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Processo & Registro
A forma além do conteúdo


No dia 31 de janeiro de 2007, logo no começo da tarde, fomos recebidos em Porto Alegre, no escritório do Desembargador Décio Antônio Erpen, para uma longa e proveitosa entrevista que acabou consumindo boa parte daquela tarde. Entre uma mateada e outra, o desembargador discorreu longamente sobre dois temas de sua especial predileção: processo e registro.

Grande jurista que é, desde muito cedo vem advertindo a comunidade jurídica nacional acerca da necessidade de se fazer uma reavaliação crítica do Registro Imobiliário pátrio, procurando demonstrar que desde sempre as virtudes da instituição registral poderiam estar a serviço do processo. Escreveu inúmeros artigos, proferiu várias palestras, participou ativamente de debates – no âmbito do Irib e fora - sempre abordando temas atuais com grande conhecimento teórico e prático. Essa rara virtude, de aliar um conhecimento teórico, haurido de sua longa e profícua trajetória no Judiciário brasileiro ao conhecimento prático da dinâmica registral, lhe permitiu consolidar-se como uma referência para todos nós, operadores do Direito.

Acompanhado da jornalista Fátima Rodrigo, do registrador paulistano e Presidente da Arisp – Associação de Registradores Imobiliários de São Paulo, Flauzilino Araújo dos Santos, escudados e ciceronizados pelo registrador João Pedro Lamana Paiva, a entrevista foi gravada e agora é servida aos leitores deste Boletim, com o desejo de poder contribuir com o debate jurídico. (SJ)

BE – Nas últimas reformas do processo civil, temosverificadouma valorização do registro como um importante instrumento de eficácia jurídica e efetividade do processo. Essas teses o senhor vem defendendo há muito tempo. É conhecida sua posição a respeito da vocação do registro imobiliário de atrair todas as circunstâncias e vicissitudes que possam interferir no tráfego jurídico-imobiliário. Como o senhor avalia as recentes mudanças no processo civil?

Décio Erpen –  Fico honrado e satisfeito ao verificar que avançamos. Fiz um estudo comparado com outros países, não se cuidando, pois, de criação minha. Apenas promovi aperfeiçoamentos e adaptações. O que se nota é que muitos juízes se apegam ao Código de Processo Civil, valorizando excessivamente tais normas, concluindo que a vida se encerra e esgota no processo.É como se o processo fosse um Alcorão, ou seja, o que não estivesse lá não vigeria para o mundo jurídico. Mas o juiz também tem compromisso com a vida. Quando estávamos preparando nosso colóquio, comecei a avaliar onde está o tendão de Aquiles do Poder Judiciário, e isso ocorre em duas áreas críticas. São elas, a execução e a falência (e concordatas). E ninguém falou por aí que não são áreas de jurisdição, que são áreas de jurisdição administrativa. Algum incidente é que tem carga jurisdicional. Em muitos outros países esses temas competem a outros órgãos,  deixando exclusivamente, a nobre área da jurisdição, aos magistrados. As execuções são extrajudiciais ou tocam a órgãos do Poder Executivo e até mesmo a particulares. Nunca se cometeu tanta injustiça, tanta heresia, até hipocrisia,  como no instituto da fraude à execução. Como o processo não era divulgado convenientemente, porque não se levavam ao registro os atos processuais para produção e efeitos erga omnes, punia-se o terceiro de boa-fé. Sempre se presumiu a má-fé. O maior número de nulidades que existia no processo era a não intimação da parte em um ato processual. Pergunto: que publicidade é essa da distribuição? Hoje estava lendo seu  artigo, Sérgio Jacomino, onde você diz que há registradores que entendem que devem tirar certidões dos distribuidores... Ora, em assim sendo, por que um Registro Imobiliário?

BE – O senhor acha que não é necessário tirar essas certidões do distribuidor?

Décio Erpen –  Então vamos fechar os cartórios de registro de imóveis! A não ser que a lei diga que as distribuições devem ser pesquisadas. Basta promover-se uma central de demandas, cobrindo todo o País, e fechamos os registros imobiliários. Mas aí teremos de criar um registro central de demandas, porque as ações reais devem ser registradas no registro de imóveis da localização do imóvel. Mas e as ações pessoais, como, por exemplo, uma ação trabalhista? Temos de tirar certidões de todas as distribuições que foram mencionadas no seu artigo? Vamos diligenciar certidões da justiça comum federal, da justiça estadual, da justiça militar, da justiça eleitoral – porque o crime eleitoral pode gerar indenização –, da justiça militar federal, da estadual... Vamos passar dias tirando certidões? Não é isso que o sistema coloca. O sistema atribui ao exeqüente o dever de levar a informação ao registro imobiliário. Agora, com a nova redação, o sistema foi categórico. Se a distribuição gerasse o conhecimento, não era preciso levar ao registro de imóveis; isso seria dupla publicidade! Claro que, por cautela, pode-se tirar a certidão negativa, mas não é requisito obrigatório.

BE – A lei, no artigo 615-A, refere-se especificamente ao artigo 593, que trata da fraude à execução. Até então, se entendia que a fraude à execução concorria com a litispendência e a redução do devedor à insolvência, e não se fazia qualquer referência ao registro imobiliário. Agora, com essa reforma, parece que a fraude à execução só ocorre se a averbação for feita, caso contrário, há de se presumir a boa-fé do adquirente. O senhor entende que, com a nova lei, houve uma qualificação da fraude à execução?

Décio Erpen – Não mudou nada. Não vamos confundir a prova pré-constituída, que independe de posterior comprovação, com o ônus da prova do exeqüente que foi preterido no processo. O artigo 240 da Lei de Registros Públicos (6.015/73) diz que o registro da penhora presume a má-fé dos atos posteriores. O bem penhorado pode ser vendido sem problema nenhum, o que é crime de estelionato é vender bem empenhado ou apenhado. O problema é que o adquirente pode ter que suportar os efeitos da ineficácia da transação. Muitos processualistas não aceitavam o que estava na Lei de Registros Públicos. Se a penhora está registrada, com ou sem averbação premonitória, uma vez que ela não é obrigatória, a fraude está escancarada, se não estiver registrada a penhora, o exeqüente pode demandar em ação própria de fraude a credor, porém terá o ônus da prova. Isso está na Lei dos Registros públicos e a jurisprudência do STJ assentou o tema, definitivamente.

BE – O entendimento que se fez tradicional sempre limitou a importância do registro da penhora. Defendia-se que a fraude à execução ocorria independentemente do registro. Onde o senhor identifica o problema?

Décio Erpen – Em primeiro lugar, há uma excessiva valorização do processo. Segundo, a ira judicial; em parte, justificável. Por exemplo, o juiz do trabalho. Depois de cinco anos correndo um processo trabalhista se leva à execução e não se encontram mais bens. Tratando-se de uma empresa e não se encontrando mais bens, e o juiz se sente ofendido porque o processo foi violado, ele decretará a fraude à execução e punirá o terceiro adquirente de boa-fé. Isso porque as cautelares específicas do registro imobiliário acontecem somente na execução de ações reais, o registro das citações em ações reais ou pessoais reipersecutórias. Não figura em nenhum momento o protesto contra alienação dos bens que é, talvez, a única proteção cautelar que existe no processo de conhecimento, não há outro...

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BE – Um arrolamento de bens, talvez...

Décio Erpen – O arrolamento de bens funciona mais para a Fazenda Pública, mas pode fazer também, só que, daí, é uma cautelar inominada. O juiz tem que ver o caso concreto para tomar uma medida. Por exemplo, a indisponibilidade de bens. Quando se trata de instituição financeira, a lei prevê a publicação no Diário Oficial, o que geraria a ficção do conhecimento, mas, particularmente, sou favorável que se registre na matrícula, em homenagem ao princípio da concentração. Assim, por desaviso do credor é que vinha essa ira judicial. Mas veja, se há registro da penhora, a fraude à execução pode ser declarada sumariamente no processo de execução e prossegue o processo. Cuida-se de declaração de ineficácia, e não de nulidade. A diferença entre um e outro instituto é fundamental. Caso contrário é preciso esperar uma ação própria desconstitutiva daquele ato.

BE – Na averbação premonitória, tanto o devedor quanto o exeqüente estão sendo convidados a uma colaboração mais ativa com o processo, que deixa de ser uma atividade exclusivamente estatal. O que o Sr. pensa a respeito?.

Décio Erpen – Em muitos países é o exeqüente que deve tomar as providências acautelatórias, o impulso processual é da parte e não do juiz. Mas vão existir abusos. Indago: o credor terá o direito e condições de indenizar? E os que litigam com AJG  [assistência judiciária gratuita, NE]? Será que o dano, muitas vezes, não é irreparável? Não é isso que o legislador quer, ele quer, sim, assegurar a execução, o princípio da efetividade do processo, da Justiça.

BE – De qualquer forma, o senhor considera que essa averbação, sendo municiada com uma certidão do distribuidor, já traz elementos suficientes para o terceiro adquirente avaliar o risco que ele correria?

Décio Erpen – Com certeza. Tenho aqui um livreto de 1995 em que a Corregedoria gaúcha instituiu, por provimento, uma figura chamada certidão acautelatória. Existe a certidão acautelatória do código civil e aquela certidão do registro imobiliário, com validade de 30 dias. Expedida aquela certidão, em cinco minutos pode entrar no registro um título contraditório e a certidão ficará no ar, viajando e vigendo por trinta dias. Quando houvesse um negócio jurídico a ser promovido, a parte requereria uma certidão da situação jurídica da coisa, com averbação na matrícula da razão da certidão. Averbar-se-ia que foi solicitada uma certidão postulando tal coisa para o fim específico qual, com validade de 30 dias. Se outra pessoa viesse a buscar uma nova certidão, constataria a existência da primeira, e se acautelaria.  Parece-me que essa providência é boa. Tenho um cliente que entende muito de informática e todos os dias pesquisa na Internet se deram entrada em alguma ação contra ele. Isso é bom porque muitos advogados diziam aos seus clientes que a ação já estava nas mãos do juiz, sem estar ajuizada. Hoje, o povo já descobriu o site do tribunal e ele próprio faz a pesquisa. Antigamente, havia um prazo de 24 horas depois que fosse citado para oferecer bens à penhora. Em parte, essa certidão acautelatória, e premonitória, vai auxiliar nesse problema. Hoje pode ser 20 dias, desde que tenha feito a reserva. Parece-me que esse instituto assegurou a jurisdição e vai surtir muito efeito, mas é claro que os abusos virão. Veja-se que na execução antiga havia o prazo de 24 horas para pagar ou oferecer bens à penhora, tempo suficiente para desviar bens móveis e numerários.

BE – A averbação premonitória não gera a prioridade dos títulos, mas gera uma indicação de que o bem pode estar afetado a uma futura execução.

Décio Erpen – É bom que se diga isso para esclarecer o caráter de tal medida, que não é ônus real. Penhora é uma medida processual asseguratória, é transitória. Não é direito real absolutamente, pode ser até anulada, até porque o executado pode vencer a execução e ela morre, fica prejudicada. Salvo na disputa de valores, na prelação, é possível que a primeira execução tenha preferência sobre outra. A nova diligência tem caráter processual, exclusivamente e pode influir na prelação, mas dentro da disputa de anterioridade processual. Nunca da natureza do crédito.

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BE – A regra do Código de Processo Civil é a de que tem a preferência aquele que primeiro penhorar e não aquele que registrar. O registro, historicamente, teve uma função muito importante, desde o século XIX, na gradação dos direitos de garantia, na definição de prioridades. Por qual razão não se deslocaria o controle de prioridades dos créditos que estão sendo discutidos e penhorados para o registro imobiliário?

Décio Erpen –  Esse instituto da prelação tem muitos inimigos. Por exemplo, muitos juízos do trabalho não aceitam e a tendência dos tribunais é a de que os créditos trabalhistas não se submetem ao concurso de credores. A Fazenda Pública, tradicionalmente e por texto de lei, não se submete também. Na prática, os juízes têm feito isso pelo menos em falências e concordatas, porque são títulos jurídicos específicos. Mas essa disputa entre as penhoras nem sempre quer dizer que aquele que registrou a penhora em segundo lugar não foi aquinhoado. A disputa dos créditos, insista-se, é por sua natureza. Dentro dos quirografários é que a anterioridade do processo executivo ou da penhora poderá influir na anterioridade do pagamento. Na preferência ele pode ter um crédito com vencimento posterior, pode ter pego um juiz não tão expedito ou um oficial de justiça não tão eficiente, o que fez desigualar as partes no plano processual. Mas isso é bom porque vai estimular as pessoas a registrarem as penhoras.

BE – Há um novo dispositivo do CPC (art. 698) que diz “Não se efetuará a adjudicação ou alienação de bem do executado sem que da execução seja cientificado, por qualquer modo idôneo e com pelo menos 10 (dez) dias de antecedência, o senhorio direto, o credor com garantia real ou com penhora anteriormente averbada, que não seja de qualquer modo parte na execução”. Havendo a alienação pela nova regra, e tendo o registrador a notícia de que houve uma penhora antecedente, o senhor acha que as penhoras anteriores ao registro da adjudicação serão canceladas, ou devem ser mantidas – até porque podem, em virtude de nulidades que possam ser argüidas, ser canceladas?

Décio Erpen –  Temos um provimento a respeito aqui no Rio Grande do Sul. Com a arrematação, expedida a carta,  cancelam-se todos os atos antecedentes, posteriores e contraditórios. Não tenho a menor dúvida disso, senão, ninguém mais compraria bem em juízo. Eventuais prejudicados devem levar seus créditos no preço. É bom que se alerte queas piores aquisições ou alienações são as judiciais. O Código de Normas da Consolidação Normativa diz que, arrematado o bem, expedida a carta, cancelam-se todas as outras penhoras e o dinheiro fica mantido para que o juízo decida de acordo com a prelação. Quero ver agora, com a figura que mudou a arrematação, se cancela tudo isso ou não. Vai dar muita celeuma.

BE – Por isso que é importante uma definição clara das prioridades. Ou se cria um registro de prioridades para as concessões judiciais...

Décio Erpen – O Código menciona o problema das prelações, da preferência dos créditos. Aliás, foram essas preferências que arrebentaram com o instituto da hipoteca no Brasil, porque os créditos trabalhistas ficaram à frente dos créditos fiscais, e o credor hipotecário ficou esvaziado ficando à frente do quirografário, somente.

SJ, Décio Antonio Erpen,  Flauzilino Araújo dos Santos e João Pedro Lamana Paiva

BE – O senhor acredita que essas regras serão aplicáveis à execução trabalhista? Como o crédito trabalhista é “super privilegiado”  (Código Tributário Nacional, art. 186), a Justiça do Trabalho tem entendido que o procedimento executório das execuções trabalhistas segue o rito das execuções fiscais.

Décio Erpen –  Quando se quer fazer um negócio jurídico, a lei prevê certidões negativas, não as prevê judiciais, apenas as negativas da Fazenda Pública. Já dei aula para recém-nomeados juízes do trabalho dando essa mensagem de quem tem compromisso, também,  com a vida, não só dos litigantes, mas de uma comunidade inteira. Não adianta fazer uma idolatria do processo e causar danos a terceiro. No Rio Grande do Sul já estão começando a registrar as penhoras, com todas as dificuldades que se tem em relação aos emolumentos. Os juízes, aqui, têm prestigiado o registro e nosso TRT tem julgados em torno da fraude à execução, com pleno conhecimento da matéria. Não se pode premiar o exeqüente desidioso, que deixou de cumprir um dever legal e punir terceiros de boa fé.

BE – Por falar em emolumentos, ao se praticar o ato por averbação, em São Paulo vai sair mais caro do que se fizer o registro. Aqui temos um desconto de 80% no registro da penhora previsto na tabela. Se aplicarmos a tabela de averbação, o ato ficará mais caro...

Décio Erpen –  Antigamente, havia um ato principal e, à margem disso, se permitia um ato acessório que dissesse respeito a alguma coisa, que seria a averbação. Hoje, com o sistema da matrícula é seqüencial, praticamente a averbação e o registro são de confecção similar. O grave é que sempre ficarão maculando a matrícula, que passa a ser uma folha corrida de tudo, mesmo do que foi sepultado.

BE – O senhor propõe que tudo seja nominado de “inscrição”?

Décio Erpen – O princípio da inscrição abarca os dois, ou seja, o registro e a averbação. Substituiu a publicidade natural. A inscrição antiga, antes da Lei dos Registros públicos atual, dizia respeito aos direitos reais sobre coisas alheias. Hoje o vocábulo registro abarca a antiga transcrição e a antiga inscrição, terminando com essa discussão acadêmica. Antigamente, quando havia transcrição, inscrição e averbação, os registradores transcreviam direitos da hipoteca, inscreviam essas transcrições e se anulavam muitos atos. Hoje isso já não acontece mais porque quase todos são bacharéis em Direito. 

BE – O problema todo está relacionado com o custo de um e de outro ato, muito embora haja a idéia de George Takeda no sentido de que tudo se reduza à inscrição. Contudo, a tabela continuaria ser aplicada como se existissem ainda a averbação e registro, sem interferir com mecanismos de cobranças de emolumentos. Harmonizam-se os procedimentos rumo a uma padronização como o senhor propõe - tudo será inscrição...

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Décio Erpen –  Interessante.

BE – Uma ordem judicial ilegal deve ser cumprida?

Décio Erpen – Se for descumprida pode dar processo e prisão. Se a ordem é ilegal, a prisão é injusta. Agora, não sei se devemos levar ao limite os termos da lei ou se devemos contemporizar. Isso é tema de debates em congressos, aquela velha história de que quando o juiz manda registrar um determinado título judicial, mesmo quando está faltando o preenchimento de alguma formalidade, se registra. Ou não se registra? Um registrador do interior se assusta, porque não quer brigar com o juiz temendo uma represália. Isso não acontece mais aqui e creio que em São Paulo também não. Sei de ordens de habeas corpus pondo a salvo registradores que se acautelavam. Passaram a ostentar salvos-condutos. Hoje os magistrados já possuem boas noções de registros públicos. Se a prisão for ilegal, o magistrado pode ser responsabilizado por abuso de autoridade. Isso assusta...

BE – Na nossa avaliação, a lei andou muito bem quando diz que o registro da penhora incumbe ao exeqüente e não ao juiz. Isso porque não se trata de resistência a uma ordem judicial, trata-se de um empecilho relacionado com defeitos formais do título. O que Sr. acha?

Décio Erpen –  Isso é o que eu quis dizer do impulso processual. Isso cria uma situação incômoda para o registrador porque o juiz manda registrar... isso é ordem judicial, é jurisdição, ainda que seja por via administrativa.

BE – O senhor considera que a dúvida em grau de recurso continua sendo um procedimento estritamente administrativo, ou há um certo teor de jurisdicionalidade?

Décio Erpen –  Não. A dúvida tem o caráter  administrativo, jurisdição graciosa como a chamam, tem uma carga de eficácia menor que o contencioso. Isso se dá mesmo que tenha havido um processo de dúvida e que se determine o registro e o tribunal confirme a determinação do registro. Nada obsta que um terceiro interessado entre com um contencioso e se decida contrariamente àquilo que foi decidido no processo de dúvida. A existência de um recurso ao Tribunal não transmuda a natureza jurídica do pleito. Não tenho a menor dúvida, essa é a carga de eficácia da jurisdição porque os critérios são outros. A própria lei faz essa ressalva... No processo de dúvida não são chamados todos os interessados, só há interessados e não partes. São Paulo está à nossa frente porque concentrou os recursos de apelação no Conselho Superior da Magistratura, e aqui são distribuídos para as Câmaras. Mas a substância continua a mesma. Mesmo que o Tribunal de Justiça aprecie apelação em processo de dúvida, nada obsta que através de um processo contencioso, com a integração da lei seja proferida jurisdição de carga de eficácia contenciosa contrariamente do que foi decidido pelo Tribunal. Não há hierarquia, no particular.

BE – O senhor acha que a concentração no Conselho Superior da Magistratura é positivo ou negativo? Porque, se por um lado há uma homogeneidade, uma maior estabilidade no entendimento, por outro lado, com a ocorrência de várias câmaras, existe indiretamente a valorização do juízo de qualificação registral, que não é exatamente vinculado. É uma atividade que se assemelha muito à atividade jurisdicional na medida em que, aplicando a lei a um caso concreto, o registrador decide, imperando (ou não) o registro.

Décio Erpen –  Isso é verdade, lá vige o princípio da autoridade. Como o Conselho da Magistratura tem no seu bojo o Corregedor-Geral, normalmente este é quem tem o poder normativo, fica mais fácil normatizar os temas. Mas, de outro lado, o sistema fica fechado. Ainda vejo, ouço, leio a expressão “servidores extrajudiciais”, ainda tem gente achando que os registradores são auxiliares da justiça. As pessoas ainda não compreenderam que o artigo 236 da Constituição tirou as notas e os registros da administração e agora são instituições do Estado. E onde está o princípio da autonomia registral?

BE – Como o senhor avalia a Emenda Constitucional nº 45, que reatou para o âmbito do Judiciário as atividades notariais e registrais - “órgãos notariais e registrais”?

Décio Erpen – São órgãos. Não estranhei quando colocaram no Conselho Nacional de Justiça essas atividades como submetidos ao órgão, mas a Constituição pode dizer, pode declarar que o redondo é quadrado, mas, a rigor, não teria nada a ver. A autonomia que tanto falamos, na prática, ainda não foi conquistada. Parece que há um desejo profundo de manter essa tradição hierárquica. Antigamente, quando o escrivão passava por alguma dificuldade, a primeira pessoa que ele procurava era o juiz: seu chefe, mas seu protetor, também. Ou seja, ficavam sentimentos contraditórios.

BE – O senhor acha que poderia se ensejar dentro do Judiciário a idéia de uma maior autonomia do registrador – como terá autonomia o juiz para decidir no âmbito de sua atividade, integrando a galáxia judiciária? A atividade do registro seria uma especialização entre as funções típicas do Estado, ou seja, a função do Executivo é uma, a função do Legislativo é outra e a do Judiciário seria ainda outra. Ela se singularizaria pela jurisdição, a cargo do juiz de direito e dos juízes da paz social preventiva. Essa atividade típica do Estado estaria cometida a um profissional do direito chamado registrador ou notário?

Décio Erpen –  Veja, o ministério público exerce jurisdição? Não, ele pleiteia, postula. O ministério público tem atribuições. Então, nada obsta que se crie essa atribuição. Em vários países os recursos contra os registros são decididos por um Conselho. Já sustentei muito que o registro deferido é um ato de jurisdição graciosa. Já o ato notarial, o ato de escritura, é um ato de direito material. No Brasil, ainda não vi ninguém enfrentando bem esse tema, não no sentido de valorizar ou desvalorizar a atividade, mas a verdade é que ela se desprendeu. Não se pode colocar a hierarquia na faixa das atribuições.  Mas como ainda ficou a fiscalização, os notários e registradores não querem voar alto de medo dessa fiscalização. No entanto, há um bom espaço para criatividade e novas conquistas da atividade. Os magistrados conhecem bem a área da restauração da ordem jurídica e podem contribuir muito para aprimorar os serviços notariais e registrais. Persuasivamente, claro. Ou na jurisdição.

BE – Como o senhor avalia o sistema registral brasileiro, com as diferenças que existem entre Estados cuja atividade efetivamente está delegada e outros como, por exemplo, a Bahia, em que os cartórios são estatizados e onde são noticiados problemas muito graves?

Décio Erpen –  Lembro-me que em Maceió tinham estatizado alguns tabelionatos e estavam marcando escrituras para daqui a doze meses. Virou burocracia, virou delegacia de polícia, posto de saúde. É um horror o que acontece por lá. Mas, no nosso Estado, com novos notários e registradores, me parece que se começou a repensar melhor alguns cacoetes que existiam. Senti sangue novo aqui, São Paulo já deve estar no seu segundo ou terceiro concurso público [4º Concurso, NE]. Com isso, teremos certo equilíbrio. E o Irib prestou inestimáveis serviços nesse sentido. A tendência mundial é contra a estatização: estão privatizando. Os serviços notariais e registrais não dão ônus ao Poder Público, antes pelo contrário: ensejam rendas pela fiscalização indireta que se fazem dos tributos.

BE – Uma questão que sempre é discutida é o fato de que, havendo uma corregedoria estadual disciplinando as atividades notariais de seus respectivos estados, tem acarretado uma assimetria nos serviços, ou seja, o que se registra no Rio Grande do Sul, não se registra em São Paulo. Seria o caso de se criar uma Corregedoria Nacional no Conselho Nacional de Justiça, tendo em vista que a lei e a Constituição federal dizem que compete privativamente à União legislar sobre registros públicos?

Décio Erpen – No ano de 1994, um gaúcho  ficou sabendo de que havia pessoas que viviam no exterior e que adotavam uma criança em Manaus, Alagoas, Bahia, e depois chegavam ao Rio Grande do Sul. Cada Corregedoria era um departamento estanque. Foi criado o Colégio de Corregedores Gerais. Começamos a padronizar. Primeiro, as adoções, um comunicando a outro para evitar as adoções. Depois, começamos a padronizar, quando possível, os procedimentos. Aí foram criados os juizados especiais, de execuções penais. Se o Corregedor vai lá e assume o compromisso de adotar em seu Estado, ele é institucionalizado por poder normativo. A Lei Registral é uma. O Irib contribuiu decisivamente para uniformizar procedimentos, merecendo nosso respeito por tal e por outros motivos.

BE – O senhor acha que o Colégio de Corregedores se esvaziou em face do Conselho Nacional de Justiça?

Décio Erpen – O CNJ é um órgão administrativo, ele integra o Poder Judiciário. Se o juiz, na jurisdição decide de uma maneira, o CNJ não pode decidir de maneira diversa... Parece-me que se fosse atribuído a esse Conselho não só o poder disciplinar e fiscalizatório, mas o poder normativo poderia ser muito criativo na área notarial e registral. Porém, veja, fere a autonomia registral. Um juiz do trabalho, um militar, um eleitoral teriam condições de expedir normas registrais, quando não é muito afeito a isso? Estarão disciplinando matérias específicas da Lei de Registros Públicos. Se é verdade que a União tem o poder de legislar sobre registros públicos, os órgãos dos registros são estaduais. Ainda sou favorável à criação de um Conselho notarial e registral com poder normativo e algum poder fiscalizatório, o que só poderia acontecer por emenda constitucional. Não vejo outro caminho, tendo em vista a colocação do CNJ, que é específico para a atividade notarial e registral.



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