a contrario sensu, todos os bens (inclusive os privados) não seriam registráveis, já que em certo sentido, como adiante se verá, a Soberania é poder político que submete todas as coisas em seu território. De outra parte, afirmar não o ser porque o registro imobiliário destina-se "às modificações dos direitos reais sobre imóveis", soa ilógico: como se, dentre os bens de domínio público não se achassem justamente... os imóveis. Acrescente-se: há registros cujos efeitos são meramente declarativos de direitos, não operando a mutação jurídico-real a que se refere o autor ("destinado às modificações dos direitos reais" – vide art. 172 da LRP).
O renomado mestre parece estar se referindo ao que os administrativistas chamam de domínio eminente – poder político que submete à sua vontade todas as coisas de seu território. É, sim, uma das manifestações da Soberania interna, como afirma Hely Lopes Meirelles. Entretanto, não sendo direito de propriedade, este domínio alcança tanto a propriedade privada, quanto os bens pertencentes às entidades públicas e até as res nullius – os chamados bens adéspotas, na expressão de Diogo de Figueiredo Moreira Neto. É em nome do domínio eminente, conformado à ordem jurídico-constitucional, que serão estabelecidas as limitações ao uso da propriedade privada e o exercício do poder de polícia.
Portanto, não se pode, sic et simpliciter, afirmar que os bens de domínio público são insuscetíveis de ingresso no registro imobiliário justamente porque este seria uma das formas de exercício da Soberania; essa potestas, inerente ao chamado domínio eminente, é geral, e se não confunde com o domínio público patrimonial, como adiante se verá.
Domínio público - definições
A definição de domínio público é equívoca, o que levou o mestre Hely Lopes Meirelles a conceituá-lo em sentido amplo, e em seus desdobramentos político (o já referido domínio eminente) e jurídico (domínio patrimonial). É importante distinguir claramente esses aspectos, porquanto sua inteligência nos levará, como consectário lógico, a afirmar a viabilidade do registro.
"Esse poder superior (eminente) que o Estado mantêm sobre todas as coisas existentes em seu território, não se confunde com o direito de propriedade que o mesmo Estado exerce sobre as coisas que lhe pertencem, por aquisição civil ou administrativa. Aquele é um domínio geral e potencial sobre bens alheios; este é um domínio específico e efetivo sobre bens próprios do Estado, o que o caracteriza como um domínio patrimonial, no sentido de incidir sobre os bens que lhe pertencem."
"O domínio patrimonial do Estado sobre os seus bens é direito de propriedade, mas direito de propriedade pública, sujeito a um regime administrativo especial. A esse regime se subordinam todos os bens das pessoas administrativas, assim considerados bens públicos, e, como tais, regidos pelo direito público, embora supletivamente se lhes apliquem algumas regras da propriedade privada. Mas, advirta-se que as normas civis não regem o domínio público; suprem, apenas, as omissões das leis administrativas" (Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo : RT, 15 ª ed. p. 421)
Walter Ceneviva, ao passo que nega qualquer assento no cartório imobiliário de bens de uso comum do povo, traz à colação acórdão do Conselho Superior de Magistratura de São Paulo (Ap. Cv. 261.330, Sorocaba, RT 506/118), em que foi apelante a Prefeitura Municipal de Sorocaba, cuja pretensão era ver matriculados em seu nome, no competente ofício registral, os espaços livres de um loteamento regularmente registrado. Foi negado provimento ao pedido, sob o argumento fundamental de que a Lei 6015/73, em seu artigo 1 dispõe que são disciplinados os serviços estabelecidos pela legislação civil, não se confundindo as sistemáticas legislativas que regulam o domínio privado e o público, já que o artigo 1. do Código Civil dispõe que este regula os direitos e obrigações de ordem privada, concernente às pessoas, aos bens e às suas relações.
Ora, tal absolutismo na distinção que vinca inexpugnavelmente os domínios privado e o público não aproveita à razoabilidade e inteligência do tema, especialmente porque a característica sui generis de tais bens, que aqui se reafirma, não os inabilita, de forma absoluta, ao registro. Exemplo disso é que hoje se verifica uma produção legislativa considerável prevendo justamente a registrabilidade de bens nessa categoria: a) registro da propriedade de bens imóveis discriminados administrativamente ou possuídos pela União (Lei 5972, de 11/12/1973, com a vigência prorrogada sucessivamente pelas Lei 6282/75 e 6584/78; b) cadastro de terras públicas (Lei 5868/73), c) processo discriminatório de terras devolutas da União (Lei 6383/76). Os bens de que tratam as supra citadas normas jurídicas não são outros que não os bens de domínio público aqui considerados e, mesmo não se confundindo as sistemáticas legislativas que regulam os domínios público e privado, não deixam, tais bens, de percutir no registro imobiliário. Além disso, o próprio Código se ocupa dos bens públicos – domínio do Direito Administrativo – nos artigos 65 e seguintes, prevendo, inclusive, os casos em que poderão perder a sua característica peculiar de inalienabilidade.
Por interesse da Administração Pública, pode se lhe afigurar mais conveniente a submissão dos bens afetados ao domínio público a outro regime jurídico; em outras palavras, tal bem pode ser desafetado. Daí, observada a regra do art.67 do Código, podem ser alienados e deverão, obviamente, ser objeto de registro no ofício imobiliário competente.
Valmir Pontes (Registro de Imóveis, São Paulo : Saraiva, 1982, p. 6-7) e Maria Helena Diniz (Sistemas de Registro de Imóveis, São Paulo : Saraiva, 1992, p. 455) sustentam a viabilidade do registro de bens de propriedade pública. Argumentam, em síntese, que quaisquer atos de alienação ou oneração de imóveis (públicos ou privados), ou qualquer fato superveniente que de uma maneira ou de outra com eles atine (averbações de construção, mudança de numeração predial etc.) são subordinados a registro na circunscrição imobiliária correspondente. Para os autores, a confusão doutrinária que se estabeleceu sobre a viabilidade do registro imobiliário de tais bens origina-se do fato de que casos há em que a propriedade imobiliária pública não decorre do registro imobiliário, mas advém de expresso comando legal.
O sempre lembrado e pranteado mestre Afrânio de Carvalho, referido pelos dois autores supra citados como sendo um defensor peremptório da inadmissibilidade do registro da propriedade pública (Diniz, M.H., op. Cit., p. 455, nota 1 e Pontes, op. Cit. p.6, nota 3), nas edições mais recentes de sua conhecida obra, Registro de Imóveis (Forense, 1982, 3ª ed. p. 43-47), tece variegadas considerações acerca do tema. Contrariando-os, afirma:
"Ao acolher apenas os imóveis particulares, deixando livres os imóveis públicos, o registro tem em vista que a propriedade pública não necessita da proteção por ele oferecida, por estar a salvo de atos jurídicos dos particulares. Nada obsta, porém, que a administração pública resolva futuramente subordinar todos os imóveis públicos ao Registro, a fim de que esta reflita a imagem completa do território do País. Essa fase provavelmente será atingida mais adiante como natural decorrência do cadastro, do qual se pode dizer, como já se disse da natureza, que tem horror ao vácuo..."
"De parte essas observações sobre categorias de bens públicos, talvez não haja temeridade em admitir, à vista de episódios atuais, que no futuro o Registro de Imóveis venha a dar publicidade às mutações jurídico-reais tanto da propriedade particular, como da propriedade pública, embora, no tocante à segunda, só sirva para facilitar trâmites administrativos na rotina das repartições, ao contrário do que acontece relativamente à primeira, em que serve para criar ou extinguir direitos. A integração imprimirá ordem aos assentos de ambas as propriedades, que disso se beneficiarão mutuamente."
"Todavia, na passagem da propriedade pública para a particular ou desta para aquela também se interpõe o Registro, uma vez que sem este não há aquisição nem perda da propriedade particular. Assim os imóveis públicos que se transmitirem ao poder público ficam sujeitos à inscrição no Registro. No primeiro caso, porque os particulares só adquirem imóveis pela inscrição (Cód. Civ., art. 530, I) e no segundo caso porque só perdem a propriedade particular igualmente pela inscrição (Cód.Civ., art. 589, I)."
Comentando um caso concreto, que foi objeto de dúvida suscitada pelo registrador do 2 º Ofício de Registro de Imóveis do Rio de Janeiro – e que guarda alguma semelhança com o que aqui se discute – o monografista relata caso em que o interesse urbanístico da municipalidade se impôs com o registro de áreas não tituladas. Pedimos vênia para a extensa transcrição:
"(...) Conquanto essa inscrição não tenha evidentemente efeito constitutivo, mas apenas declarativo, a sua conveniência prática nem precisa ser realçada, de vez que é o próprio poder público que a sente e a externa ao requerer a formalidade, atraído irresistivelmente pela tendência à universalização do Registro de Imóveis. Assim, por Decreto-lei de 1939 a União transferiu, por permuta, à antiga Prefeitura do Distrito Federal, dentre outros imóveis, a área correspondente ao Morro de Santo Antônio, na cidade do Rio de Janeiro. Posteriormente, o Estado da Guanabara, hoje cidade do Rio de Janeiro, sucessor da antiga Prefeitura do Distrito Federal, adquiriu, por desapropriação, imóveis situados junto ao citado Morro, que foram dessa maneira inscritos em seu nome. Pretendendo, para o fim de reordenamento, anexar a área correspondente ao Morro de Santo Antônio à dos imóveis desapropriados e inscritos, o Estado requereu a inscrição (transcrição) daquela em seu nome, juntando o Decreto-lei e, para atender ao requisito da especialização, um memorial descritivo. O Registro de Imóveis vacilou em admitir a inscrição (transcrição), tanto por ser desnecessária, em se tratando de imóvel pertencente ao patrimônio público, como por omitir o título aquisitivo, o Decreto-lei, as características e confrontações do imóvel, fornecidos, fora do título, pelo memorial descritivo do adquirente. Daí, a dúvida levantada perante o Juiz dos Registros Públicos, que reconheceu a conveniência prática de submeter ao Registro de Imóveis uma área não constante dele, mas que iria somar-se a outra dele constante para o fim de reordenamento."
Superaram-se, no caso, dificuldade como: a) desnecessidade (alguns afirmariam: impossibilidade) de registro de imóvel pertencente ao patrimônio público; b) omissão do título aquisitivo (in casu: decreto-lei); c) especialização produzida fora do título.
Entendendo ser possível, em tese, o registro de bens de domínio público, superando a alegada intransponibilidade absoluta entre os domínios do direito público e o privado, vamos considerar o caso concreto.
Logradouros públicos em parcelamentos ilegais
Já se acenou supra com a faculdade de se matricular as vias e praças, espaços livres e áreas destinadas e edifícios públicos e outros equipamentos urbanos, nos casos de registros de loteamentos procedidos sob a égide da Lei 6766/79. Há expressa previsão, nas Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo:
"Registrado o loteamento, o oficial poderá, a seu critério, abrir matrícula para as vias e praças, espaços livres e outros equipamentos urbanos constantes do memorial descritivo e do projeto, registrando, em seguida, a transmissão do domínio para o município" (Item 175, Cap. XX das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo).
Aqui não há dificuldades. Contudo, nos casos de loteamentos constituídos sob o comando do Dec.-Lei 58/37, e ainda no caso dos chamados loteamentos ilegais, cujas espécies são os clandestinos (não aprovados pela municipalidade) e os irregulares (os aprovados pela Prefeitura mas não registrados, ou registrados e executados em desconformidade com o plano) dá-se o mesmo? É o caso dos loteamentos instituídos anteriormente a 1937, em que não havia previsão legal para o registro?
Mais especificamente, se pede a matriculação e registro em nome do Município de São Bernardo do Campo de uma via pública. Em primeiro lugar, cumpre assinalar que a aquisição originária da área deu-se em 1927, conforme relata certidão do Cartório. Tal certidão declara que não consta ter sido o parcelamento inscrito nos termos do Dec.-Lei 58/37 e nem há regularização pela Lei 6766/79. Portanto, pelo que se depreende dos documentos oferecidos, a Vila não é originada de um parcelamento regular. Daí decorrem alguns fatos importantes. Em primeiro lugar, cabe indagar se as vias de circulação desse núcleo habitacional, há muito integrado no perfil urbano da cidade, podem ser consideradas, ainda, como de domínio privado – vale dizer, de domínio do loteador. Ou por outra: se esses bens foram ou não afetados ao domínio público pela destinação, conceito que abaixo se examinará. Em seguida, vamos analisar a viabilidade de matriculação e registro, em tese, das vias de circulação deste parcelamento do solo, já que, a rigor, todas as vias que a compreendem acham-se transcritas em nome desse mesmo loteador, não havendo qualquer anotação de alienação nos sucessivos registros prediais a cujas circunscrições pertenceu o imóvel.
Arruamento privado?
Hely Lopes Meirelles afirma ser inadmissível o arruamento privado ou mesmo a rua particular em zona urbana (Direito Municipal Brasileiro, 5 ª ed., São Paulo : RT. p. 402-3), acrescentando que todo sistema viário de uma cidade é de uso comum do povo e, nos casos de "loteamento fechados", sendo tais vias reconhecidas e oficializadas pela Prefeitura, deixam de ser particulares, passando a bem de uso comum do povo.
Já o Prof. José Afonso da Silva (Direito Urbanístico Brasileiro, São Paulo : RT, 1981, p. 250-2) afirma que no sistema legal vigente não se pode admitir a rua particular. Assim, por princípio, o sistema viário urbano compõe-se de vias públicas de uso comum ou especial do povo e a Administração Pública pode adquirir tais bens por uma das três formas que relaciona: a) execução de obras públicas de arruamento ou de simples abertura de rua isolada; b) inscrição de loteamento privado; c) oficialização de rua particular; sobre esta última, In verbis:
"Se a rua for aberta por obra pública, será pública, ainda que tenha sido construída em terreno particular, pois, então, o fato caracterizará desapropriação indireta. Se as vias forem abertas em loteamento irregular ou clandestino, elas se tornarão bens de uso comum do povo, por destinação, decorrente de ato de vontade do loteador (...)" (Op.Cit. loc. cit)
O prestigiado professor dedicou um parágrafo inteiro de sua obra ao problema da rua particular (Op.Cit., parág. 21, p. 268). Pela pertinência de suas acuradas observações, pedimos vênia, mais uma vez, para uma extensa transcrição:
"Não tem sentido continuarmos apegados ao formalismo jurídico, para não conceber como públicas as vias de circulação desses procedimentos parcelários do solo, só porque o loteamento não foi aprovado pela Prefeitura ou não foi inscrito no registro imobiliário. Ora, desde que tenham sido vendidos os lotes, ou boa parte deles, e a situação se apresente irreversível, não há por que recusar o efeito proposto. Pois, na verdade, como já notamos antes, o loteador, clandestino ou irregular, ao parcelar a sua gleba e destinar o sistema de arruamento à utilização pública, procede no seu exclusivo interesse, por um lado, e, por outro, por vontade própria, motivada precisamente por aquele interesse, desfez-se da propriedade daquelas áreas, priva-se dessa propriedade, despoja-se desse seu direito em favor da coletividade, porque só assim poderá auferir os benefícios decorrentes das relações sociais que o arruamento gera para o seu loteamento. Em compensação pela perda da propriedade das áreas destinadas a vias, recebe as vantagens econômicas próprias do empreendimento, que, sem tais vias, seria inviável. Essa situação caracteriza um meio normal de perda da propriedade, por interesse e vontade própria, em favor da coletividade. Por isso, a consolidação dessa situação jurídica requer apenas o reconhecimento e, conseqüente, oficialização das vias, mediante o estabelecimento do respectivo plano de alinhamento, pelo qual se corrigirá as distorções existentes."
O eminente Prof. Diógenes Gasparini, em sua obra o Município e o Parcelamento do solo (São Paulo : Saraiva, 2a. ed., 1988, p.110-112) registra que tais áreas, em parcelamentos ilegais, passam ao domínio municipal por destinação.
Os autores que tratam do direito administrativo afirmam, pacificamente, que aqueles bens, por destinação, e por conta do chamado concurso voluntário, extensamente comentado pelo Prof. José Afonso da Silva acima, passam a integrar o patrimônio público.
Alguma jurisprudência
A jurisprudência vem de reafirmar tal entendimento. Vejamos:
"Tratando-se de loteamento de fato, é de concluir-se que a Municipalidade tornou-se titular das ruas e praças e espaços livres, em virtude do concurso voluntário. (...) Ora, exigir-se a inscrição do loteamento de fato para a verificação do concurso voluntário seria beneficiar-se duplamente o loteador faltoso. Com efeito, na prática, tais loteamentos, dadas as repercussões de ordem social e econômica são irreversíveis, e existem infelizmente centenas por aí afora sem que o Poder Público possa fazer a questão ao estado anterior. Em segundo lugar, reconhecer a impossibilidade do concurso voluntário nessas hipóteses, constituiria manifesta falha de interpretação da vontade da lei e verdadeira interpretação gramatical do dispositivo legal. (...) A aparente clandestinidade do loteamento não havia de impedir a formação do domínio público sobre as áreas reservadas (...)" (RE. 84.327-SP, rel. Min. Cordeiro Guerra, In RTJ 79/991)
"O direito à via pública, constituído em favor do Poder Público, somente se integra com a inscrição do loteamento, ou com a caracterização de aspecto de fato: utilização da via como coisa de uso comum". (AC. 6.692, TJRGS. In RT 412/363).
Podemos concluir que todos os logradouros são bens de uso comum do povo, portanto bens de domínio público por destinação, independentemente da regularidade do loteamento, mormente quando tais núcleos se achem entranhados no sistema urbano de uma cidade, como é o presente caso.
Por outro lado, parece-nos lícito uma aplicação analógica do art. 22 da Lei 6766/79 aos casos de loteamentos instituídos sob a égide do Dec.-Lei 58/37, e àqueles parcelamentos do solo operados anteriormente à vigência deste último dispositivo, embora se reconheça que, neste caso, a analogia deva ser prudente e criteriosamente utilizada – por se tratar de Direito Público. A analogia consiste em aplicar a uma hipótese não prevista em lei a disposição relativa a um caso semelhante, na lição do Eminente Ministro Carlos Maximiliano. Assim, apoiando-se numa regra já existente (In casu: a) transferência ao domínio público, ex vi do art. 22 da Lei 6766/79; b) facultatividade de matriculação de tais áreas, ex vi do item 175, Cap. XX, das NSCJSP), poder-se-ia atender à pretensão da municipalidade manifesta nestes autos. Assim tem sido entendido pelos Tribunais, conforme se demonstrou acima.
Por fim, nunca é demais reiterar que os atos administrativos gozam da presunção de legitimidade em decorrência de princípio basilar do Direito Administrativo – Princípio da Legalidade – em razão do qual se presume que toda a atividade da Administração Pública junge-se aos mandamentos da Lei. Assim, se por ato da municipalidade se oficializa uma via pública, admite-se, ao menos como uma presunção juris tantum, que tal ato administrativo esteja em perfeita consonância com a Lei, que o tal logradouro esteja sendo admitido e integrado nos sistemas viários como bem de uso comum do povo por destinação, independentemente do registro do loteamento.
São Bernardo do Campo, 15 de janeiro de 1993.
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