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Juízo Possessório e Juízo Dominial - Francisco Eduardo Loureiro


1. INTRODUÇÃO

O estudo do tema proposto, dos mais intrincados do direito civil, passa, necessariamente, pelo prévio conhecimento do que são os termos posse e domínio.

Há necessidade de se conhecer os conceitos de posse e o de propriedade. Especialmente no que se refere a posse, o próprio conceito, fundado nos elementos do instituto (corpus e animus), é objeto de secular e conhecida polêmica entre as teorias subjetiva e objetiva. Não há como escapar do estudo, ainda que breve, das duas teorias.

O passo seguinte será o de conhecer o fundamento da proteção da posse e superar a aparente contradição existente na utilização do remédio possessório até mesmo contra o proprietário.

Estudaremos as figuras do ius possessionis e do ius possidendi, fazendo a distinção essencial entre o direito de posse (fundado no simples fato) e o direito à posse (fundado em relação jurídica preexistente).

Chegaremos, então, ao tema proposto, da caracterização e autonomia dos juízos possessório e dominial. Será abordada a questão da exceção de domínio no direito comparado e em nosso direito positivo, com o estudo dos artigos 505 do Código Civil e 923 do Código de Processo Civil.

Faremos estudo que desborda o direito material, sobre a possibilidade do ajuizamento de ação petitória na pendência de ação possessória, abrangendo a aparente antinomia e influências recíprocas entre as decisões nelas proferidas.

Encerraremos o trabalho colacionando jurisprudência sobre o tema e expondo as conclusões sobre a necessidade do reconhecimento da posse como instituto autônomo e independente do domínio.

2. BREVE ESTUDO DAS TEORIAS DA POSSE

Não comporta o presente estudo análise aprofundada das teorias da posse. Limita-se dar-lhes os simples contornos, com especial ênfase para a autonomia do instituto, merecedor de proteção independentemente de vir acompanhado da propriedade.

Ingenuidade seria achar que explicam a posse apenas as duas teorias mais conhecidas (objetiva e subjetiva) e escassa literatura clássica. Em 1.890 já afirmava Ihering, acerca da vastidão bibliográfica sobre o assunto: "Elle est prodigieusemente riche et véritablement débordante; il ne se passe point d'année Qui n'apporte des dissertatuios et des livres sur la possession"1. Na impossibilidade de exame mais profundo, nesta sede, fiquemos somente com as teorias principais.

Savigny criou a chamada teoria subjetiva. Os elementos da posse são o animus e o corpus. Definiu o corpus como o poder físico da pessoa sobre a coisa, o fato exterior da posse. Para ele, é a faculdade real e imediata de dispor fisicamente da coisa. Em obra posterior retificou sua posição, admitindo posse sem contato físico. Definiu o animus como a intenção de ter a coisa como sua (animus domini). Não é a convicção (opinio domini), mas a intenção de ser dono.

Para haver posse, portanto, devem existir, para Savigny: elemento físico (corpus) + vontade de proceder em relação à coisa como procede o proprietário (affectio tenendi) + intenção de tê-la como sua (animus domini)2.

Caso falte o terceiro elemento, qual seja, a vontade de ter a coisa como dono, não haverá posse, mas mera detenção. Assim, para Savigny, quem tem a coisa em seu poder, mas em nome de outrem, por razão jurídica, não tem posse, mas detenção, sem proteção jurídica. Enquadrariam-se nessa categoria o locatário, o comodatário e o credor pignoratício, entre outros.

Rudolf Von Ihering elaborou a chamada teoria objetiva da posse, em oposição e crítica à teoria subjetiva. Corpus, para ele, é a relação exterior que há normalmente entre o proprietário e a coisa, é a conduta de quem se apresenta com relação semelhante à do proprietário (imago domini), com ou sem apreensão da coisa. Pode, portanto, haver posse sem contato ou poder físico entre a pessoa e a coisa. Lembre-se que o proprietário exerce as prerrogativas do domínio, muitas vezes, sem o contato físico, material com a coisa, como, por exemplo, a locação, ou o empréstimo da coisa a terceiros. O mesmo, portanto, ocorre com o possuidor, porque ele age como o proprietário3.

Para Ihering, animus não é intenção de ser dono, mas de simplesmente se proceder como procede habitualmente o proprietário (affectio tenendi). A teoria chama-se objetiva porque dispensa a intenção de ser dono. O animus está intimamente ligado ao corpus, porque se extrai da conduta visível do possuidor. É o que aparece perante terceiros (aparência de dono), pouco importando o simples desejo não ostensivo do possuidor. Para caracterizar a posse, basta examinar o comportamento do agente, independentemente de uma pesquisa de intenção. Normalmente, o proprietário é o possuidor. Logo, possuidor é aquele que tem a aparência de proprietário. Posse, segundo Jhering, é a visibilidade do domínio. Pela teoria objetiva, o locatário, o comodatário, etc, são possuidores, o que acarreta profundos efeitos concretos, visto que tais pessoa podem defender a posse pelos chamados interditos possessórios.

Segundo o autor, o poder de fato sobre a coisa indica posse, embora nem sempre isso ocorra. O que importa, para efeito de posse, é a destinação econômica da coisa, é a utilização da coisa por atos adequados à sua natureza. Para Jhering, corpus + affectio tenendi = posse. O animus domini não é elemento da posse.

Outra importante distinção entre as duas teorias é o modo como abordam a figura da detenção. Para Savigny, sempre que houver corpus, mas não animus (affectio tenendi + animus domini), estaríamos diante da figura da detenção e não de posse. A posse, assim, é a detenção acrescida de animus domini. Para Jhering, a posse e a detenção não se distinguem por um animus específico. Ao contrário. Têm os mesmos elementos (corpus e animus). O que distingue ambas é um elemento objetivo, que se traduz num dispositivo legal que, com relação a certas relações que preenchem a princípio os requisitos da posse, retira delas os efeitos possessórios. A detenção, para Ihering, é uma posse degradada, que, em virtude da lei, se avilta.

A teoria subjetiva parte da detenção para chegar à posse. A objetiva faz o trajeto inverso, partindo da posse para chegar à detenção4.

3. CONCEITO DE POSSE

Tratando-se de posse, até a origem etimológica da palavra é controvertida. Segundo alguns, "possessio" deriva de "positio pedium", que eqüivale a insistência, ou fixação dos pés. Outros, porém, sustentam que procede de sedere, eqüivalente a sentar-se, estabelecer-se em coisa determinada, reforçando este significado o prefixo pos5.

Há centenas de conceitos diferentes de posse. Grosso modo, porém, variarão, na doutrina e nos diversos ordenamentos jurídicos, conforme a teoria adotada, subjetiva ou objetiva, com os elementos postos no capítulo anterior.

Seguem nitidamente a teoria subjetiva, preconizada por Savigny, com ênfase para o "animus domini", os conceitos contidos nos Códigos francês, austríaco, holandês e espanhol. O artigo 2.228 do Código Francês define a posse como "a detenção ou gozo de uma coisa ou um direito que nós detemos ou que exercemos por nós mesmos ou por um outro que a detém ou o exerce em nosso nome". O Código Austríaco, no parágrafo 309, diz que "Aquele que tem uma coisa em seu poder ou sob a sua guarda, é detentor. Se o detentor de uma coisa tem vontade de a guardar como sua, é possuidor". O Código Holandês, no artigo 385, define posse como "a detenção ou o gozo de uma coisa, que nós detemos sob o nosso poder, ou por nós mesmos, como se nos pertencesse".

Já os Códigos da Prússia, alemão, suíço, brasileiro, mexicano e o atual italiano seguem a teoria objetiva, preconizada por Ihering, com ênfase à visibilidade do domínio e minimizando os efeitos da vontade. Assim, o Código da Prússia define relação possessória como a de "todo aquele que tendo o poder físico de dispor de uma coisa com exclusão de outrem, tem a coisa sob sua guarda e é chamado detentor". O Código alemão, em seu parágrafo 854, dispõe que "A posse de uma coisa adquire-se obtendo o poder de fato sobre ela. O acordo do precedente possuidor e do adquirente basta para a aquisição quando este último se encontra em situação de exercer o seu poder sobre a coisa".

Nosso Código Civil não define a posse, mas apenas o possuidor, o que rendeu críticas da doutrina tradicional, capitaneadas por Rui Barbosa6. O artigo 485 assim dispõe: "Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes ao domínio, ou à propriedade".

Fácil, com base em nosso direito positivo, chegar à definição de posse, partindo da figura do possuidor. Segundo Clóvis Beviláqua, posse, para nós, nada mais é do que "o exercício de fato, dos poderes constitutivos do domínio, ou propriedade, ou de alguns deles somente, isto é, de algum direito sobre a propriedade alheia"7.

4. O FUNDAMENTO DA PROTEÇÃO DA POSSE

Diversas teorias, agrupadas em absolutas e relativas, procuram explicar a razão pela qual se protege a posse.

Como bem esquematizou Manuel Rodrigues, funda-se a proteção possessória em argumentos diversos, que assim podem ser resumidos8:

nas teorias absolutas protege-se a posse porque:

é um ato de vontade do homem;

constitui uma categoria econômica independente;

nas teorias relativas protege-se a posse porque:

é um meio de evitar a violência;

é uma presunção de propriedade;

é a defesa avançada da propriedade.

Entre as chamadas teorias absolutas, a posse é protegida por si mesma, como categoria juridicamente independente. A posse pode estar ou não de acordo com a lei, mas enquanto não se provar, pelos órgãos competentes, a ofensa a uma vontade universal, deve ser respeitado o fato decorrente da vontade individual. A mesma teoria, por outro ângulo, defende a proteção da posse na medida que esta constitui forma de apropriação das utilidades das coisas, que são aplicadas à satisfação humana9.

Já as teorias relativas não justificam a proteção possessória pelo instituto em si mesmo, mas sim como conseqüência de outras realidades econômico-sociais, ou necessidade de proteção a outras instituições. As teses são as mais variadas. Protege-se a posse como complemento necessário da proteção da propriedade. Pela necessidade de se evitar a violência, ou um atentado contra a ordem jurídica. Também porque ninguém pode juridicamente vencer a outrem, se não tem motivos preponderantes em que se funde sua prerrogativa10.

Conhecidas são as posições de Ihering e de Savigny a respeito do fundamento da proteção da posse.

Ihering vê a proteção possessória como uma linha avançada da defesa do domínio. O que se visa, em última análise, é resguardar a propriedade, uma vez que, normalmente, está acompanhada da posse. A proteção possessória seria uma espécie de resíduo da proteção da propriedade.

Savigny, por seu turno, vê em toda violação à posse uma ilegalidade, uma vez que a posse é fato, mas protegida pelo direito. Além disso, toda violência é, por si só, sempre contrária ao direito.

Os fundamentos, como visto, são vários. Pode-se, porém, dizer que se tutela a posse assim como se protegem outros diretos subjetivos, da propriedade a direitos pessoais. Violados tais direitos subjetivos - aí incluída a posse - merecem eles proteção.

5. JUS POSSESSIONIS E JUS POSSIDENDI

Como alerta Moreira Alves, desde o direito romano tem-se distinguido nitidamente a posse da propriedade. São conhecidos os aforismas "separata esse debet possessio a proprietate" (a posse deve ser separada da propriedade), "nihil commune habet proprietas cum possessione" (nada tem em comum a propriedade com a posse) e "nec possessio et proprietas misceri debent" (posse e propriedade não devem confundir-se)11.

Percebe-se facilmente que a posse pode ser considerada sob dois ângulos distintos: a) em si mesma, independentemente do fundamento ou título jurídico; b) como uma das faculdades jurídicas que integram a propriedade, ou outras relações jurídicas12.

A expressão "ius possidendi" significa, literalmente, direito à posse, ou direito de possuir. Na lição de Caio Mário da Silva Pereira, "é a faculdade que tem uma pessoa, por ser já titular de uma situação jurídica, de exercer a posse sobre determinada coisa"13. É a posse vista como o conteúdo de certos direitos14.

Pressupõe o "ius possidendi" uma relação jurídica preexistente, que confere ao titular o direito à posse. Ao contrário do que afirmam alguns autores, não só o proprietário goza de tal situação, mas também titulares de outros direitos reais, como o usufrutuário e o credor pignoratício, ou mesmo titulares de direitos meramente pessoais, como o locatário e o comodatário. Basta seja a posse o objeto da relação jurídica, real ou pessoal.

O titular do "jus possidendi", ao invocar o seu título, ou relação jurídica preexistente (real ou pessoal) para assegurar o direito à posse, instaura o chamado juízo petitório. Não se discute a posse em si mesma considerada, mas a razão, ou causa, pela qual se deve possuir15.

O "ius possessionis", ao inverso, é o direito originado da situação jurídica da posse, independentemente da preexistência de uma relação jurídica que lhe dê causa. É indiferente a incidência, ou não, de um título para possuir. Aqui a posse não aparece subordinada a direitos, nem emanada deles, formando parte de seu conteúdo. Alguns autores chegam a negar a expressão "ius", preferindo a de "factum possessionis", como melhor significado de posse sem título anterior16.

O "ius possessionis" é o reflexo da autonomia do instituto da posse, que se mostra em toda sua pureza. É o fato da posse "per se", necessário e suficiente para ter ingresso na significação jurídica17.

São casos típicos do exercício de "ius possessionis" aqueles que cultivam a terra abandonada, ou que se apoderam de coisas móveis perdidas. Recebem a proteção possessória, ainda que lhes falte um título que justifique, ou dê causa à posse. É o direito de posse. Seu único suporte é a sua própria existência e presença.

Pode, em determinados casos, haver conversão do "ius possessionis" em "jus possidendi". Basta lembrar a hipótese do possuidor, com posse qualificada, convertê-la, pelo usucapião, em propriedade. O domínio gerará direito à posse, agora com fundamento em relação jurídica.

Essa distinção clara entre as figuras tratadas foi absorvida por alguns textos legislativos. O Código da Prússia distinguia, com muita precisão, o direito à posse (ius possidendi) do direito de posse (ius possessionis), in verbis:

"par. 134. O direito à posse é diverso do direito de posse.

Par. 135. Os efeitos do direito à posse devem ser determinados segundo a natureza do título sobre o qual se funda a posse

Par. 136. Mas os direitos da posse dependem da natureza da própria posse"18.

Essa precisão conceitual faltou ao nosso direito positivo. No dizer de Pontes de Miranda, "são categorias distintas, mas de cujo baralhamento muito prejuízo tem provindo às leis, à doutrina e à justiça"19.

Como veremos abaixo, no campo processual inexiste norma clara separando as ações fundadas no "ius possessionis" das ações fundadas no "ius possidendi". Essa omissão torna-se tão mais severa ao se constatar que o objeto de ambas as situações jurídicas é o mesmo (a posse), apenas sob fundamentos diversos. Como se verá no próximo capítulo, a omissão custou caro ao sistema, criando ambiente propício a equívocos conceituais graves.

6. JUÍZO PETITÓRIO E JUÍZO POSSESSÓRIO

A melhor forma de distinguir os juízos petitório do possessório é manter estrita correlação entre o "ius (factum) possessionis" e o possessório e entre o "ius possidendi" e o petitório. Com isso, se garante a distinção entre a posse e a propriedade e, sobretudo, protege a posse "per se", como instituição jurídica autônoma.

Como explica Antônio Hernandez Gil, a tutela possessória - só possessória - mínima e básica, na ordem jurisdicional, está constituída pelos interditos, ou, entre nós, ações possessórias em sentido estrito. Deve-se, nas ditas ações possessórias, afirmar defender a posse como tal, sem outras ajudas e sem outras complicações: só e simplesmente. Se por trás dela aparece um direito que a atribua, é indiferente. Isso porque posso provar o direito, mas não obter a posse. Posso, em contrapartida, obter a posse e não provar o direito. Aqui é onde a posse aparece em sua plenitude e, diria, em sua solidão20.

Essa é a posição tradicional da doutrina. Na lição de Tito Fulgêncio, "a ação possessória é independente e distinta da ação petitória; aquela se apoia na posse como puro estado de fato, a última tem por fundamento ofensa de um direito.21"

Parte da doutrina, porém, usa o termo "ação petitória" em sentido mais restrito, apenas e somente para a tutela fundada no direito de propriedade, ou de outro direito real. Como explica Serpa Lopes, "a ação petitória difere da possessória em razão de seus fundamentos. Enquanto a primeira funda-se no direito de propriedade e pressupõe prova do domínio, a segunda funda-se na situação da posse, sendo bastante a prova do fato da posse em relação à coisa possuída"22. Para o referido autor qualquer outra ação, embora relacionada com a restituição de uma coisa, sem ter por fundamento direito de propriedade ou um direito real, como, por exemplo, contratos de depósito e comodato, já não pode ter o qualificativo de petitória, porque calcada no artigo 485 do Código Civil.

Alguns autores utilizam outros termos, como "ação publiciana", são utilizados para designar a ação fundada no "ius possidendi", sem título dominial.

Talvez o maior problema da distinção entre as chamadas ações possessórias e ações petitórias seja semântico. Isso porque o binômio possessório/petitório não guardou, como deveria, estrita relação com o binômio ius (factum) possessionis/ius possidendi.

Algumas situações clássicas, como a do proprietário sem posse que litiga contra o possuidor sem propriedade, receberam denominação própria (ação reivindicatória), colocando-as, declaradamente, no campo petitório. Seu fundamento é, sem dúvida, o "ius possidendi".

Diversas outras situações, no entanto, não se mostram com a mesma clareza semântica. O comodante que pretende reaver a coisa do comodatário, o arrendante que, nos contratos de leasing, pretende reaver a coisa do arrendatário, o compromitente-vendedor que, resolvido o contrato de compromisso de venda e compra, pretende reaver o imóvel do compromissário comprador, utilizam a ação de reintegração de posse, ou seja, ação possessória em sentido estrito.

O fundamento da reintegração de posse, porém, nos casos acima citados, certamente não é o ius possessionis. Não litigam com base na posse como fato, desligada de qualquer situação jurídica. Ao contrário. Pedem a devolução da posse porque desfeita determinada relação jurídica preexistente. Em outras palavras, litigam calcados no "ius possidendi". A confusão deve-se ao fato de serem os retomantes também possuidores (via de rega indiretos), no conceito do artigo 485 do Código Civil. Isso, porém, não apaga o fato de que contendem fundados não na posse em si, mas na causa jurídica da posse.

O significado plurívoco do termo "ação possessória" gerou décadas de enganos. Há ações possessórias que podemos chamar de puras, fundadas exclusivamente na posse enquanto fato (ius possessionis). Ao lado delas, porém, há ações possessórias, que podemos chamar de impuras, nas quais se pede a posse como conteúdo de situação jurídica anterior (ius possidendi).

A melhor solução, como acima posto, seria acatar a recomendação de autorizada doutrina, que propõe limitar o uso da expressão "ação possessória" aos interditos em sentido estrito e fundados no ius (factum) possessionis23.

Evidente que o uso restrito das ações possessórias poderia gerar incerteza no que se refere àquelas situações em que se pretende reaver a coisa em razão do desaparecimento da "causa possessionis". O rito das ações possessórias poderia até mesmo abranger tais situações jurídicas, apenas com limitação do uso da exceção de domínio. Essa, aliás, foi a solução implicitamente dada pela Súmula 487 do Supremo Tribunal Federal, como abaixo de verá.

A EXCEÇÃO DE DOMÍNIO

A exceção de domínio não era conhecida dos romanos, segundo Savigny. Defendeu ele a tese de que os interditos possessórios seriam ações que tinham somente a posse como fundamento: o ofício do juiz seria verificar apenas qual das duas partes possui.

Ihering defendeu tese contrária. Para ele, os interditos foram introduzidos para regular provisoriamente a relação possessória durante o processo sobre a propriedade. Especialmente o chamado "interdicto de precário" admitia a exceção de domínio, porque representaria a transgressão à obrigação contraída de restituir a coisa ao concedente24.

Na idade média, sob a influência do direito canônico, entendeu-se que os mesmos juizes que julgavam a posse deviam também conhecer da ação petitória e estavam autorizados a consultar os títulos dominiais para revolver a questão. Surgiu a figura da "récreance", uma decisão sobre a posse provisória durante a ação petitória.

Entre nós, a exceção de domínio passou a ser discutida em razão do controvertido Assento de 16 de fevereiro de 1.786, interpretando o Alvará de 9 de novembro de 1.754, sobre a transmissão civil das sucessões legítimas. Declarou o Assento que "se deve julgar transmissível a posse até para não seguir o visível absurdo de se julgar nos interditos restituitórios, e nos outros casos ocorrentes no foro, a referida posse àquele mesmo, a que, pelo processo e evidência notória dos autos, se depreende não lhe dever ser julgada a propriedade".

Em torno do citado Assento dividiram-se doutrina e jurisprudência. De um lado, Lafayette e Paula Baptista defenderam a inviabilidade da exceção de domínio na ação possessória e interpretaram o Assento como aplicável à hipótese restrita do herdeiro aparente na sucessão hereditária. De outro, Ribas, João Monteiro e Teixeira de Freitas, entenderam que não se deve julgar a posse em favor daquele a quem se mostra evidentemente não pertencer a propriedade.

A jurisprudência anterior ao Código Civil, como demonstra Astolpho Rezende, colacionando mais de vinte julgados, refletia essa divergência da doutrina. Grassava a insegurança sobre aplicação da exceção de domínio em nosso direito anterior ao Código Civil25

O ARTIGO 505 DO CÓDIGO CIVIL

Dispõe o artigo 505 do Código Civil que "Não obsta à manutenção, ou reintegração na posse, a alegação de domínio. Não se deve, entretanto, julgar a posse em favor daquele a quem evidentemente não pertencer o domínio".

O artigo 505, em especial o segundo período, entrou em nosso direito positivo por dupla razão: a) respeito à tradição do Assento de 16 de fevereiro de 1.786, consolidado pelo prestigioso Teixeira de Freitas (Todavia não se deve julgar a posse a favor daquele a quem se mostra, evidentemente, não pertencer o domínio)26; b) a interpretação da doutrina de Jhering, para quem a defesa da posse se daria em atenção à propriedade27.

Como, porém, obtempera Pontes de Miranda, "grave foi que o autor do Projeto, ao seu tempo, tivesse acreditado que a exceptio dominii é conseqüência necessária da doutrina de R. Von Jhering: não o é"28. Há, efetivamente, discussão sobre o exato alcance da teoria de Ihering. A razão da proteção à posse é a defesa e o prestígio da propriedade, embora admita o autor a defesa do possuidor até mesmo contra o proprietário29.

O teor contraditório do artigo 505 do Código Civil, caso aplicado literalmente, chancelaria atos manifestamente ilícitos. Permitiria, por exemplo, que o locador, o comodante, ou o nú-proprietário retomassem a coisa a qualquer tempo do locatário, do comodatário, do usufrutuário, sem intervenção do poder judiciário. Acionados pelos ex-possuidores diretos, na via possessória, oporiam a exceção de domínio como justificativa do esbulho.

O fundamento da proteção possessória - ao menos sob a ótica de Savigny - estaria seriamente comprometido. Não mais se garantiria a paz social, porque estaria aberto ao proprietário (ou ao titular de outros direitos) o caminho da retomada da coisa, a qualquer tempo, pelos próprios meios, mediante exercício arbitrário das próprias razões.

Cedo doutrina e jurisprudência deram-se conta de que impossível seria a aplicação literal da segunda parte do artigo 505. Procuraram, então, dar interpretação confortável ao preceito, de modo a harmonizá-lo com o sistema da posse. O próprio Clóvis Bevilácqua reconheceu que a parte final do artigo contempla "a posse a título de proprietário, o que desde logo exclui a posse indireta em frente à direta"30. Somente no caso de ambos os contendores reclamarem a posse como emanação da propriedade é que se mostra racional não julgar a posse a favor daquele a quem, evidentemente, não pertencer o domínio. Arremata o autor que "não sendo evidente o direito dominial alegado por um dos contendores, ou restringindo-se o pleito ao fato da posse, como simples jus possessionis e não jus possidendi, não tem aplicação o princípio"31.

A doutrina e jurisprudência em geral convergiram nos seguintes postulados, corrigindo a infeliz redação da segunda parte do artigo 505, bem sintetizados por Astolpho Rezende:

"1º. Em regra, nas ações possessórias não é permitida a defesa com fundamento no domínio.

2º. Excepcionalmente, admite-se essa defesa:

quando duas pessoas disputam a posse a título de proprietário;

b) quando é duvidosa a posse de ambos os litigantes; neste caso, reconhece-se a posse daquele a quem está melhor averiguada".32

A respeito desse entendimento, hoje sedimentado, cabem algumas observações. A primeira delas diz respeito ao que se deve entender pela expressão "exceção de domínio", em nosso direito positivo. Não está ela restrita, como parece, à alegação fundada somente no direito de propriedade. Pode vir calçada em outros direitos, reais ou pessoais. Basta a invocação de uma situação jurídica preexistente, que confira a seu titular direito à posse. Em termos diversos, fundada no "ius possidendi".

Na boa lição de Adroaldo Furtado Fabrício, a "exceptio domini" nem sempre é de propriedade, "porque o Código Civil refere-se à alegação de domínio ou de outro direito sobre a coisa. A chamada exceção de domínio seria mais exatamente uma alegação de ius possidendi, do qual a propriedade é o principal, mas não o único fundamento"33.

Assim, se por exemplo, o comodante, ou o arrendante, tiram o comodatário ou o arrendatário da posse da coisa, exercendo arbitrariamente as próprias razões, não podem invocar na defesa da ação possessória, ajuizada pelos ex-possuidores diretos, que assim agiram fundados em razão da "causa possessionis". Em sentido técnico, estaria configurada a exceção de domínio, ou melhor dizendo a exceção de "jus possidendi".

A segunda observação é a de que a invocação do domínio (ou de outros direitos) como meio de prova da melhor posse deve ser entendida como matéria exclusivamente possessória e não petitória. O domínio tem relevância, nesse passo, não para justificar a conduta do proprietário, mas apenas como evidência do fato da posse (ius possessionis). É singelo meio - via de regra documental- de provar a posse.

Precisa, a respeito do tema, a lição de Pontes de Miranda, para quem "em termos rigorosamente científicos, a alegação de domínio não é exceção, mas simples alegação para meio, a mais, em caso de prova dúbia. O artigo 505, 2ª parte, apenas é regra jurídica sobre prova. Na dúvida pesa mais a prova do domínio como prova da posse, se se prova que evidentemente pertence à outra parte o domínio"34.

A SÚMULA 487 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

O Supremo Tribunal Federal sufragou a tese da separação entre os juízos possessório e petitório, restringindo a incidência do segundo período do artigo 505 do Código Civil aos casos em que a posse seja disputada com base no domínio. Esse entendimento reiterado desembocou na edição da Súmula 487, que contém: "Será deferida a posse a quem, evidentemente, tiver o domínio, se com base neste for ela disputada"35.

Interessante notar ter a súmula omitido a segunda vertente do entendimento doutrinário sobre o artigo 505 do Código Civil, qual seja, o de que a posse, quando duvidosa em relação a qualquer dos litigantes, pode ser decidida a favor do titular do domínio. A exclusão de tal conclusão do teor da súmula, a meu ver, é lógica. O título, aqui, é utilizado apenas e tão somente como meio de prova da posse, fundado na máxima de que, via de regra, o proprietário é também possuidor da coisa. Cuida-se, assim, de matéria eminentemente fática, aferível caso a caso, ponderando a fragilidade da prova possessória com a evidência da prova dominial.

Isso não quer dizer que o Supremo Tribunal Federal tenha, em seus arestos, negado a possibilidade de incluir a propriedade como indício da existência de posse. Ao contrário. Um dos julgados que desembocou na Súmula 487 contém, em sua ementa: "Decidindo acerca da aparente antinomia dos dois períodos do artigo 505 do C. Civil, a jurisprudência do STF já assentou que a exceção de domínio é aceitável quando os litigantes disputam a posse a título de proprietários ou quando a posse é duvidosa em relação a qualquer deles"36.

Outra observação pertinente acerca da Súmula 487 é a aparente contradição contida em seu enunciado. Foi ela construída a partir de julgados extraídos de ações possessórias, até porque nunca se olvidou que em ações petitórias a discussão sobre o melhor domínio era imprescindível. Existiriam, então, ações possessórias nas quais a discussão não se restringe ao "ius possessionis" ?

A resposta à aparente contradição foi esclarecida em capítulo anterior. Existem diversas situações jurídicas (exemplo, a retomada da coisa, por inadimplemento de contratos de leasing, comodato, etc), nas quais o termo "ação possessória" é consagrado pelo uso para designar disputa da posse com fundamento no "ius possidendi". Nessas situações, dúbias em razão da ação utilizada, é que a Súmula incide com toda sua plenitude.

O ARTIGO 923 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

Continha o artigo 923 do Código de Processo Civil a seguinte redação: "Na pendência de processo possessório é defeso, assim ao autor como ao réu, intentar ação de reconhecimento de domínio. Não obsta, porém, à manutenção ou à reintegração de domínio ou de outro direito sobre a coisa; caso em que a posse será julgada em favor daquele a quem evidentemente pertencer o domínio".

Foi infeliz a redação do dispositivo, que reascendeu a antiga polêmica sobre a possibilidade da exceção de domínio no direito brasileiro, que recentemente fora acomodada e sepultada pela súmula 487 do Supremo Tribunal Federal. Desfez-se o razoável consenso que se criara em torno do artigo 505 do código Civil, por décadas de análise de doutrina e da jurisprudência.

Tantas foram as críticas que a Lei no. 6.820, de 16 de setembro de 1.980 suprimiu a segunda parte do artigo, cujo remanescente passou, então, a ter a seguinte redação: "Na pendência do processo possessório é defeso, assim ao autor como ao réu, intentar ação de reconhecimento de domínio".

O atual artigo 923 nada mais pretendeu - como se verá, de modo equivocado - do que dar feição processual à separação e independência entre os institutos da posse e da propriedade.

A idéia de subordinar o ajuizamento da ação petitória ao término de anterior ação possessória não é nova. Foi adotada por diversos códigos estrangeiros37 e reproduzida por nossos revogados Códigos Estaduais38, como símbolo da separação entre o possessório e o petitório.

Discute-se se a nova redação do artigo 923 do Código de Processo Civil teria revogado e, caso positivo, em que medida, o artigo 505 do Código Civil.

É regra do artigo 2º da Lei de Introdução do Código Civil que a lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.

Revogação expressa não houve. O novo artigo também não regulou inteiramente a matéria (basta ver que não referiu à independência do possessório, como fez a primeira parte do artigo 505). A incompatibilidade é apenas parcial com o texto do artigo 505 do Código Civil. A primeira parte do artigo, que separa os juízos possessório e petitório não é incompatível com a redação atual da lei processual civil. Ao contrário. Foi prestigiada e reafirmada a independência do possessório em relação ao petitório, embora pelo ângulo processual.

Somente a segunda e controvertida parte do artigo 505 do Código Civil é que se mostra incompatível com a redação atual do artigo 923 do Código Civil. Em termos diversos, a exceção de domínio não mais existe, em ações possessórias fundadas no "ius possessionis". Ou, como conclui Renan Lotufo, após exaustiva análise do tema: "há de se concluir pela extinção da exceção de domínio em nosso sistema, a menos que por via legislativa volte a existir"39.

Por isso, não me parecem procedentes os argumentos de que estaria o artigo 505 inteiramente preservado na atualidade, calcados na tese de que a sua revogação total levaria ao desaparecimento da dicotomia possessório/petitório40. Possível e viável a revogação parcial do artigo, somente naquilo que não coaduna e foi extirpado da regra processual. Aliás, como bem coloca João Batista Monteiro, "quando o legislador revoga (derroga ou ab-roga) uma norma, pretende eliminá-la do ordenamento jurídico; não se pode aceitar que o legislador tenha revogado uma norma, e permita a continuação de sua vigência ao mesmo tempo, em outra disposição semelhante. Tratar-se-ia de uma incongruência e ilogicidade de difícil sustentação"41.

Diversos julgados têm feito referência a essa revogação parcial. Confira-se, entre outros: "Não se admite, em pleito possessório, a exceção de domínio, posto que a Lei no. 6.820/80, ao alterar a redação do artigo 923 do Código de Processo Civil, revogou a parte final do art. 505 do Código Civil e, expressamente, proibiu pedido dominial no curso de ação possessória"42

Ressalto que a conclusão a que se chegou, da revogação da segunda parte do artigo 505, não tem grande alcance prático. O entendimento doutrinário e jurisprudencial, sedimentado pela Súmula 487 do Supremo Tribunal Federal, há trinta anos já afirmava que a exceção de domínio somente é cabível quando se disputar a posse com base no "ius possidendi". Talvez isso explique o fato de diversos julgados recentes mencionarem ainda a Súmula como paradigma, embora se refira ela a uma exceção de domínio não mais existente43. A incorporação do espírito da Súmula na redação do novo artigo 923 a manteve atual e útil, especialmente naqueles casos em que a ação, embora rotulada de possessória, vem amparada no "ius possidendi"44.

O AJUIZAMENTO DE AÇÃO DOMINIAL, ENQUANTO PENDENTE AÇÃO POSSESSÓRIA

Como acima mencionado, o preceito que veda o ajuizamento de ação petitória, enquanto pende ação possessória, tem origem em diversos códigos estrangeiros, além dos revogados Códigos Estaduais.

O que pretendeu o legislador foi evitar que o proprietário justificasse o esbulho com base no jus possidendi. É a clássica exceção ou defesa, mencionada por Consolo, que se define pela expressão "quod feci jure feci" (o que fiz, fiz por direito)45. Entendeu que o julgamento conjunto das ações possessória e petitória, em razão de potencial conexão, seria meio oblíquo de contornar a vedação da exceção de domínio, quando a discussão cinge-se ao "jus possessionis".

Na lição clássica e precisa de Wodon, que aparentemente orientou o raciocínio do legislador, "a posse, sendo uma coisa de fato, deve ser cuidadosamente separada de tudo o que se pode chamar direito ao petitório. Não basta que o réu diga - feci, sed jure feci (fiz, mas tinha o direito de fazê-lo); é preciso que ele prove que o direito, com que excepciona, exclui a posse do autor em seus caracteres legais, ou tira à turbação o seu caráter de turbação possessória, ou, ainda, serve para apoiar e colorir uma posse contrária"46.

O atrelamento do petitório ao final do possessório, todavia, foi infeliz. Como bem coloca Adroaldo Furtado Fabrício, "O que se vê, pois, é que, a pretexto de separar o possessório do petitório, o que se acaba de fazer é, paradoxalmente, juntá-los e jungi-los um ao outro por uma relação de dependência absolutamente inexistente. Independentes que são, só razões de ordem prática, circunstancial, como a de já estar sendo discutido incidenter o direito de possuir, explicam o fechamento às partes das portas do petitório"47.

A clássica separação entre o possessório e o petitório tem como propósito evitar que o proprietário justifique sua má conduta no campo possessório, invocando o direito de propriedade. Quando, porém, a proibição vai além desse limite e torna-se genérica, o vínculo de subordinação (somente se inicia o petitório ao terminar o possessório) acaba por produzir efeito contrário, unindo indevidamente os dois juízos.

Essa separação radical entre o possessório e o petitório, não só como exceção de domínio, mas também como ações paralelas e independentes, embora correndo simultaneamente, foi e é defendida por vários autores48. Seus argumentos podem ser resumidos na clássica proposição de Paula Baptista49:

a) aquele que é autor no petitório não o pode ser também no possessório, pois, não sendo concebível que reivindicasse a coisa de si mesmo, ou não tinha a posse e carecia da proteção possessória, ou a tinha e não poderia ser admitida no petitório;

b) autor de ação possessória, porque se afirma possuidor, não pode reivindicar, pois o pressuposto para fazê-lo é precisamente não ter a posse;

c) o que se julgar no petitório afasta desde logo a possibilidade da ação possessória;

d) o autor desistente no petitório não pode ser recebido no possessório, pois ao propor uma ação reivindicatória reconhecia não ter a posse;

e) ao revés, o autor que desistisse da ação possessória nem por isso ficaria inabilitado a servir-se da petitória.

Os argumentos acima expostos, todavia, ressentem-se, especialmente em alguns itens, de rigor científico. Assim, o proprietário que também é possuidor, ao perder a posse, pode escolher em que via atuará, possessória ou petitória. Não há qualquer contradição nisso. O proprietário autor da possessória nem sempre é possuidor atual, mas pode ter sido possuidor e socorrer-se do interdito exatamente por ter sido esbulhado. É perfeitamente viável, mais, que ao desistir do possessório possa ajuizar o petitório, ou vice-versa.

Na verdade, o que se deve indagar é simplesmente o seguinte: caso corram ações petitória e possessória simultaneamente, haverá o risco de sentenças contraditórias ?

Essa subordinação do petitório ao final do possessório, defendida, entre outros, por Paula Baptista, pode acarretar espera de anos até que o proprietário consiga retomar sua coisa. Basta pensar na hipótese, nada acadêmica, do possuidor ajuizar sucessivas ações possessórias contra o proprietário, invocando a ocorrência de atos turbativos. Seria modo de estimular o possuidor malicioso a litigar e, com isso, postergar a entrega da coisa50. Alerta Theotônio Negrão que "como esta conclusão parece absurda, embora fundada na letra clara da lei, a doutrina e a jurisprudência têm reagido contra ela"51.

Por isso, o entendimento hoje prevalente é no sentido de que a proibição contida no artigo 923 não é absoluta, sob pena de mutilar o direito de propriedade e levar a situações de flagrante injustiça.

A única interpretação possível do artigo 923 é a utilização de critérios semelhantes aos aplicados no artigo 505 do Código Civil, distinguindo as situações possessórias puras (ius possessionis) das situações possessórias impuras (ius possidendi).

Somente haverá situação antinômica entre a ação possessória e a ação petitória, que correm paralelamente, se na primeira a posse for disputada com fundamento no "ius possidendi". Poderia aí a situação gerar sentenças contraditórias, uma vez que ambas analisariam a posse sob o mesmo fundamento, qual seja, como conteúdo de um direito preexistente.

A jurisprudência mais recente, embora ainda com alguns julgados dissonantes, tem confortado o ponto de vista ora adotado. Confira-se:

a) "Sanciona-se a inteligência no sentido que, se, no juízo da posse, a causa petendi não seja pretensão dominial, torna-se praticável a demanda ensejada pelo artigo 524 do Código Civil, sob pena de desprivilegiar de todo o direito de propriedade, cujo assento releva a ponto de figurar entre os direitos constitucionalmente tutelados, em proveito da posse - mera situação fática" (RT 605/55, Relator Des. Ney Almada);

b) "A instauração do juízo possessório não impede o exercício, contra o possuidor, em outro processo da ação reivindicatória que, embora pressuponha o domínio, não é declaratória dele" (RT 507/194, Relator Ernani Vieira de Souza);

c) "Entretanto, a doutrina e a jurisprudência estão atenuando o rigor da norma, firmando entendimento no sentido de admitir a propositura da ação petitória na pendência da possessória, quando nesta última se discute somente o poder de fato obre a coisa, sem invocação de domínio evidente" (RJTJESP-LEX 123/217, Relator Des. Souza Lima).

Outra não foi a conclusão a que chegou o 1º Simpósio de Curitiba, ao editar a conclusão no. LXXIII, do seguinte teor: "o artigo 923, 1ª parte, só se refere a ações possessórias em que a posse seja disputada a título de domínio".

A 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal endossou a conclusão citada, ao julgar o Recurso Extraordinário 89.179-0-PA, com ementa do seguinte teor: "Na pendência de processo possessório, fundado em alegação de domínio, é defeso assim ao autor como ao réu intentar ação de reconhecimento de domínio"52.

Duas situações concretas devem ser consideradas: a) a primeira, do autor de ação possessória ajuizar ação petitória na sua pendência; b) segunda, do réu da ação possessória ajuizar ação petitória na sua pendência.

A primeira situação é a do autor de ação possessória ajuizar ação petitória enquanto pendente de julgamento a primeira. Nada impede que isso ocorra, desde que estejam presentes alguns pressupostos. Deve a ação possessória ser pura, fundada no "jus possessionis". O autor da ação possessória nã



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