BE3061

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O Direito é uma obra aberta?


O desembargador Ricardo Dip nos brinda a todos, leitores deste BE, com um tema que, tanto quanto saiba este escrevinhador, jamais foi tratado nos meios registrais e acadêmicos: falo de hermenêutica registral.

Por que o registrador ou jurista especializado haveria de se debruçar sobre o tema geral da hermenêutica jurídica e especialmente da registral?

A questão da interpretação parece ainda ser para muitos de nós um tema aberto, parafraseando Umberto Eco. O exercício de uma semiologia ilimitada, a possibilidade de extração, pelo intérprete, de uma superabundância caleidoscópica de sentidos, tais fatos parecem estimular os apetites do leitor pós-moderno, tentado a arrostar, apetrechado de sua franca  intentio lectoris, a autoridade da própria obra.

Vivemos um período de relativismo absoluto que rende homólogos processos de desconstrução – fenômeno que se estima irracionalista, coisa que deixo ao nosso autor demonstrar. Mais do que nunca o convite-desafio formulado por Ricardo Dip, em sua tópica – estreando no Boletim Eletrônico suas  Meditações Gauchescas – é oportuno e atual.

Perquire-nos o jurista: quais os limites da interpretação que, em princípio, não devem ser ultrapassados? Reinvindica uma resposta adequada, vale dizer, ajustada à natureza e realidade das coisas, sob pena de caimento no hermeneustismo  já denunciado por Villey e Élissalde com conseqüências que se advinham funestas nesse processo de hiperinterpretação recursiva que não é destituída de certas e conhecidas intenções políticas.

Desde logo, para não fugir do enfrentamento de problemas bastante prosaicos: a indefinição do saber registrário acaba dando ensarchas a interpretações que se legitimam pela  découpage a cargo do deus Hermes de plantão. Descuramo-no do tema e serão tantos quantos bastem para malbaratar a tradição que a muito custo se formou e que enfim provê segurança, estabilidade e certeza aos Registros e às situações que publica.

Ainda agora lendo prazeirosamente o texto do processualista Humberto Theodoro Jr. (A onda reformista do direito positivo e suas implicações com o princípio da segurança jurídica. In Terceira etapa da reforma do CPC, Caldeira, Adriano. Freira, Rodrigo da Cunha Lima. São Paulo: Podivm, 2007, p. 188) em que o professor toca de perto um tema muito caro para todos nós – o da segurança jurídica – gostaria de sublinhar um trecho que expressa a angústia do jurista pós-moderno:

Diz que o que menos se vê no pensamento jurídico pós-moderno “é a preocupação com a garantia fundamental da legalidade. Advoga-se ostensivamente a supremacia de valores abstratos, por engenhosas e enigmáticas fórmulas puramente verbais, que simplesmente anulam a importância do direito legislado e fazem prevalecer tendenciosas posições ideológicas, sem preceitos claros e precisos que as demonstrem genericamente e, por isso mesmo, permitem ditar por mera conveniência do intérprete e simples prepotência do aplicador o sentido que bem lhes aprouver nas circunstâncias do caso concreto”.

Ainda sobre o tema da conveniência do intérprete, há dias registrava no Observatório do Registro que ao perder as referências mais claras dos limites do exercício da jurisdição - nomeadamente a lei e o contrato - a nova abordagem política do Judiciário, colocado no epicentro das mais importantes decisões políticas, nos impulsionaria a um estado de anomia. “Afinal”, dizia, “sem as referências tradicionais de um leading case ou de um tipo legal ou convencional claramente definido, perdemos as balizas e experimentamos o pior dos dois mundos. Sem uma taxa mínima de previsibilidade, não será possível o desenvolvimento da sociedade, refém de uma leniência interessada e de uma justiça lotérica”. (Estatópolis: filha da leniência e da justiça lotérica in observatório do registro).

Mas, como encontrar limites à interpretação sem desprezar a instância crítica do intérprete? Como lastrear esse instrumental crítico (Ricardo Dip acenará com a natura rei)? Como fundear a crítica hermenêutica na larga tradição do Direito? Abdicaremos da nossa tradição romano-germânica para cair na tentação da aplicação quase aleatória do direito ao caso híper-concreto, revelando a interpetação tornada possível, como num lance de dados, pela  intentio lectoris do aplicador?

O texto de Ricardo Dip nos coloca em xeque. A ruptura das tradições fundantes de nossa civilização (e do nosso Direito, of course) haverá de converter a empedernida  bouche de la loi na Pandora ressonante dos desvarios e paixões humanos. E o direito será enfim uma obra aberta.   

Nossos tempos parecem mais reclamar de perto essa definição de limites da interpretação” – dirá Ricardo Dip. E lança o desafio: “ou se demarcam as trilhas e metas do saber registral — incluso, mais pontualmente, os lindes da interpretação registrária (é a isso que, a final, se dirigirá nossas presentes meditações) — ou corremos o risco do perdimento de seu imenso patrimônio de jurisprudência doutrinal e pretoriana (lato sensu)” (RD, BE # 3024, 4/7/2007).

A discussão está, pois, lançada.

Seguimos com a segunda parte das meditações gauchescas, certos de que essas discussões, longe de representar especulações meramente cerebrinas acerca de um tema que só aparentemente se distancia dos dramas decisórios do Registrador, muito ao contrário estão na base de sua atividade que é, antes e sempre, uma atividade interpretativa. (SJ)  

Meditações gauchescas

Hermenêutica registral
Ricardo Dip inaugura debate em suas meditações gauchescas

TÓPICOS PARA UMA HERMENÊUTICA REGISTRAL – parte 2
(Meditações gauchescas)
Ricardo Dip*

12. Voltemos à referência heideggeriana de que o compreender é sempre afetivo. Os exemplos anteriores poderiam induzir um engano sensista, reduzindo o afectus ao plano do conhecimento sensível. Dizer que a compreensão é sempre afetiva significa o reconhecimento de que o suposto do conhecimento exige o sujeito que conhece e, pois, que se afeta pelo objeto cognoscível, o que emerge tanto no âmbito sensório, quanto no intelectual. De uma parte, não se limita o conhecimento à mera introspecção (: assim o prejuízo empirista de que só conhecemos nossos atos), mas de outra parte —com a inclusão gnosiológica do próprio ego substancial do cognoscente— não se tem como arredar a afetação subjetiva do âmbito do relacionamento compreensivo. Vale por dizer, não nos rendemos aos limites de um objeto imanente, mas a transcendência do que se conhece não recusa a presença indispensável do sujeito que conhece. E de um sujeito que não é pura facultas cognoscendi mas é um homem, como se disse, de alma e patelas. E de coração… também, também.

13. A compreensão —seguindo-se aqui lições de S.Tomás de Aquino— é, por primeiro, a inclusão de uma coisa em outra que a circunscreve (: compreende) —includitur in comprehendente, mas, em sentido mais extenso, a compreensão é o resultado de uma perseguição ou prossecução: quem persegue uma coisa, ao alcançá-la, apreende-a, apanha-a, compreende-a.

É isso que deve entender-se amplamente por simpatia na compreensão. Simpatia é relação ou encontro entre o sujeito cognoscente —o que se afeta ou apreende— e o objeto cognoscível —o que afeta ou se compreende. Encontro não apenas intelectual, senão que, em sua ordem, também sensível. Melhor se dirá: um encontro ao modo humano.

Não se deve refutar um maior espectro no ânimo passional entre quem conhece e aquilo que se conhece.  Simpatia é, portanto, não somente o experimento intelectual ou, mais precisamente, a experiência do sujeito cognoscente, mas também uma experiência que se sofre (: pathos): poderia falar-se na paixão do conhecimento ou de sofrer o conhecimento e isso pode incluir uma inclinação amorosa (: assim os episódios românticos antes referidos).

13-bis. Esse tipo de encontro gnosiológico simpático mostra-se mais claramente no âmbito da intersubjetividade —i.e., quando o sujeito cognoscente o quanto pode compreende uma outra pessoa (conhecimento com alteridade ou intersubjetivo), em que, assim ocorre por vezes e não raro, o desejo de conhecimento, acometido da paixão amorosa, suporta uma franja conturbada de aparentemente inexpugnáveis mistérios. Por mais, nesse quadro, se incline o sujeito ao buscado conhecimento intersubjetivo, parece que seu esforço, frustrâneo, não se recompensará de possível plenitude (cfr., a propósito, YVAN ÉLISSALDE, o.c., p. 33).

Os poetas dizem isso de modo mais pedagógico. Tomemos as Expansions de PAUL GÉRALDY (ainda uma vez em Moi et Toi). Vive-se de palavras, ele diz, é preciso exprimir, traduzir, explicar, mas perseguem-se essas palavras. É preciso encontrá-las (: e com elas, não só a enunciação mas acaso a compreensão do objeto). Então, conforma-se o poeta, para dizer o que sente (e é ali o que ele, muito e pouco, pouco e muito, pode compreender da mulher amada!), chega o momento, muita vez, de repetir e tornar a repetir a única palavra para ele verdadeiramente possível de significar a pessoa que ele, por amar, persegue compreender (: com quem concretamente ele simpatiza, ou sofre): “Toi! Toi! Toi! Toi!...”.

Leiam-se esses versos —magníficos— de GÉRALDY:
 


Ah! je vous aime! Je vous aime!

Vous entendez? Je suis fou de vous. Je suis fou…
Je dis des mots, toujours les mêmes...
Mais je vous aime, je vous aime!...
Je vous aime, comprenez-vous?

Vous riez? J'ai l'air stupide?

Mais comment faire alors pour que tu saches bien,
pour que tu sentes bien?
Ce qu'on dit, c'est si vide!

Je cherche, je cherche un moyen…

Ce n'est pas vrai que les baisers peuvent suffire.

Quelque chose m'étouffe, ici, comme un sanglot.
J'ai besoin d'exprimer, d'expliquer, de traduire.
On ne sent tout à fait que ce qu'on a su dire.
On vit plus ou moins a travers des mots.
J'ai besoin de mots, d'analyses.

Il faut, il faut que je te dise…

Il faut que tu saches, mais quoi!

Si je savais trouver des choses de poète.

En dirais-je plus —réponds-moi— que lorsque je te tiens ainsi, petite tête, et que cent fois et mille fois je te répète éperdument et te répète:

Toi! Toi! Toi! Toi!…”.


Ou na tradução primorosa do nosso GUILHERME DE ALMEIDA:
 


Eu gosto, gosto de você!

Compreende? Eu tenho por você uma doidice…

Falo, falo, nem sei o quê,

Mas gosto, gosto de você.

Você ouviu bem isso que eu disse?…

Você ri? Eu pareço um louco?

Mas que fazer para explicar isso direito,

Para que você sinta?… O que eu digo é tão oco?

Eu procuro, procuro um jeito…

Não é exato que o beijo só pode bastar.

É preciso exprimir, traduzir, explicar…

Ninguém sente senão o que soube falar.

Vive-se de palavras, nada mais.

Mas é preciso que eu consiga

Essas palavras e que eu diga,

e você saiba… Mas, o quê?

Se eu soubesse falar como um poeta que sente,

diga!— diria eu mais do que

quando tomo entre as mãos essa cabeça linda

e cem, mil vezes, loucamente,

digo e repito e torno a repetir ainda:

Você! Você! Você! Você!…”.
 


14. Pode opinar-se estarmos diante de uma tautologia: o que se apreende e exprime de Toi é apenas  Toi (: ou, definidamente, Você é Você; e isso basta porque, pensar-se-á, é o limite do conhecimento possível). Por isso, para mitigar (ou ladear) a contínua numinosidade do objeto há o recurso aos tropos, com a metáfora e a alegoria à frente. Sua explicação, pois, é não só objetiva —a dificuldade própria de o objeto deixar apreender-se—, mas também subjetiva: a paixão que turba o sujeito cognoscente.

Isso é conatural ao conhecimento humano.

15. Recolho, a título ilustrativo, um caso que bem indica essa conaturalidade do tropo (: ou translação, com que se aplica a uma palavra um sentido que não lhe é rigorosamente próprio). Tomo o episódio histórico de uma “escritora” de primeiras linhas, menina então com nove anos de idade, entre cujos primórdios de redação se acha um conto: A Menina e o Pássaro Encantado (JÚLIA CINTRA FERREIRA). Era de todo provável —para não dizer inteiramente certo— que essa nossa “literata” desconhecesse o conceito de metáfora e a lição de CAPMANY de que a alegoria é uma continuada metáfora. Com tudo isso, A Menina e o Pássaro Encantado é uma alegoria mista em que se recrutam dados próprios —p.ex., a inclusão literária da mesma autora (: “Um belo dia uma menina chamada Júlia foi passear em uma floresta”) e de seu pequeno irmão (: Gabriel… que sempre é liderado pela irmã…)—, de par com  elementos transferidos, assim Rochefer, o pássaro do conto: “entre todos os bichos que ela viu, se encantou com o mais bonito, um pássaro que falava, cantava, brincava e até cozinhava!”.

Grandville – os recursos alegóricos

Uma festa do estilo alegórico, enfim.

16. É muito comum a antropomorfização alegórica de animais e até de vegetais (: é falante a flor do planeta do petit prince de SAINT-EXUPÉRY: “Mais oui, je t’aime, lui dit la fleur”) e de entes brutos (assim as cartas de copas, em Alice's Adventures in Wonderland de LEWIS CARROL). Em AUGUSTO DOS ANJOS, no soneto A Árvore da Serra, comparte-se a alma humana singular com os cedros e o junquilho:
 


As árvores, meu filho, não têm alma

E esta árvore me serve de empecilho.

É preciso cortá-la, pois, m.eu filho, 

Para que eu tenha uma velhice calma! 

Meu pai, por que sua ira não se acalma?! 

Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?!

Deus pôs alma nos cedros… no junquilho.

Esta árvore, meu pai, possui minh’alma”.


Mas predominam, na literatura, os animais que se antropomorfizam: difundem-se eles, v.g., ao largo das fábulas de ESOPO, dos contos de GRIMM (: o rei sapo, os músicos da cidade de Bremen, os sete cabritinhos, o lobo do Chapeuzinho Vermelho etc.), nas admiráveis Crônicas de Nárnia de C.S.LEWIS, nas Camperas de Leonardo Castellani, no Felix de las Maravillas de RAMÓN LLULL, no Animal Farm de ORWELL. A serpente, encarnando o demônio, seduz EVA a cometer o primeiro pecado.

17. O nuclear em A Menina e o Pássaro Encantado parece residir na passagem alegórica final em que se conclui pela impossibilidade de manter-se Rochefort numa gaiola:
 


“…Júlia e Gabriel tomam uma decisão, que iriam comprar uma gaiola para prender o  para prender o Pássaro porque não agüentavam de saudades. E assim foi feito. Compraram uma gaiola e quando o pássaro estava adormecendo, o prenderam nela. Na manhã seguinte Júlia corre e vai até o porão e Gabriel vai atrás. O pássaro estava todo cinza e preto . Júlia logo pergunta:

Meu amigo por que está assim?

O pássaro sem forças suficientes para falar diz bem calmo:

Estou assim porque necessito de ver as cores para expressar sentimentos e para voar e ter cor.

Mas só fiz isso porque sinto muitas saudades de você quando viaja!

Eu sei! Mas se prefere que eu morra a saudade é para sempre!”.


A frustração da impossibilidade de cativar —ao revés do comum reflexo de desforra (nesse sentido, ECO, em Os Limites da Interpretação)— desagua, nesse conto, num mecanismo de regresso periódico, escape sotérico que, para vencer a desesperança, preserva a possibilidade seja de uma cativação futura, seja de uma transitoriedade hospitalária (: o hóspede a quem se reserva um cativeiro livre e temporário).  O pássaro Rochefort é decerto um tipo —concretamente identificável numa dada quadra histórica— mas é também o contratipo de todas as possíveis esperanças amoráveis da personagem central do conto.

(Continuamos).

* Ricardo Dip é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo e Conselheiro do Irib.



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