BE166

Compartilhe:


 

O Notariado brasileiro perante a Constituição Federal

Ovídio A. Baptista da Silva


Doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul*

1. Enquanto o Notariado dos países de língua espanhola da América Latina seguiu o modelo adotado na Espanha, onde o Notariado desenvolveu-se como organização independente, no Brasil, a partir de um determinado momento de sua história, a instituição perdeu a independência que marcara seu nascimento, para tornar-se um serviço subordinado ao Poder Judiciário, na condição de uma serventia judicial.

Antes das grandes codificações portuguesas iniciadas, em 1446, com as Ordenações Afonsinas, uma lei dada como editada em 1305, recolhida na compilação conhecida como "Livro das Leis e Posturas", instituíra as primeiras disposições legais sobre o regime dos tabelionatos, disciplina depois reproduzidas nas ordenações posteriores.

O regime dos tabelionatos, como se vê das disposições constantes de todas as ordenações, especialmente das últimas, as Filipinas, que vigoraram no Brasil por mais de trezentos anos, era o de uma instituição de natureza privada, obtida por concessão do monarca a quem era devido o pagamento periódico de um tributo.

O Notariado brasileiro, disciplinado até então pelas Ordenações Filipinas, com o Decreto de 2 de outubro de 1851, que dispôs sobre o regulamento geral das correições, passou a ser fiscalizado pelo Poder Judiciário, e a partir daí inseriu-se, como uma mera dependência, na hierarquia do Poder Judiciário, assumindo o caráter de um serviço auxiliar, embora suas funções nada tenham em comum com as atribuições peculiares a esse Poder.

A subordinação da instituição notarial ao Poder Judiciário é uma nota peculiar do Notariado brasileiro que, em virtude de circunstâncias históricas e políticas, distanciou-se inclusive do regime seguido pelo Notariado português, que está ligado, ao contrário do nosso, não ao Poder Judiciário mas ao Ministério da Justiça.

2. A vigente Constituição Federal, no entanto, seguindo a tendência geral que norteou o constituinte brasileiro de 1988, orientado para o que se convencionou chamar "reforma do Estado", introduziu significativa transformação no regime jurídico do Notariado, dispondo em seu art. 236 que os serviços notariais seriam "exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público".

Privatizaram-se, portanto, os serviços de tabelionato e registros públicos, que passaram a ser exercidos "em caráter privado" mediante delegação do Poder Público.

Nos três parágrafos que integram o art. 236, prescreveu a Carta Constitucional que a lei ordinária regularia as atividades dos notários e dos ofícios de registros públicos e disporia sobre sua responsabilidade civil e criminal, definindo a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário, além de estabelecer normas gerais para fixação dos emolumentos relativos aos atos por eles praticados. Finalmente, no § 3o, prescreveu a obrigatoriedade do concurso público de provas e títulos para ingresso na atividade notarial e de registro.

3. A transformação do regime jurídico do Notariado brasileiro foi sem dúvida profunda. De uma atividade subordinada, caraterizada como simples serventia do Poder Judiciário, o Notariado tornou-se um serviço público privatizado, ou um serviço público "exercido em caráter privado".

Segundo dispôs a Constituição Federal, uma lei ordinária haveria de regular as atividades notariais, dispondo sobre a responsabilidade civil e criminal dos notários, e definiria a forma de fiscalização de "seus atos" pelo Poder Judiciário.

4. Em cumprimento ao preceito constitucional, foi editada a Lei 8.935, de 18 de novembro de 1994, cujo art. 3o dispõe: "Notário, ou tabelião, e oficial de registro, ou registrador, são profissionais do direito, dotados de fé pública, a que é delegado o exercício da atividade notarial e de registro".

Com base nos princípios estabelecidos pela Constituição, é possível revelar as seguintes características atuais do instituto notarial: a) trata-se de um serviço público delegado, a ser exercido por profissionais do direito, na condição de agentes privados; b) disso resulta que as pessoas investidas na função notarial, mediante concurso público, não são funcionários do Estado e nem participam dos quadros de pessoal do serviço públicos.

5. Como acontece com o regime das concessões de serviço público, o poder concedente - no caso a União Federal - reservou-se o poder de fiscalizar a regular prestação do serviço público concedido à iniciativa privada. Teve a Constituição Federal, no entanto, o cuidado de explicitar que a fiscalização dos tabelionato e registros públicos, atribuídos ao Poder Judiciário, far-se-á, como é próprio ao regime de todos os serviços públicos concedidos, não sobre o serviço, enquanto estrutura organizacional, como empreendimento empresarial privado, e sim sobre seu produto destinado ao público, quer dizer, a competência do Poder Judiciário haverá de limitar-se ao controle da qualidade do serviços prestados pelos concessionários.

Daí a significativa distinção entre fiscalização "dos serviços" e "fiscalização dos atos" notariais e de registro, tal como está no preceito da Constituição Federal ("a lei definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário").

É evidente que, em casos especiais, quando as circunstâncias assim o aconselhem, poderá o poder concedente, através de Poder Judiciário, investigar amplamente as condições funcionamento do serviço delegado, a fim de apurar eventuais irregularidades, porventura cometidas pelos concessionários, ou agentes delegados.

Esta espécie de auditoria, porém, será sempre ocasional, diferentemente do que ocorria quando os serviços notarial e de registro constituíam simples serventias judiciais, portanto sem nenhuma relação com as normas e praxes usuais no serviço público, em que a hierarquia funcional não pode prescindir da instituição de normas organizacionais e disciplinares permanentes, visando ao controle rigoroso e constante dos serviços administrativos e da ação de seus respectivos funcionários.

6. Esta exegese encontra conforto na seguinte disposição da Lei 8.935: "Art. 37. A fiscalização judiciária dos atos notariais e de registro, mencionadas nos arts. 6 a 13, será exercida pelo juízo competente, assim definido na órbita estadual e do Distrito Federal, sempre que necessário, ou mediante representação de qualquer interessado, quando da inobservância de obrigação legal por parte de notário ou de oficial de registro, ou de seus prepostos".

A fiscalização judiciária, que a lei insiste em ressaltar que haverá de limitar-se aos "atos notariais e de registro", poderá ter lugar "sempre que necessário" por iniciativa do poder concedente, ou quando provocado mediante representação de qualquer interessado. Todavia, quando isto terá lugar ? Quando - diz a Lei - da inobservância de obrigação legal por parte dos concessionários do serviço público e de seus prepostos.

Na verdade, ao dispor essa norma que a fiscalização será feita "quando necessário", já está a prescrever que ela não será permanente, como ocorre, no serviço público, na relação de subordinação hierárquica existente entre o servidor de escalão inferior e os órgãos situados nas escalas superiores da organização do serviço público, a quem caiba o respectivo controle administrativo.

Nas hipóteses previstas pelo art. 37 da Lei 8935, a fiscalização poderá ser feita, sem dúvida, sobre todo o serviço, para que se investigue as possíveis irregularidades apontadas, de modo a que se possa aplicar aos responsáveis as penalidades previstas em lei.

7. A lei que regulamentou o preceito constitucional, foi expressa ao destacar que os notários e registradores gozam de independência no exercício de suas atribuições (art. 28), proclamando seu art. 21 que "o gerenciamento administrativo e financeiro dos serviços notariais e de registro é da responsabilidade exclusiva do respectivo titular".

8. Tendo em vista esses princípios, julgamos que o regime que antes da Constituição Federal era observado, quanto à ingerência dos órgãos disciplinares dos Tribunais de Justiça na economia interna dos tabelionatos, não mais se justificam, por contrariar o sistema inaugurado pela Carta de 1988.

A fiscalização peculiar ao regime do pessoal que forma a hierarquia do serviço público regular, adotada quanto aos tabelionatos, antes do advento da Constituição Federal, não poderá mais ter lugar.

Este, a nosso ver, é um dado positivo, porquanto reduz a centralização do poder, cortando os vínculos tutelares que os Tribunais, fiéis a uma tradição secular, exerciam sobre o Notariado brasileiro, impedindo o elogiável desenvolvimento obtido pela instituição, por exemplo, nos demais países que seguiram o modelo espanhol.

A descentralização do poder, particularmente no Brasil em que o centralismo está a ponto de acabar com nosso regime federativo, deve ser saudada sempre como uma conquista democrática, expressão de um sistema social baseado na responsabilidade pessoal de cada cidadão, especialmente quanto àqueles a quem a lei confere o encargo de gerir, sob a forma de um empreendimento privado, alguma atividade ou função públicas. Nenhum regime será verdadeiramente democrático se a respectiva organização política partir do pressuposto de que seus agentes, por incompetência ou fraqueza moral, devem ser tidos liminarmente como suspeitos, a exigir prévia e permanente fiscalização tutelar exercida pelas escalas superiores do poder.

Esta cultura, no caso do Brasil, apenas servirá para fortalecer e consolidar ainda mais a secular estrutura do poder dominante, de cariz imperial, que tem resistido aos tempos e servido de entrave à modernização de nossas estruturas políticas e sociais.

* O Prof. Dr. Ovídio A. Baptista da Silva é professor titular de Direito Processial Civil da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, professor nos cursos de pós-graduação da Pontifícia Universidde Católica do RGS e autor de vários livros e monogrfias, destacando-se Jurisdição e Execução na tradição romano-canônica (RT, 1996) e Curso de Processo Civil (Sérgio Fabris Editor).



Últimos boletins



Ver todas as edições