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Meditações gauchescas

TÓPICOS PARA UMA HERMENÊUTICA REGISTRAL
(Meditações gauchescas)
Ricardo Dip *


Primeiro tópico: “O encontrar-se tem em cada caso sua compreensão, ainda que seja apenas reprimindo-a. O compreender é sempre afetivo” (HEIDEGGER).  

1. Foi em novembro de 1990, numa Porto Alegre calorosa, que, talvez com primazia nas minhas desvalidas cogitações sobre o Direito registral imobiliário, arrisquei franchir le Rubicon. Ao falar, então, no I Congresso dos Registradores Públicos do Rio Grande do Sul —honrosamente convidado pelo saudoso SYLVIO PAULO DUARTE MARQUES—, resolvi enfrentar os limites factuais que cercavam o saber registral.[1]  O estuário do Guaíba sempre me reservou algumas inspirações. O tempo terá revelado que aquele embate com lindes —velho agora de quase 20 anos— lastreou a afirmação imprescindível do princípio da independência jurídica do registrador, sobre o qual, sete anos mais tarde, eu voltaria a escrever.[2]

Reponho-me agora na meditação dos problemas da interpretação registral. Problemas que vão além de seu espectro. São problemas que, de algum modo, com maior ou menor intensidade, dizem respeito a toda interpretação.

Não se pode começar a não ser do começo. E o começo que começa é alvo da interpretação em geral, tocando com as coisas e as ações, os eventos e os conflitos, as vitórias e as derrotas, as tragédias e as comédias, palavras, sentenças, textos e imprecações, normas, princípios, inquéritos, versos e novelas, o adeus da mulher amada, a volta do filho pródigo, o passado, o presente e os tempos que virão. Indagamos das entranhas dos vitimados e da trajetória dos astros, alvitramos do vôo das aves e das nuvens que se amontoam, e depois de tudo isso, depois de interpretar um quadro da vida, pomo-nos mais de cerca com o justo das coisas, passamos das metáforas das balanças e seus fiéis à pontual realidade jurídica de nosso entorno.

Hermes, mensageiro ou intérprete da vontade dos deuses, controvertida origem do termo  hermenêutica. (tela de Hendrik Goltzius.1558 – 1617).

A interpretação não é apanágio do saber jurídico. Interessa à lingüística, à semiótica, à filologia, e às histórias —da literatura, das artes, das instituições, das ciências, dos idiomas, econômico-sociais—, interessa à sociologia, à filosofia, à psicologia e à teologia, aos tradutores, aos atores e aos cantores, aos que se valem de interpretar para reconhecer, aos que nela se exercitam para representar e aos que —juristas, teólogos, psicólogos experienciais— dela necessitam para apreender a normatividade.[3]

Começarei de algum começo. Ver-se-á logo que só a seu tempo me voltarei ao Direito registral. Até lá, passados dois breves parêntesis, tratarei de perscrutar as fronteiras da interpretação em geral, ocupado em saber se seus limites estão nos marcos que eu próprio —com minha intentio lectoris— crio e recrio a meu capricho (equivale por dizer: ausência de limites), ou se os lindes da interpretação hão de responder a algumas linhas em princípio intransponíveis.

2. Não penso que a superação dos marcos fáticos de um saber significa uma sua inevitável desconstrução ou o reconhecimento de i-limitações significativas. Bem ao revés, a suplantação dos lindes factuais com que, de comum, se considerava —e mal— o saber registrário, essa superação sempre a busquei e caracterizei como uma  crítica, ou seja, um meu encontro consciente com a natura rei, com os limites próprios da razão prática. Nunca, de fato, imaginei uma indefinição do saber registrário, um super-interpretativismo performático, em que o poder legitime as interpretações. Isso seria apenas um recurso sofístico.

3. Nossos tempos parecem mais reclamar de perto essa definição de limites da interpretação. Ou se demarcam as trilhas e metas do saber registral —incluso, mais pontualmente, os lindes da interpretação registrária (é a isso que, a final, se dirigirá nossas presentes meditações)— ou corremos o risco do perdimento de seu imenso patrimônio de jurisprudência doutrinal e pretoriana (lato sensu). Criticar o saber, criticar a interpretação é estabelecer seus limites correspondentes.

4. Vem a propósito o que leio e releio das páginas de YVAN ÉLISSALDE (Critique de l’interprétation, ed. Vrin, Paris, 2000).         Foi ele, parece, quem criou o neologismo  herméneutisme para referir a superação abusiva e expansionista dos limites da interpretação. Também MICHEL VILLEY empregou o termo herméneutisme na Philosophie du droit,[4] aludindo a uma indicação de Gadamer na linha de que todos os textos suportem uma incessante novidade de sentidos a que se inclina a multidão de seus leitores. Ou, nestas conhecidas palavras de PAUL VALÉRY: “Il n’y a pas de vrai sens d’un texte. Pas d’autorité de l’auteur. Quoi qu'il ait voulu dire, il a écrit ce qu'il a écrit. Une fois publié, un texte est comme un appareil dont chacun peut se servir à sa guise et selon ses moyens” (Variété III).

5. Conter, porém, o excesso interpretativo — essa abusividade em que “só a mão de Deus detém a pluma do intérprete” (Élissalde)— supõe sempre que saibamos reconhecer a exorbitância em contraste com a legitimidade das interpretações. Combater a hipertrofia da  intentio lectoris —os intérpretes que desconstróem— não desautoriza toda a instância dos destinatários. Se as lentes da subjetividade, em palavras de GADAMER, são um espelho deformante, não é possível, contudo, imaginar um  objeto interpretável sem destinatários, uma semiótica destituída de interpretantes. O ponto central não está, pois, em negar impossivelmente a  mens lectoris —a razão do destinatário do texto—, mas exatamente em afirmá-la e contê-la nos limites do significado ou conceito suscetível da interpretação.

6. Diante da expressão heideggeriana que pus em rubrica —“o compreender é  sempre afetivo”— almejo insistir na direção que antes apontei: a da aferição razoável da  intentio lectoris. É a verificação dessa razoabilidade que permitirá, a meu ver, afastar-nos da idéia de infinitude das interpretações entregues à arbitrariedade dos destinatários, sem, no entanto e impensavelmente, refutar a liberdade ética e epistemológica da interpretatio lectoris. Nossos textos não se dirigem a uma inteligência angélica —podemos até mesmo deixar aqui à margem les anges maudits—, senão que se destina a interpretantes humanos, com sua carga de tradições e uma estrutura concorrencial de vontade e sensibilidade atuando sobre a razão.

7. Somos homens de carne e osso, de alma e patelas, os que se chamam à tarefa de interpretar. Põem-nos signos e objetos à frente da inteligência, mas não nos proíbem de ter olhos, memória e coração. Não é preciso acreditar no Dante da Epístola a Cangrande della Scala, e sair dizendo que as interpretações são infindas quanto o são os instáveis gostos humanos e seus fígados inconstantes. Tampouco, em contrapartida, sugerir que se amarrem às picotas os hermeneutas e os poetas, porque toda interpretação ou está proibida ou é apenas tolerável a do deus Hermes de turno.

8. Perdoem-me todos. Se se trata de desenvolver o embrulho da desumanização: tanto da que exorbita a  intentio lectoris, quanto da que espartilha toda interpretação possível, o melhor que julgo fazer para derrotar os sofistas é reclamar a instância humana do amor. Porque a verdade também se ama. E talvez se ame por primeiro. Os sofistas não podem menos do que odiar o amor.

Valho-me aqui de três referências que, talvez, pequem por parecer um “jogo espirituoso” ao buscar incidentes passionais. Dir-se-ão exemplos desviantes (ah! o dogma das objetividades!). Acusar-se-ão de peregrinas, somente porque tocam uma grandiosa paixão, que os camonianos “corações humanos tanto obriga”. Penso que são passagens, porém, que vão além do anedótico. Perseguem uma realidade humana inteira, uma realidade tão interpretável como tantas outras que se lançam ao crédito de mais graves e sérias, mais sérias e graves, quanto o possam ser ou dizer-se as engravatadas realidades dos juristas com seus textos hipertróficos.

Tomo, pois, ilustrações literárias, ao modo de triviais exemplos da vida de todos nós.

9. Para início, invoco uma passagem de O Adolescente, de DOSTOIEVSKI. Não faz muito, citando-o, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, qualifiquei-o de “texto desafiador, em que um sinal, prima facie, afirmativo, revela-se, ao fim, uma proposição de reluzente negativa”. Cuida-se de um diálogo entre as personagens Viersílov e Katierina Nikoláievna, em que esta personagem feminil emite um sinal contra-expressivo de seu aparentemente afirmado amor por Viersílov. Eis o excerto:

Retrato do escritor Fyodor Dostoyevsky", Oil on canvas. The Tretyakov Gallery, Moscow. Perov, Vasily (Russian, 1834-1882)

(Diz Viersílov:) “— Vejo-a quando estou só, sempre. Não faço senão conversar com você. Vou às baiúcas e antros e, como contraste, aparece você imediatamente diante de mim. Mas você ri sempre de mim, como agora… — disse isso como fora de si.

Nunca, nunca ri de você! —exclamou ela com voz compenetrada e com extrema compaixão pintada no rosto. Se vim, é que fiz todos os meus esforços para não magoá-lo, no que quer que fosse —acrescentou de súbito. Vim aqui para dizer-lhe que o amo quase… Perdoe-me, talvez me tenha expressado mal —apressou-se em acrescentar.

(Ele riu).

Por que você não sabe fingir? Por que é tão simplória, por que não é como toda gente?… Ora, como se pode dizer a um homem a quem se põe para fora: ‘Eu o amo quase’?”

(Retorquiu então Katierina:) “— É que não soube exprimir–me, não disse como devia dizer. É que diante de você, sempre tive vergonha, jamais soube falar, desde nosso primeiro encontro. E se não me expressei bem, dizendo que ‘eu o amo quase’, é que, também no meu pensamento, era quase assim. Etc.”

Repare-se na circunstância de que teve Katierina a intenção de, sem falsear, dirigir uma sentença com adornos de eufemismo ao, contudo, atento Viersílov, que não se enganou com a figura e interpretou adequadamente a realidade das coisas. Destinação proposital do texto, possibilidade e faculdade interpretativa do destinatário, verificação da razoabilidade do sentido que se compreende e da mediação entre texto e realidade.

10. Agora este segundo episódio recruto-o das memórias (ainda inéditas e manifestamente arbitrárias) do Camponês de Andorra —personagem central de uma autobiografia fictícia que procura a recuperação cristã da idéia do amor cortês.[5] Tomamo-lo no histórico da frustrada (e talvez frustrânea) paixão amorosa do Camponês por sua, a seu olhos, valiosíssima Kimathi. Note-se, na referência seguinte, a contínua direção proposital do texto ao destinatário que, entretanto, diversamente da adequada interpretação de Viersílov, deixa enganar-se pela emitente à conta aparatosa de uma atenção expectante. Vamos ao caso.

O Camponês almeja saber —com palavras— os verdadeiros sentimentos de Kimathi. Com palavras: “É preciso exprimir, traduzir, explicar…” (Paul Gérardy). A moça responde ao Camponês:  “amo-o, de vez em quando”, “amo-o, a meu modo”. A expectativa da reciprocidade amorosa fez com que esse Camponês se paralisasse no verbo dos textos: “amo-o”, “amo-o”, sem se dar conta de que, realmente, a contrafação desse sentido estava em seus complementos lexicais: “de vez em quando”, “a meu modo”. De fato, não se concilia com a idéia de  amor (em ato) o aposto circunstancial “de vez em quando”, nem o modus limitativo que se agregou à segunda afirmação. Amor com limites subjetivos do amante é já alguma indiferença de afeição à amplitude do amorável. Todavia o subjacente do texto —a intentio auctoris de piedade, de coquetismo, de zombaria ou um misto de todas essas motivações— não impedia a aferição razoável de que o verdadeiro significado das frases de Kimathi era “não o amo”.

Assinalável, nesse episódio, é a contínua destinação do texto —ainda que seu propósito, fosse de piedade ou zombeteiro etc., não se esclareça ao fim—, de sorte que as palavras se emitem por Kimathi para a meta da interpretação pelo destinatário. Este é chamado a completar o quadro dialógico. E o faz com patente irrazoabilidade. Ora, não se pode negar a símile interpretante a liberdade ética de interpretar, nem a epistêmica de pesquisar a verdade: “O que eu digo é tão oco! Eu procuro, procuro um jeito. (…) Ninguém sente senão o que soube falar. Vive-se de palavras, nada mais. Mas é preciso que eu consiga essas palavras…” (Paul Géraldy). Todavia, deve recusar-se ao Camponês a nota de razoabilidade em tomar uma real indiferença afetiva ante a mera afirmação textual de um amor desamoroso. O limite lexical —suposta a veracidade da enunciação— não pode transgredir-se sem o embate da realidade das coisas. A intentio lectoris não amora o desamorado.

11. A terceira referência a que me projeto é a trechos de um poema de PAUL GÉRALDY, em Toi et Moi:
 

Qu’est-ce que tu m’as dit encore, en me quittant:  
que l’on ne s’aimait plus? (…) Mais si, mais si, on s’aime.

Nous employons des mots qui servent a rien,
 et qui sont tres génants… (…)

(…) on se grise avec des mots (…)

Eh! bien, oui, c’est vrai, quand on se voit,  
on n’est plus très trouble… C’est moins bien qu’autrefois.
Tu ne t’affoles pas… Moi non plus. Eh bien, quoi?
 
Il n’y a là rien de bien tragique. Nous sommes  
un peu calmés. Mais c’est tout naturel, cela.  
C’est l’habitude. On est habitué. Voilà.  
Si nous nous retrouvons sans passion, en somme,  
chacun de nous s’ennuie quand l’autre n’est plus là.
On se croit malheureux, on n’a de gout à rien,
 
on se sent seul… Eh ! bien, mais c’est deja très bien!”.

Peço escusas. Não resisto à idéia de copiar aqui a tradução que desse poema nos deixou GUILHERME DE ALMEIDA:

Que foi que você disse, há pouco, ao despedir-se? Que nós não nos gostamos mais?… Gostamos, sim! (…)

Usamos expressões inúteis, expressões que atrapalham até… (…)

A gente embriaga-se de palavras afinal (…)

Sim, é verdade, agora, quando a gente se vê, já não é como outrora, não se embaraça mais… Mas é assim mesmo… O quê? Mas não há nada, aí, de trágico! Você e eu estamos mais calmos só. É natural. É o hábito. Nós já nos habituamos. E se é sem paixão que nós nos vemos, cada qual, quando o outro não está, sente-se mal, tão mal, e aborrece-se, e sofre muito, e fica tão desgraçado… Mas isto é alguma cousa, então!”.

Agora já se vê uma negativa de amor interpretada realmente como proposição  afirmativa, mediante um contraste do texto oral com o contexto real. Ainda uma vez a aferição da razoabilidade da interpretação do destinatário passa pelo texto —que lhe foi propositadamente dirigido— e supõe o encontro da opósita realidade das coisas. Não é a intentio lectoris que trai o texto lhe desfigura o significado, é a interpretatio do destinatário que, no caso, atrai a realidade das coisas e desvela a falsidade enunciativa.

11.  Bem se vê, para rematar nosso primeiro tópico, que não se pode —nem em rigor se saberia— refutar a instância interpretativa dos destinatários dos textos, mas isso não significa admitir a ilimitação hermenêutica pela despótica vocação de uma falsamente livre intentio lectoris em detrimento da intentio operis. O recurso à natura rei —à realidade das coisas— é o que, enfim, instrumenta a crítica sobre a razoabilidade das interpretações.

(Continuaremos).

Notas

* Ricardo Dip é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo e Conselheiro do Irib.

[1] Cfr. a Revista de Direito ImobiliárioRDI nºs 31-32, janeiro-dezembro de 1993, ou ainda Registro de Imóveis –Vários Estudos, ed. IRIB-Sergio Antonio Fabris, Porto Alegre, 2005, p.  11-34.

[2]  RDI nº 42, ou Registro de Imóveis –Vários Estudos, p. 119-32.

[3] Cfr., brevitatis causa, EMILIO BETTI, Interpretazione della Legge e degli Atti Giuridici, ed. Giuffrè, Milão, 1971, p. 57 et sqq.

[4] Ed. Dalloz, Paris, 1984, tomo II, p. 170-1.

[5] Cfr. nossa “A Trilogia do Camponês de Andorra”, em Registros Públicos, ed. Millennium, Campinas, 2003, p. 15-117.

ANEXO

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