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Meditações gauchescas

Hermenêutica registral

Tópicos para uma hermenêutica registral – parte 3
Ricardo Dip*


Ricardo Dip em debate no Centro de Estudos de Direito Natural José Pedro Galvão de Sousa (27/5/2006).

18. Os piedosos leitores dos escritos inaugurais destas “Meditações gauchescas” ter-se-ão dado conta de que, por algo, meu escopo de incursionar pela Hermenêutica Registral começou por referir umas interpretações tão aparentemente pouco jurídicas ou só de modo remoto reportáveis ao domínio do direito.

19. Resisti a uma tentadora antecipação, confesso, a que me incentivaram as interpelantes referências de Sergio Jacomino ao prologar, com esmero, a segunda parte destes Tópicos (O direito é uma obra aberta? In Observatório do Registro): pareceria propício, de fato, que eu me lançasse aqui e de logo a investigar as fronteiras de uma interpretação forrada de boa razão.  O que implicaria, de um lado, o resguardo da liberdade de interpretar mas, de outro lado, o reconhecimento de que essa liberdade não alforria a  interpretação sem fim.

Mas não, não agora. Eu devo uma explicação a meus generosos intérpretes: por que raios de motivos eu me pus a falar de Dostoievski, do quase imaginário Camponês andorrano e até de uma escritora de primeiros contos —a pequena Júlia Ferreira—, se meu objetivo é versar a interpretação registral?

Simples de todo: o direito é, primeiro e designadamente, uma coisa, a “coisa justa”, a res iusta das definições de muito probo idioma latino que ouvíamos com freqüência nos seminários, que já lhe abandonaram o trato, e nas Academias de Direito, estas, parece, o último reduto dos originais de Cicero, Gaio, Modestino e Paulo.

20. O direito é, sobretudo, a res, a coisa justa. Ela se encontra aí, hic et nunc, ao encontro quase das nossas mãos. O to dikaion de Aristóteles, aquilo que é reto, o quod semper aequum ac bonum do jurisconsulto Paulo: isso está na vida, na trama diária das coisas que se passam sob o sol. Quando, em Dostoievski, se lê que Katierina Nikoláievna frauda a expectativa de Viersílov, falseando a notícia de seus verdadeiros sentimentos —“eu o amo quase”—; quando, para zombar do Camponês de Andorra, de quem acaso se apieda um tanto, Kimathi diz “amá-lo  a seu modo”, “amá-lo de vez em quando”, num e noutro desses episódios é visível o torcido das palavras e das situações, o contraverdadeiro, o iniusti.

Isso está primeiro na vida, na concreção desta nossa vida, e só depois disso —por analogia— pode pensar-se em estender a idéia (e a palavra) direito para alcançar a ciência do direito, a sentença de direito, a norma de direito, a faculdade de agir segundo o direito

Aristóteles, em busto que se acha no Museu do Louvre

Santo Tomás de Aquino, na tela de Fra Angelico

Em síntese, o direito não é, primeira e principalmente, a ciência que o estuda, o julgado que o declara, a norma que o sinaliza, a faculdade de quem atua. O direito é, nomeadamente, a coisa que uma ciência jurídica estuda, o objeto material que um julgado declara, a meta a que uma norma encaminha, a causa com que as pessoas agem para satisfazer seus débitos de fazer o bem devido a outro e evitar o mal nocivo a outrem.

Mas se algum de meus leitores põe-se a viajar a Santiago de Compostela, qual é sua meta ou objeto terminativo? Essa cidade galega ou o mapa que lhe sinaliza um ou mais modos de chegar a ela? E por que, diversamente, há quem sustente que o direito não é, por primeiro e propriamente, a coisa justa ou meta a que a lei sinaliza. Eu não me desavenho se alguém me diz “cheguei a Santiago de Compostela”, indicando, num pontinho gráfico, a cidade da Galícia num mapa mundi, contanto que não me neguem seja o ponto gráfico apenas um sinal da realidade sinalizada. A lei é apenas isto —nec plus ultra: um sinal para chegar-se ao direito.

21. Pode alguém dizer-me que a jurisprudência doutrinária —ou ciência do direito— também se chama “direito” desde, ao menos, os tempos de Celso, cujas palavras recolheu Ulpiano, a designar direito a ciência e arte de conhecer o direito: iusti atque iniusti scentia ars boni et aequi (Digesto, 1, 1, 2).

Não me esqueço ainda do acréscimo de Francisco Suárez, para quem o termo direito significa também facultas ou direito subjetivo, nem, séculos antes, a lição de S.Tomás de Aquino, indicando o uso do ius para expressar o lugar onde se procura o direito, a arte de discerni-lo e a sentença proferida por quem possui o ministério de administrar a justiça.

S. Isidoro de Sevilla e Francisco Suárez 1 - 2

22. Não se recusa o uso do termo direito para referir a lei ou a norma justa. Já se lia em S.Isidoro de Sevilha, nas ainda imperdíveis  Etimologias, que direito é nome genérico (ius generale nomen est), e a lei um seu concreto ou específico (lex autem iuris est species), a que cabe também o nome direito, porque a lei é algo justo (ius autem dictum, quia iustum est).

De que segue a lição de S.Tomás, para quem a lei não é propriamente o direito, mas uma razão do direito: lex non est ipsum ius, proprie loquendo, sed aliqualis ratio iuris.

23. Interpretar o direito, portanto, é muito mais do que interpretar um texto de lei. É acaso  também interpretar esse texto. Mas é interpretar a coisa, desvendar a res iusta.

O dia em que um gráfico sonolento imprimir o caminho de Irun a Zaragoza como se fora uma das rotas para Santiago, o viajante desavisado, distanciando-se da Galícia, não impreque contra a ciência e arte da hermenêutica: ela nunca teve a missão de circunscrever-se a letras, vírgulas, pontos e retas, como se o “caminho de Santiago” fosse principalmente seu falseado plano de viagem. Não, não. A interpretação pede que se ponham os pés no chão, ainda que os olhos, estes, de quando em quando, é bom que se voltem aos céus.

(Continuaremos). 

* Ricardo Dip é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo e Conselheiro do Irib.



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