BE3212

Compartilhe:


Qualificação registral: abrangência e importância
Ricardo Henry Marques Dip*


Palestra proferida pelo desembargador Ricardo Dip, no XXXIV Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil, no dia 28 de setembro, no hotel Majestic Palace, em Florianópolis, SC

Vamos falar, rapidamente, sobre estado histórico e estado atual da qualificação registrária no Brasil; conceito de qualificação registral em sentido próprio; uma breve explanação sobre a idéia do juízo prudencial; conceito de qualificação registral em sentido lato; natureza jurídica da qualificação registral; objeto material; correlação com os efeitos da publicidade registral; e uma brevíssima excursão sobre a qualificação registral dos títulos judiciais.

Estado histórico e estado atual da qualificação registrária no Brasil

Há duas datas que podem ser apontadas como as datas em que se encaram os alicerces de uma reconstrução, uma vez que a idéia não é nova; vamos encontrar o tema da qualificação já no século XIX. Houve um momento em que se fez necessária a reconstrução científica e o debate acerca do assunto. Esse momento, a nosso ver, documenta-se em duas datas.

O primeiro congresso dos registradores do Rio Grande do Sul, em 1990. Nele, afirmávamos que o saber próprio do registrador era de caráter prudencial, o que o aproximava do saber típico do juiz. Claro que isso não impedia que o registrador tivesse o saber científico. Alguns até foram inclinados a saber saberes de caráter filosófico, mas propriamente no exercício da função que se exigia do registrador era o exercício prudência, a decisão do caso.

Já no ano seguinte, foi possível extrair desse fundamento anterior uma idéia: Qual tarefa se exercita no saber prudencial? Como é que esse saber prudencial se desenvolve? Foi então possível tratar da qualificação registrária quase como uma continuidade já suavizada pelo tema tratado em Porto Alegre.

Finalmente, dei-me conta de que, no ano seguinte, sem que sequer percebesse essa ligação entre os temas, em Goiás, completei uma trilogia da mesma matéria ao falar da ética dos registradores prediais. Hoje é que me dei conta de que os três temas estavam ligados.

A pergunta que se faz é: por que razão, em 1989 e 1990, se discute o tema? Que acontecimento houve que levava a comunidade registrária a dar audiência a um então menino que estava transitando pela Vara de Registros Públicos de São Paulo, e que se dava o topete de falar de prática registral para aqueles que praticavam o registro? Por que razão me ouviram, além da generosidade provável do coração de todos que ali estavam?

Essa pergunta pode se articular com outra. Por que razão a qualificação registrária volta à cena agora? São, na verdade, os mesmos atropelos que àquela altura existiam e que existem ainda agora. A mesma situação nebulosa que envolve o tema de atribuir-se ao registrador algo que foi o extrato dessas conclusões a que pudemos chegar no início da década de 1990.

É a vitória do paradigma da independência jurídica do registrador, independência essa que continua sendo de fato questionada. Não teoricamente questionada, mas de fato questionada.

Em 1990 e 1991, resolvemos pôr o dedo na ferida porque havia um caso em andamento. Na década de 1980, uma juíza do Trabalho determinou a um cartório de registro de imóveis de São Paulo praticar determinado ato. A oficial maior estava em adiantado estado de gravidez e teve de cumprir o mandado sob pena de prisão. Ligou para o juiz da vara titular, o doutor Narciso Orlandi Neto, que a autorizou a praticar o ato e ele próprio determinou o cancelamento. Quando soube, a juíza do Trabalho representou contra o juiz da Vara de Registros Públicos, que representou contra a juíza trabalhista. O então Tribunal Federal de Recursos decidiu que, enquanto a questão não se resolvesse, a Justiça do Trabalho passaria a ser a corregedora daquela matrícula.

Está aí todo um cenário necessário para verificar que, afinal de contas, o registrador pode examinar e recusar um título judicial, ou deve seguir o conselho “manda quem pode, obedece quem tem juízo”?

Isso precisava ser estudado do ponto de vista doutrinário, mas não só isso, precisava ser pensado na altura. Era preciso que se tomasse consciência do problema, uma consciência vincada em fundamentos e não simplesmente uma irresignação com o que ocorria, de tal sorte que havia uma linguagem performativa “faça-se”, que se opunha a outra “não faço”. O correto seria “não faço por causa disso e disso”. Esse era o elemento que faltava.

Muito embora eu tenha tido a imensa satisfação intelectual e pessoal de, em 1997, ser surpreendido por uma exposição que superou e muito tudo aquilo que eu havia falado no início da década de 1990, proferida pelo doutor Sérgio Jacomino que, a nosso ver, fez os estudos, até o momento, definitivos sobre essa matéria, parece que é hora de repassarmos esse tema e avançar algumas idéias.

Qualificação registral em sentido próprio

Primeiro, sobre quais são essas ameaças. Segundo, sobre alguns dos aspectos que pudessem ser aprofundados do ponto de vista teórico. Terceiro, sobre algo que já estava presente em 1990, mas que, agora, talvez possa nos dar uma pista de melhor articulação no tema da qualificação registral correlacionado com os efeitos da publicidade registrária.

De par com esses temas que, de algum modo, são novos, repassarei algumas questões que já estavam expostas àquela altura.

Temos interferências supressivas desse paradigma da independência do registrador. A primeira coisa é a crise da dualidade.

Os operadores jurídicos – sejam juízes, notários ou integrantes da administração pública –, na medida em que elaboram títulos pensam que não tem sentido que haja uma dualidade qualificadora. Ou seja, eles já qualificaram o título, eles têm competência para a expedição do título, e não compreendem como pode haver um outro agente jurídico que possa competir com essa qualificação. Por isso, acusam essa dualidade como uma espécie de superfetação dúplice. Isso é especialmente mais expressivo quando há uma atividade jurisdicional em concorrência com uma autoridade, ou um agente registrário.

O equívoco dessa visão está em que a primeira qualificação, ou seja, a qualificação judicial, a qualificação notarial, ou a qualificação administrativa, se dá em ordem à formação do título. Ao passo que o registrador não qualifica para dizer que o título está desqualificado em sua ordem, mas está desqualificado para fins de registro.

Um grande notário espanhol, Rafael Lagos, diz com muita precisão que um título não é válido porque se registra, ele se registra porque é válido. O que faz o registrador, na verdade, é verificar se esse título está em condições de ingressar no registro de imóveis e, portanto, não duplica inutilmente uma qualificação já feita, senão que faz a qualificação na sua própria ordem. Ou seja, são os limites da independência jurídica do registrador.

A segunda interferência da independência jurídica do registrador vem dessa praxe ampliada de judicialismo, o que é compreensível. Há dois vetores a apontar, o primeiro é local. A Constituição brasileira é tão grande, tem tantos princípios, que o Judiciário se sente à vontade para aplicar o direito que vê, muitas vezes, com retíssima intenção.

O resultado desse judicialismo, que tem como outro vetor um certo irracionalismo judiciário que tomou conta do século XX, é a idéia de resolver o direito como prática decisionista, ou seja, “decido o que bem entendo”, ou prática de situacionismo jurídico, ou seja, o próprio caso decide a situação, independentemente de normas, de tal maneira que o Judiciário passa a decidir o que bem entende. Isso enfrenta o problema da legalidade em que se circunscreve a qualificação.

É complexa a atuação de um registrador que, tendo que atuar com a legalidade e dentro dos limites da legalidade, enfrenta decisões de caráter judicialista.

Adiante, temos o tema da ansiedade de uniformismo com a sua hipertrofia regulatória. Mal sai uma das nossas instáveis leis, já não faltam meia dúzia de provimentos, portarias, decisões normativas, todos querendo regulamentar, e sempre com a idéia de que a uniformidade é boa.

De fato é boa a uniformidade, se for o resultado de uma experiência. E não o uniformismo apriorístico, que é uma camisa de força. Podemos entender a uniformidade como ordem resultante de experiências históricas, ou como ordem performativa. Cumpre-se desse modo, está resolvido o problema. Há uma ansiedade uniformista e há, também, uma hipertrofia no espírito de regulação.

Essa é uma questão que merece, nos próximos tempos, uma incursão mais efetiva. Mas hoje vivemos uma mudança que, lastimavelmente, já vai sendo aceita na linguagem. Meu temor é que, com essa linguagem inadvertida, se vá trasladando da posição que me parece acertada. Primeiro, o registro deixa de ser uma instituição social que se dirige à organização, sobretudo, à organização da propriedade privada para ser um órgão a serviço da Administração pública, como coleta de dados, verificar se os impostos estão sendo pagos, informações que interessam ao fisco, etc. Corremos o risco de uma instituição social transformar-se em órgão administrativo.

A denúncia do administrativismo vem desde o início da década de 1990, e de lá para cá só vem piorando. Há uma linguagem que vai admitindo que o registro é para isso mesmo, ou seja, é uma das mãos informativas ou um dos tentáculos informativos do Estado.

De par com isso, e embora não diga diretamente respeito à qualificação registrária, pelo menos não como interferência supressiva, a outra mudança que é relevante em que abandonamos o primado da segurança estática em favor da segurança do tráfico, que corresponde exatamente às teses do neoliberalismo.

Isso está, efetivamente, fazendo uma revolução copernicana no registro. Alteramos a ordem das seguranças, tornamos o registro, sobretudo, custódio do crédito, em vez de custódia da propriedade privada e, ao mesmo tempo, transformamos aquilo que está dentro da lógica, uma mão da Administração pública.

É evidente que nesse quadro, nessa visão tentacular do registro ligado à Administração pública, dá-se uma interferência manifesta da independência do registrador.

Pergunto-me se não estaria nessa reconvocação do tema da qualificação registrária um novo toque de reunir da doutrina como esteve na década de 1990, quando foi possível que gente muito melhor do que eu generosamente me propiciasse falar para extrair certas visões de resistência, resistir àquilo que estão fazendo para não trair, na verdade, a função do registrador, essa função de garante da propriedade num primeiro passo, mas das liberdades concretas num segundo e mais importante passo. É o juízo prudencial, positivo ou negativo, da potência de um título quanto ao seu registro, incluindo a ordem, império correspondente.

Em geral, as definições têm de compreender todos os objetos a que elas se estendem. Por outro lado, as definições têm de ser concisas, sob pena de não servirem como definição.

Há uma qualificação registral que não se encaixa no conceito, que é a qualificação destituída de império nos casos de mero exame de cálculo de custas.

No essencial, essa antiga definição continua adequada. Satisfaz-nos que ela ainda possa ser utilizada tantos anos depois. Mas é preciso considerar que ela está centrada no fato de que é um juízo prudencial, e como todo juízo prudencial, detém um império. Essa definição falha numa hipótese: naquele caso em que se faz a qualificação para mero exame de cálculo de custas sem o império do registro.

Uma breve explanação sobre a idéia de juízo prudencial

Vamos ao tema que seja, talvez, o mais dificultoso, isto é, o que vai se entender por juízo prudencial.

A prudência é uma das quatro virtudes cardeais. Ao lado da justiça, da fortaleza, da temperança, temos a prudência. Essa é uma lição que vem de Aristóteles. Talvez porque antes dele havia um unitarismo dessas virtudes todas que não se distinguia muito bem. Mas é provável que, mesmo com esse unitarismo, fosse possível distinguir, por exemplo, em Sócrates, ou mais seguramente, em Platão, essas virtudes, além de outras de natureza intelectual.

O próprio da prudência, como hábito operativo, portanto radicado na razão prática e não na razão teórica, ou seja, chama virtude, ou conjunto de disposições, para realizar algo transcendente, ou algo que diz respeito a uma verdade de natureza prática que se vai realizar, o contrário daquelas virtudes da razão teórica que se contentam em contemplar uma verdade acabada. Por exemplo, um astrônomo, se deseja ver algumas estrelas ou o trânsito da lua ou dos planetas, contenta-se em ver, teorizar, especular. Ou seja, vejo o objeto e já tenho o conhecimento pronto. Ao contrário, quando se está diante de temas da razão prática, o que temos é uma verdade que ainda se vai realizar, é um operável.

Assim, se imaginarmos uma das virtudes práticas da arte, o que faz o artista? O artista vai realizar alguma coisa. A verdade, para ele, depois de concebida, vai ser consumada adiante, não está pronta.

A mesma coisa ocorre no âmbito da prudência, que faz parte da razão prática porque visa a um operável. Porém, diversamente da arte que visa algo factível, a prudência visa ao agir humano e, por isso, essa virtude diz respeito a um bem imanente do homem. Erradica-se formalmente do intelecto cujo objeto, entretanto, é material. Ou seja, diz respeito ao âmbito moral, por isso de algum modo se diz que, materialmente, a prudência é uma virtude volitiva, isto é, também erradicada na vontade, de tal sorte que, para o exercício do ato prudencial há um percurso entre vontade e inteligência em várias operações para que chegue a um resultado. Isso porque, embora seja uma virtude formalmente intelectual, é materialmente moral.

O que há de interessante na prudência é que ela não diz respeito às realidades universais, mas às realidades contingentes e às realidades singulares. Ela toca o caso concreto.

Tive grandes professores que eram notáveis do ponto de vista pedagógico, mas não foram bons juízes. Em contrapartida, na minha atividade adjudicante, encontrei magistrados que estavam completamente despreparados do ponto de vista científico. Mesmo assim, acertavam sempre as soluções. É impressionante como tinham condições de julgar prudencialmente. Sabiam decidir, embora não soubessem uma teoria fundacional que levasse a isso.

É claro que o melhor não é ficarmos com essa sorte, melhor é que alguém tenha preparo científico. Mas são coisas distintas. E o conhecimento que se pede do registrador não é o científico. O tipo do saber que se exige do registrador é que ele saiba decidir casos.

A prudência é algo que influi sobre a reta razão de agir no caso concreto. Há uma passagem em Camões que aproximava a prudência em providência. A prudência, no fundo é isso, uma providência. É ver da memória do passado e da experiência do presente o que vai ocorrer no futuro.

É por isso que, muitas vezes, encontramos como elementos da prudência a discrição, o discernimento, discernindo o que lícito e o que não é lícito. Em seguida, dentro daquilo que é lícito, o que é cômodo e o que é incômodo, o que é oportuno e o que é inoportuno, o que é para agora e o que é para depois. Isso é que é ser prudente. Portanto, diz respeito ao agir e não ao fazer.

Esse é um tema que deve ser cuidadosamente pensado. A tarefa do registrador não é técnica. Ela tem elementos técnicos, mas não é técnica. A busca daquilo que é certo, a res certa do registro de imóveis, que é compaginada com a res justa, não é uma coisa que se faz, mas uma coisa que se age.

Os três atos da prudência são: o conselho, o juízo e o império. O conselho é a deliberação, o discernimento, a discrição. O juízo é o momento central que se decide se se registra ou não se registra. E o império, que não é um juízo meramente teórico ou acadêmico.

Uma provocação para aqueles que queiram se dedicar a aprofundar esses temas. Os registradores têm uma experiência concreta que pode confirmar nossa impressão de que é mais tirada da experiência judicial do que da experiência indireta do sistema registrário.

Em geral, os juízos proferidos prudencialmente, tanto pelo registrador quanto pelo juiz, passam-se no âmbito de uma virtude anexa da prudência, e que participa do núcleo central da virtude a que se refere, mas um tanto deficiente.

A sínese é a virtude anexa da prudência que diz respeito aos atos de senso comum. Penso que seria muito interessante verificar quais são os juízos que sugerem soluções excepcionais. Na maior parte das vezes, os juízes são próprios da sínese, são os juízes comuns.

Sugiro separar o que cai no campo do juízo gnômicopara verificar até que ponto o registrador pode atuar com essas soluções excepcionais. Parece-nos que há uma franja em que se possa reconhecer essa situação.

Qualificação registral em sentido lato

O ponto alto da qualificação é um juízo. É a vinculação de dois termos entre si. Entretanto, a esta altura, talvez seja justo que reconheçamos que a qualificação, até mesmo na sua designação, abrange um procedimento preparatório e uma etapa de execução.

Parece correto o procedimento preparatório. Quantas vezes os senhores já não terão dito a alguém que um título está sendo qualificado. Quando se diz isso, suponho que o título está sendo examinado, não julgado.

Como a qualificação é propriamente um juízo, ao dizer, em sentido próprio, que o título está sendo qualificado, entende-se que está sendo judicado nesse momento, quando, na verdade, está sendo examinado preparatoriamente. Há, portanto, a idéia de uma qualificação em sentido lato.

O estado do juízo é a qualificação stricto sensu e há uma etapa de execução. Não estamos em mera discussão acadêmica sobre a registrabilidade de títulos, estamos decidindo um caso real, portanto, tem de ser executado, o que no registro de imóveis significa registrar ou não registrar.

Suposto que se trata de um juízo de qualificação positiva, teremos três funções a indicar. Notem que, muitas vezes, essas funções já estão gestadas ao longo do procedimento preparatório.

A primeira função é seletiva – os títulos são cindíveis. O registrador seleciona o título, sobretudo num sistema como o nosso que não é mais um sistema de transcrição. Ele não copia, portanto, ele tem uma função seletiva que nada mais é do que uma função de discernimento. Prudentemente, o registrador seleciona as partes, separa-as, abstrai aquilo que não deve ser objeto do registro e seleciona o registrável.

A segunda função é extratativa. Depois de selecionar o registrável daquilo que não é registrável, o registrador extrata aquilo que convém ao registro, uma vez que o registro é real. Pode dar-se o caso de que, na parte selecionada de um título, haja coisas que não interessam à publicidade registral imobiliária. Por isso há uma função de extratação.

A terceira e importante função é textualística – é claro que, ao considerarmos um cartório que tem um sistema informatizado, não vamos ver muita diferença textualística entre os vários atos examinados por mais de um preposto. Isso nem sempre é assim se imaginarmos que há títulos que escapam ao comum das coisas. Mas, seguramente, não é assim se tivermos dois ou três cartórios cotejados, cada cartório textualiza de maneira diferente os seus registros.

De tal sorte que aí se completa todo o ciclo da qualificação: preparação (o exame inicial), juízo (registra-se ou não se registra) e execução. Assim, por meio dessas três funções, cumprimos o império.

Natureza jurídica da qualificação registral

É textual na lei brasileira (art. 204, LRP), esse procedimento não faz coisa julgada material. Não vejo como compatibilizar a idéia de uma natureza jurisdicional da qualificação registrária com a falta de res judicata material.

Administrativa também parece que não é. Embora da leitura do artigo 236 da CF possa vir a tentação de imaginarmos o agente delegatário como um agente público, falta ao registrador um vínculo hierárquico que impeça o exercício independente de suas funções jurídicas que é fundamental para reconhecer o caráter administrativo. Portanto, essa função não é administrativa. Será administrativa no dia em que os registradores não tiverem mais liberdade de atuar.

É bem razoável a afirmação de que se trata de ato de administração pública de interesse privado. Expressão que estaria muito familiarizada com a dicção do artigo 236 da CF. O problema talvez seja a característica sui generis da qualificação registral.

No Direito brasileiro não há nenhum caso de jurisdição voluntária concorrente com a atividade jurisdicional. Ou seja, todas as decisões de jurisdição voluntária formam coisa julgada formal em si próprias sem possibilidade de recorrermos à jurisdição contenciosa para controlá-la. Diversamente, o artigo 204 diz que cabe o processo contencioso. Logo, é possível controlar a qualificação por meio de processo contencioso. Por isso a idéia de que não é propriamente jurisdição voluntária no plano em que a jurisdição voluntária é conhecida no direito brasileiro, ao incontrolável pela jurisdição contenciosa. Mas tem todo o recorte de uma jurisdição voluntária sui generis.

A nosso ver, a qualificação registrária é o ato mais importante que se pratica no registro, porque está centrada na fé pública do registrador. E é um ato personalíssimo, indelegável. É um ato jurídico, obrigatório e integral, ou seja, deve ser feito de maneira plenária, salvo num caso de qualificação abreviada que se pode dar em temas de competência.

Objeto material da qualificação registrária

O registrador só podia examinar o próprio título levado a registro. De repente, me dei conta da imensa bobagem que havia nisso, uma vez que, se houvesse um título do contraditório prenotado, o registrador também teria de examiná-lo. Isso quer dizer que o registrador tem seu mundo limitado ao registro e aos títulos, salvo no procedimento retificatório, em que o registrador abandona o mundo do seu cartório e sai a campo.

De modo geral, o registrador está limitado pelo registro e pelos títulos, da mesma forma como os juízes estão limitados pelo processo. Esse limite é importante para o controle social da atividade do registrador bem como para o da atividade do juiz. Freqüentemente, o juiz é obrigado a se curvar a certas realidades processualizadas, embora possa ter notícias de algo que poderia alterar a verdade dos fatos. Como juiz, ele não pode trazer para o processo notícias de coisas que não se encontram no processo, salvo fatos normativos e fatos notórios.

Sei que alguns registradores, com intenção de fazer justiça, desbordam um pouco a atividade, o que não é conveniente para a função. O que não quer dizer que não possam, de outro modo, trabalhar para que resultados justos ocorram quando se sabe de fatos que possam levar a resultado diverso daquilo que se está fazendo. Mas não podem, oficialmente, adotar a conduta de quem tem, mais ou menos, a função de Deus. Esse é o tipo de problema em que o remédio é um pouco pior do que a enfermidade.

O que se qualifica diretamente é o título em sentido formal, a escritura, a carta de sentença, a carta de adjudicação, etc., e não o título em sentido material que, entretanto, é qualificado indiretamente. Se a qualificação do título fosse direta em sentido material, teríamos o problema da dualidade, reconheceríamos que têm razão aqueles críticos da independência da qualificação registral porque estaríamos nos metendo com o título em sentido material que foi decidido na origem por aquele que o elaborou.

Elaboramos uma espécie de teoria auditária da qualificação registral. Os cartórios evoluíram muito a esse respeito. Muitos têm o chamado check list para qualificar os títulos. De tal maneira que os títulos são tratados com certa uniformidade.

Correlação com os efeitos da publicidade registral

Talvez seja a ocasião de repensarmos de maneira ponderante se não estamos dando um tratamento unitário a coisas diversas. Será que o princípio da especialidade objetiva desempenha o mesmo papel principiológico quando a eficácia do registro é meramente publicitária, quando a eficácia que se pede é constitutiva? Nesse confronto, será que o princípio ainda é o mesmo se houver o mesmo conteúdo? Isso porque estamos correndo o risco de engessar os princípios quando a função do princípio é exatamente a elasticidade.

Penso que devemos cautelosamente abrir caminhos que nos permitam distinguir as situações em que a qualificação registrária pode ser mais ou menos exigente em vista dos efeitos que se pretende obter com o registro, com a publicidade registral.

O que não me parece possível é aceitar o que em São Paulo se tornou quase uma moeda corrente, no sentido de que tudo que vem da Justiça estadual, se tiver alguma coisa errada, não se registra; e tudo que vem da Justiça federal e trabalhista, registra-se imediatamente. Ou, o que vem de um juiz de primeira instância, barra-se, ao passo que, se vier de segunda instância, registra-se imediatamente.

Na verdade, cautelosa e criteriosamente, o que temos de verificar é por que num caso podemos fazer e em outro não? O que distingue os casos? Talvez o caminho seja a distinção das varias eficácias, projetando a possibilidade de nos valermos dos princípios com mais ou menos rigor.

O que estamos fazendo é normativizar os princípios, ou seja, eles se tornam uma norma tão rígida quanto outra em sentido estrito. E parece que não é essa a função dos princípios.

Em todo caso, seja qual for a solução que possamos adotar nessa matéria, insisto na reserva do núcleo duro. O registro está voltado para a segurança jurídica. Por mais abertura que se queira dar a novos títulos, o critério com que devemos conduzir essa tarefa é sempre aferir se a segurança jurídica estará salvaguardada.

Ainda acho que o registro de imóveis é o instituto que mais atribui segurança jurídica, de todos os institutos jurídicos que conheço. Não vai perder essa característica que faz a grandeza do registro de imóveis, ou seja, a dação de segurança jurídica.

Qualificação registral dos títulos judiciais

É a grande dor de cabeça dos registradores, mas que pode vir a fazer a festa dos advogados criminalistas especializados em habeas corpus.

O que se examina, primeiramente, é a competência, mas somente a competência absoluta. Segundo, a congruência do título em sentido formal com o título em sentido material. Não se trata da congruência que alguns começaram a interpretar de reexaminar ou reavaliar a decisão. O registro não ocupa o papel de órgão revisor das decisões judiciais.

No capítulo da congruência, o que ele examina é se o título é congruente com o que se encontra na decisão. Suponha que a decisão julga improcedente determinado pedido, mas o cartório expede um mandado como se a sentença tivesse sido de procedência. Esse é um caso de incongruência, ou seja, o título em sentido formal não se conforma com a decisão proferida. Essa é a congruência que o cartório deve ver.

Finalmente, os obstáculos registrais. Nesse ponto, encontramos todas as indicações normativas para o perfazimento adequado do registro. Um título que tira a especialidade, um título que fira a disponibilidade, etc. não pode ser registrado somente porque provém do Judiciário.

Um tema novo que envolve a dúvida

Durante muito tempo, a opinião que dominou os pretórios, e até mesmo as discussões em paralelo sobre o artigo 204 da LRP, anunciava que o processo contencioso era uma ação autônoma. Penso que não. Não firo a nenhuma confidência contar-lhes que acompanhei conversas na sala de registros públicos entre o ministro Celso de Mello e o então juiz Narciso Orlandi Neto, e outros juízes, que discutiam sobre o artigo 204. Recordo-me de que o ministro Celso de Mello dizia que o único processo contencioso que cabe é o mandado de segurança. Imaginava-se sempre algo posterior à dúvida. Nunca ninguém imaginou que pudesse ser algo concomitante com a dúvida e, sobretudo, algo que não dependesse da dúvida. Deve-se ao ministro Ruy Rosado de Aguiar essa descoberta. Em determinado momento ele assenta que não há necessidade de se exaurir o procedimento administrativo para se valer do processo contencioso. Isso não está escrito em lugar algum. Portanto, ninguém é obrigado a se valer do procedimento de dúvida.

Uma conclusão semelhante foi a do desembargador Bruno Affonso de André, segundo o qual a forma de evitar esse espartilhamento das decisões administrativas é valermo-nos direto do processo contencioso.

Mas o ministro Ruy Rosado viu uma outra coisa, a possibilidade de que o processo contencioso não fosse um processo autônomo em relação ao título. O artigo 204 não diz que o título é expedido num processo tal e depois um outro processo controla sua registrabilidade. Não está escrito isso. Nós é que começamos a interpretar dessa forma porque sobrevalorizávamos o papel da dúvida. O ministro disse que, se há uma recusa do registrador, a parte pode fazer duas coisas: requerer a suscitação da dúvida e ver resolvido o seu problema na via administrativa, ou ver mantida a recusa, ou move uma ação, e volta o juiz que expediu o título e diz que o cartório não quis registrar o título, pedindo que decida se a recusa está bem feita ou não.

Talvez pensem que esse sistema não seja bom. O doutor Vicente de Abreu Amadei está muito preocupado com a quebra do uniformismo em São Paulo. De fato é um risco, mas compensável por certo arejamento. Sejamos sinceros, um advogado na área registrária, depois de décadas de decisões da corregedoria num determinado sentido, pode provar que o mundo não é quadrado e que, se a corregedoria continuar dizendo que é quadrado, será quadrado e pronto. Ele não terá o que fazer.

Felizmente temos bons exemplos de decisões das corregedorias, mas o fato é que o sistema, em si mesmo, espartilha-se. Portanto, se compensa essa quebra de uniformismo com o arejamento das decisões.

Gostemos ou não, o fato é que o Superior Tribunal de Justiça trilha comodamente essa possibilidade. Arrisquei-me até a dizer que ponho em dúvida o futuro da dúvida. Tenho a convicção de que, quando os advogados começarem a perceber que esse caminho é mais simples do que o da dúvida, será um caminho a trilhar, mais rápido, sem nenhum custo e com uma decisão de caráter jurisdicional.

Em todo caso, a solução, que pode não ser a melhor, resguarda a primeira recusa, porque o registrador qualifica os títulos, recusa o registro e, só posteriormente à sua recusa, na ordem própria do jurisdicional, o juiz vai decidir, bem ou mal.

Ao encerrar esta exposição, quero dizer de uma maneira quase co-natural que vim muito à vontade para falar sobre o tema. Confesso que me preparei para isso, mas não me animei a fazer coisa diversa do que a que fiz aqui, e nisso devo culpar a amizade dos senhores. Se não me saio melhor, ou aprofundadamente, se decepciono alguns, tiro dos meus ombros a culpa. A culpa é da recepção hospitaleira que sempre tenho recebido dos oficiais de registro de imóveis do Brasil. E é por isso que confessei, certa vez, um pouco imprudentemente, um amor institucional. Não sei por que, se bem os amores nem sempre conseguimos explicar, mas o fato é que tenho um grande amor pelo registro de imóveis do Brasil. Muito obrigado!

*Ricardo Henry Marques Dip  é desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, professor da Universidade Paulista e da Faculdade de Direito da PUC Argentina e acadêmico de honra da Real Academia de Jurisprudencia y Legislación de Madrid.



Últimos boletins



Ver todas as edições