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O estatuto do registrador* - José Augusto G. Mouteira Guerreiro**


1 – O problema de um estatuto ou seja, do regime, do enquadramento jurídico-normativo que terá caber a qualquer grupo profissional – público ou privado – acha-se estrutural e indissoluvelmente ligado à natureza da própria função exercida.

Deste modo, ao abordar o tema do estatuto do registrador parece que deveremos, antes de mais, tentar caracterizar, ainda que muito sucintamente, as funções que lhe cabem, já que tal estatuto delas mais não poderá ser que uma pura e lógica conseqüência, um corolário da atividade efetivamente exercida.

2 – A designação de conservador dos registros, que já entre nós remonta pelo menos a dois séculos passados, não envolveu desde sempre exatamente o mesmo conteúdo funcional. É que depois do Código de Seabra e sobretudo após a implantação da República e as sucessivas reformas legislativas que se seguiram, passou a designar igualmente o responsável ou oficial do registro civil. Daí que, também por essa razão, devamos sucintamente recordar as funções de todos os registradores, inclusive do registro civil.

Começando exatamente por esta área, dir-se-á que ao oficial do registro civil está confiado o relevantíssimo papel da definição e, em múltiplos casos, da inscrição constitutiva de vários direitos pessoais e de família, desde o direito ao nome, à determinação do estado civil e à comprovação da identidade pessoal.

Óbvio é que o exercício de tais funções, que abarcam toda esta importante vertente do estado civil e da vida pessoal e familiar dos cidadãos, só pode ser adequadamente exercida por quem tenha a preparação e a capacidade legal de apreciar livremente a legalidade dos casos e de todas as pretensões que concreta e quotidianamente se apresentem à sua apreciação e que goze do correspondente  poder decisório com independência de qualquer “autoridade” ou imposição externa incluindo a que dimana da Administração e do próprio poder político.

No que toca às obrigações funcionais do oficial dos registros predial, comercial e de bens móveis não podemos deixar de reconhecer a sua idêntica relevância, quiçá mais patente no vasto setor dos mercados e da vida econômica, já que o seu conteúdo se prende diretamente com quase todas as relações jurídico-patrimoniais das pessoas e com a estrutura das empresas. Ora, neste âmbito, dir-se-á que tanto no que concerne aos direitos sobre imóveis, como no de móveis sujeitos a registro, como ainda nos da generalidade das entidades ligadas à vida mercantil, é sempre o registrador que tem a tarefa fundamental de admitir, ou não, o ato à inscrição registral, apreciando tanto a sua legalidade como, em geral, a viabilidade da sua eficaz publicitação.

Conseqüentemente, - e como dissemos a propósito do oficial do registro civil - a sua liberdade decisória não pode estar limitada por quaisquer balizas ou fronteiras que não sejam as decorrentes da lei. Só assim se assegura o primado do Direito, garantido por todas as modernas Constituições. Daí que as conclusões expressas no 1º Tema do IV Congresso Internacional de Direito Registral se tenham tornado cada vez mais consensualmente aceites, mesmo naqueles países (como é o caso dos da Europa de Leste) onde foi constante e acentuado o papel centralizador da Administração Pública: o reconhecimento de que a função registral, embora não sendo judicial, no entanto, para poder ser corretamente exercida, não pode deixar de possuir independência semelhante. Também neste mesmo Congresso Internacional foi sublinhado (2ª conclusão do 1º Tema) que a regulamentação dos Registros deve inspirar-se no critério de submissão ao Direito num quadro orgânico que garanta ao registrador uma plena autonomia funcional indispensável para satisfazer essa atividade.

Convém referir que a função registral não se confunde com a judicial, nem aliás nunca se pretendeu que constituísse um poder próprio, alterando os dados da clássica tripartição já defendida por Montesquieu e velha bandeira dos revolucionários de 1789. É que, cabe notar, não é próprio da função registral o dirimir conflitos de interesses, nem nunca se pretendeu que lhe estivesse adstrita a tarefa, essa sim judicial, de resolver quaisquer tipos de controvérsias.

Mas o que é verdade é que os cidadãos deixariam de gozar das fundamentais garantias da válida, prioritária, eficaz e segura publicitação dos seus direitos – e mesmo em muitos casos da sua própria e legal definição -, se acaso o registrador fosse um mero executante de ordens dimanadas do poder executivo. Isto é: se não pudesse apreciar livre, isenta e autonomamente da possibilidade ou impossibilidade de lavrar o assento, a inscrição ou qualquer outro ato registral. E, em tal apreciação, não há que ter em conta critérios de conveniência, de oportunidade ou de interesse setorial, como é próprio da atividade político-partidária e, em decorrência, das funções meramente administrativas, aliás todas elas susceptíveis de alteração ou de diverso grau de aceitação ou ainda de modificação de efeitos ou de valores consoante os critérios do momento, ou do que se mostre, como sói dizer-se “politicamente correto” - o que, afinal, não passa de uma situação transitória resultante da convicção partidária de dirigentes e de governantes. Mas, como é óbvio, a publicitação dos direitos individuais é outra coisa, muito para além dessas contingências e conveniências de cada momento.

Não queremos, obviamente, manifestar qualquer desrespeito, ceticismo ou até falta de apreço pela atividade administrativa, que é, obviamente, indispensável ao funcionamento do próprio Estado. Só que a atividade notarial e registral decididamente que não é desse âmbito. Muito pelo contrário do que por vezes é propalado (inclusive por conhecidos juristas) constituiria um verdadeiro retrocesso tentar administrativizar a área de atuação dos registradores e dos  notários, pese embora a circunstância de alguns deles – como infelizmente acontece em todas as atividades profissionais – nem sempre entenderem devidamente as suas funções, o que, evidentemente, se lastima e não pode caracterizar a classe. Até porque, importa realçá-lo, muitos, se não mesmo a grande maioria, dedicadamente se esforça sem, aliás, possuir os meios mínimos e necessários, principalmente no tocante a funcionários auxiliares, mas tendo sempre a clara e viva consciência da exigência cívica do seu esforço, até porque a sua esfera de atuação se insere no vasto domínio do direito privado e existe como fundamental instrumento, cada vez mais necessário para a garantia desses direitos dos cidadãos e para a geral segurança do comércio jurídico.

3 – A necessidade dos sistemas registrais com uma estrutural isenção e credibilidade – que, como vimos, depende necessariamente da autonomia e da capacidade decisória livre por parte dos registradores – tem sido sentida, de uma maneira que poderemos considerar exponencial, nas atuais circunstâncias da contratação eletrônica e da aceleração da vida mercantil, bem como dos conhecidos meios cibernéticos e das modernas tecnologias ao dispor dos povos.

É óbvio que só possuindo uma estrutura independente que garanta o controlo prioritário dos direitos e das transações é que se poderá proporcionar o alicerce infraestrutural necessário à credibilidade e eficácia dessas mesmas transações, ou seja, em última análise, ao progresso sócio-econômico, e à decorrente e desejável diminuição dos “custos das transações” – tal como ficou sobejamente demonstrado na contribuição espanhola ao “Congresso Internacional de Marrakech” e nas respectivas conclusões e vem sendo sublinhado em múltiplos trabalhos, nomeadamente nos de Fernando Mendez, distinto jurista e, para nosso regozijo, atual Decano do Colégio dos Registradores de Espanha, que sempre nos tem honrado com o seu interesse e participação nas realizações da nossa Associação.

A apontada atividade competente e isenta por parte do registrador é indispensável para que se possam fixar todos os efeitos derivados do assento registral que, como é evidente, não resultam – nem sequer é viável que resultem – de um puro dirigismo ou de automatismo efetuado por qualquer máquina que, em vez de servir a certeza do Direito como meio destinado a facilitar esta tarefa, fosse antes um instrumento pseudo-decisório que facilitaria e até determinava a escravização do Homem. Isto é: se ao primado do Direito viesse pretender impor-se a publicitação comandada por interesses obscuros e calculistas ou pela cega irracionalidade dos aparelhos - por mais modernos ou aperfeiçoados que aparentem ser -, tal conduziria sempre a uma pura sujeição mecânica e não à ponderação, justa valoração e certeza jurídica de cada caso concreto.

Por isso, tal como indiscutivelmente se reconhece, que não poderemos pôr os interessados ou os computadores a ditar sentenças ou a fazer julgamentos – nunca ninguém credível se atreveu aliás a defendê-lo – também, de igual modo, seria ilícito admitir que o juízo de qualificação, indispensável à isenta apreciação da validade dos atos, ou à produção dos efeitos e à hierarquização prioritária dos direitos, pudesse ficar entregue a quem deles não fosse incumbido, tendo a indispensável consciência, conhecimento e inerente responsabilidade.

De modo que se nos afigura ser legítimo sustentar que, muito embora no mundo moderno as tecnologias da informação permitam uma imediata e eficiente inter-comunicação, facilitando o funcionamento dos mercados e possibilitando uma conseqüente e rápida contratação – e exatamente porque o fazem e porque tudo isto é possível e até normal – é que complementarmente se torna básico, indispensável, que exista, sem quaisquer ingerências - mesmo de algumas outras entidades ou sectores profissionais - um controle isento da definição prioritária dos fatos, ou seja que, concomitamente, os registros funcionem como uma sólida garantia dos cidadãos, da válida e eficaz contratação, com o correspondente objetivo da segurança jurídica – o que, como dissemos, e não será demais sublinhar, só se conseguirá com uma capaz responsável e independente intervenção da figura do registrador e não com um pseudo-serviço de estranhos à função.

4 – Pretendemos demonstrar que uma coisa é a Administração Central e Local e muito outra a atividade concernente às relações jurídicas privadas.

Com isto queremos dizer que nos parece dificilmente contestável a já clássica tese apresentada por SANTI ROMANO, ZANOBINI, CARNELUTTI e muitos outros eminentes Mestres do Direito que entendem não poder confundir-se, no âmbito do Ordenamento Jurídico, o fim e a função da Administração – para a qual o direito é um simples meio – com o papel da Jurisdição, ainda que se trate, como é o nosso caso, de uma Jurisdição Voluntária – para a qual a definição e hierarquização dos direitos não é um meio, mas antes, e em si mesmo, um fim.

Não podemos nem devemos alongar-nos na exposição desta importante questão. Permita-se-nos apenas que citemos uma passagem do reputado jurista e registrador que foi ROCA SASTRE. Diz ele expressamente o seguinte: adiro à “doutrina científica que se inclina a considerar que a função qualificadora do Registrador é bem mais própria dos atos de jurisdição voluntária e não participa da natureza do ato administrativo”.

No que toca à função da publicidade registral, sendo certo que concerne às situações de direito privado, não é menos verdadeiro que toda a sociedade civil e o próprio Estado carecem desse serviço. Isto é: trata-se, como é já velha e reconhecida tese, que foi também acolhida pelo artigo 236 da Constituição do Brasil, da vasta área dos serviços exercidos em caráter privado, mas por delegação do Poder Público.

Dito de outro modo: o que releva, não é a natureza pública dos atos, que o não são. Como vimos trata-se de relações jurídicas privadas e reguladas no âmbito do direito privado. Só que, sendo atos privados, a sua constituição, publicitação e oponibilidade carece simultaneamente de uma aceitação pública, reconhecida por todos. Logo, como disse PUGLIATTI, torna-se necessário distinguir o que é uma função público-administrativa do que é uma atividade de serviço público. Nesta dicotomia – função pública, versus serviço público – nos Registros,como aliás também acontece nos Tribunais, não é o conceito de função público-administrativa que releva é antes a noção de serviço público.

Trata-se, em suma, de uma atividade que sendo de direito privado nunca pode olvidar o fim da atividade social e de benefício geral de toda a população - o que corresponde, portanto à noção de serviço público.

Aliás, a nossa legislação considerou – e bem – que se tratava de um serviço de direito público privativo. E aqui a palavra “privativo” quer não só dizer que concerne ao âmbito do direito privado, mas também que é específico, diferente, característico, isto é, que escapa à orgânica burocrática do Estado, porque não visa realizar nem praticar atos de natureza administrativa. [i][1]

Note-se ainda que toda a moderna teorização e busca de uma solução normativa adequada para o que sói designar-se como a defesa do consumidor, encontra nos registros, na proteção registral – qualquer que seja o sistema, mas evidentemente em fortíssimo grau se este ao menos tiver o efeito da denominada fé pública registral, idêntico ao previsto no art. 34º da Lei Hipotecária Espanhola – encontra aí, dizíamos, um campo de eleição.

É que, como tentamos sublinhar, os Registros Jurídicos de que nos ocupamos abrangem hoje praticamente todo o universo dos direitos privados, tanto de caráter pessoal, como de caráter patrimonial.

Ora isso torna-os praticamente indispensáveis para alicerçar e obter a desejada defesa do consumidor. E até é hoje um aspecto quiçá bem mais candente do que a almejada busca da – evidentemente desejável - harmonia com um sistema cadastral credível ou com a informação sobre o ordenamento territorial e os correlativos direitos. É que a proteção do consumidor abrange manifesta e intrinsecamente o acesso informativo à situação jurídica das pessoas e dos bens, de harmonia com as regras do Ordenamento Jurídico. E o registro está para isso. Tem, aliás, a virtualidade de poder definir, hierarquizar e tornar oponíveis os direitos mesmo que não exista cadastro, como acontece em vários países, inclusive em diversas regiões autônomas de Espanha. Note-se que o ponto básico é a proteção dos direitos. A função e a regra da oponibilidade não se estendem à composição e definição topográfica dos prédios. Ora, para a defesa jurídica do consumidor, o que releva fundamentalmente é a garantia e a certeza dos seus direitos. E neste âmbito é basicamente um sistema de registro o que e se conclui ser indispensável. Não queremos com isto dizer que não se caminhe e não se deva caminhar para o aperfeiçoamento da interligação cadastral. Queremos sim e apenas sublinhar que a publicitação dos fatos e a proteção, garantia e certeza dos direitos que o registro confere é muito mais importante.

5 – Nesta breve exposição chegamos ao momento em que já nos parece possível delinear algumas balizas relevantes do estatuto do registrador.

Assim, como resulta do que referimos, concluiremos que:

1º - O registrador deve ser um jurista preparado, especializado e competente, capaz de apreciar e valorar as diversas situações que quotidianamente se lhe apresentam.

2º - Neste âmbito, não pode ser um mero serventuário administrativo, um simples burocrata que receba ordens do poder executivo, isto é, que se limite a lavrar os atos e a decidir os casos concretos obedecendo às ordens do poder político-partidário.

3º - Com efeito, o simples enunciado de uma eventual e necessariamente lamentável concepção que defendesse tal subordinação, por si só nos revela e demonstra quão prejudicial inseguro e até corruptível, poderia ser para qualquer cidadão ver a esfera das suas relações jurídicas privadas invadida por critérios - próprios do direito administrativo - de oportunidade ou conveniência, ao juízo dos detentores do poder, quiçá detido por rivais, de idéias opostas, a quem pudesse interessar decidir ao invés de uma imparcial prioridade ou causar problemas alheios à isenta qualificação jurídica.Os direitos privados – pessoais,reais ou societários –, sejam quais forem os seus titulares, têm de estar, constitucional e necessariamente, ao abrigo das conveniências políticas dos detentores do poder – sempre mutáveis e transitórias, por mais competentes, argutas e dignas que queiram e possam ser.

4º - O impensável da situação oposta leva-nos a concluir, com toda a segurança, que o registrador tem de ser um árbitro capaz, que não pode deixar de ter independência decisória e, portanto, ao qualificar os atos, nunca deverá estar subordinado a qualquer ordem concreta, venha ela de onde vier (como claramente se tem concluído em múltiplos congressos internacionais e doutamente ensinava LACRUZ BERDEJO).

5º - O registrador deve também ser – e como decorre do que ficou dito – um gestor do seu serviço. Neste âmbito têm de lhe ser facultados os meios materiais e humanos para o correto desempenho das suas funções. E, a propósito, dever-se-á frisar que tem, para tanto, toda a capacidade.

6º - Na verdade, os serviços registrais – tal como os notariais – não carecem de quaisquer dotações orçamentais do Estado, nem sequer pretendem ver-se aí enquadrados. Com efeito, dispõem de receitas próprias, que, contudo, não devem basear-se em tabelas iníquas, desajustadas da realidade – como acontece com as que foram recentemente aprovadas – mas que têm de ser criteriosas, justas, proporcionais e adequadas aos serviços que os cidadãos pretendem e que lhes irão ser prestados. Se os emolumentos forem justos, como demonstra a experiência e a prática da generalidade dos países – incluindo os do “Leste Europeu” – as receitas, (cuja caracterização se aproxima mais do conceito de honorários prestados, por serviços de âmbito privado do que do de taxas por quaisquer atos públicos), serão inteiramente suficientes para custear todos os vencimentos, equipamentos, e demais infraestruturas centrais e locais, bem como os serviços deficitários de pequenas povoações. Nada haverá que vacilar ou recear a este propósito. Ponto é que quando o cidadão pague o registro de uma hipoteca que necessitou para financiar a aquisição da sua casa, não se queira também pretender que, simultaneamente, venha a custear o funcionamento das cadeias, do combate ao banditismo ou dos demais institutos e gabinetes jurídicos. De fato, uma coisa são os Registros e Notariado e outra, muito diferente, os demais serviços do Ministério da Justiça. Estes é que têm de financiar-se por outros meios ou através do Orçamento de Estado e não pela prática de atos notariais e de registro.

7º - Correlacionado com este tema e necessariamente ligado à Instituição Registral está o problema dos Serviços Centrais e do seu âmbito de atuação. É nosso entendimento que, porque não podem nem devem efetuar quaisquer registros, não é próprio que possuam uma pesada estrutura e que esta se encontre ligada à orgânica geral do Estado. Enquanto assim for, o seu papel não deixará de ser anódino e lateral. Está hoje reconhecido, ao menos doutrinal e teoricamente, que não há razão para a existência de institutos públicos se os mesmos não gerarem receitas próprias, capazes de lhes garantir uma correspondente autonomia administrativa e financeira. É claro que não temos visto que, na prática, se siga esta pacífica doutrina. Mas o que se não entende é que, havendo tantos institutos no nosso país, nunca tenha sido criado o dos Registros e do Notariado. E que a gestão das receitas das conservatórias e cartórios não pertença, como deveria, a uma repartição ou a um departamento integrado nesse mesmo Instituto dos Registros e do Notariado.

Esta seria, a nosso ver, a estrutura conveniente, que melhor poderia garantir a já sublinhada necessidade de autonomia das funções e da independência do registrador que, se tal for o caso, terá de decidir mesmo contra o Estado ou contra um entendimento administrativo, como aliás na minha própria experiência profissional já tive de o entender, certa vez no caso de uma marina e outra no de uma pseudo-expropiação.

8º - Redita, uma vez mais, a necessidade da isenção e independência do registrador, a sua classificação funcional não poderá, como é notório, ser administrativa ou ficar relegada para mero despacho de dirigentes administrativos. Aliás, esta grave desvirtuação só ocorreu recentemente – representando um verdadeiro retrocesso, ao que se presume numa tentativa de funcionalização dos serviços, contra toda a tradição que, quer entre os registradores, quer entre os notários, sempre atribuiu tais funções aos seus pares do denominado Conselho Técnico – e que mais propriamente se deveria designar como “Conselho Superior dos Registros e do Notariado” ou, no mínimo como “Conselho Consultivo” – ao qual essas e outras similares funções estivessem adstritas. E não se vê razão para que o não voltem a estar. O que não deve é permanecer a recente deturpação – até passível de desconfiança político-partidária – de uma classificação decorrer, no seu processo normal, de uma estrutura regimental de tipo administrativo.

9º - O conservador, ao publicitar eficaz e credivelmente as situações jurídicas privadas cumpre igualmente um mandato social que se traduz no que os tratadistas chamam a função legitimadora do Estado através da qual, muito embora, se não prossigam quaisquer operae publicae, mas sim e exclusivamente interesses e direitos privados, se reconhece, no entanto, que estes carecem, para que a sua oponibilidade e eficácia erga omnes não venha a ser posta em causa, de uma fé pública e do poder confirmativo, autenticador e vinculante do Estado. Ou seja: não se trata de matérias reguladas pelo direito público ou inclusive de bens do domínio público, mas é mister que coexista uma exeqüibilidade e um crédito dos cidadãos para que tais direitos individuais gozem de uma pretendida e incontestada eficácia geral.

É, pois, papel indeclinável do registrador exercer essa jurisdição própria e autônoma, cumprindo a referida função legitimadora que, de resto, complementa e alicerça o próprio “Estado de Direito”.

10º - Ao inscrever os atos e fatos passíveis de registro o conservador não atua como um advogado, patrocinando o interesse de uma das partes. É óbvio que, qualquer que seja o negócio jurídico, mesmo, como se disse, quando aconteça que o Estado é parte, ele tem de ter uma postura imparcial. Isso, porém, não significa que intervenha como juiz, proferindo as decisões, indiferente à circunstância de aos fatos vir, ou não, a caber a desejada publicitação e enquadramento jurídico.

Muito pelo contrário, ao registrador deve interessar que as partes, dentro do que o Ordenamento prevê, consigam inscrever todos os fatos e publicar todos os direitos que quiseram constituir.

Daí que o registrador – aliás identicamente ao que acontece com o notário – tenha uma missão de conselho, de assessoria das partes, um poder – dever de as orientar para que as suas reais pretensões possam ter acolhimento legal. Magis ut valeant quam ut pereant .

Este é mais um aspecto importantíssimo da função que, de resto, como é sabido, a legislação portuguesa acolhe, até consagrando a possibilidade de se elaborarem e estudarem as pretensões dos cidadãos utentes. Se para o direito é a pessoa que deve contar, aqui temos, no âmbito do estatuto do registrador, mais esta importante vertente da assessoria que pode e deve eficientemente contribuir para o serviço ao cidadão, para a necessária e almejada satisfação dos direitos individuais. Radica também aqui uma das causas pelas quais facilmente se demonstra a conveniência, ou mesmo a imprescindibilidade, da remuneração dos conservadores (e dos notários) ter uma característica própria da de honorários pelos serviços prestados ou, como costuma designar-se, de participação emolumentar.

O que, diga-se, é básico até para assegurar o bom e devido funcionamento da “Instituição Registral”.

11º - No que toca à atividade dos registros e à definição dos direitos e deveres dos registradores, temos assistido, nos últimos tempos, a um lamentável retrocesso em que se tem propalado demagogicamente que não deviam ser os próprios registradores a propor as medidas que se mostrem adequadas ou a impulsionar a sua atividade. Alega-se que se assim acontecesse, favorecer-se-ia uma concepção dita corporativa, a que, aliás, se tem pretendido atribuir um sentido pejorativo.

Ora, a nosso ver, nada mais falacioso.

Como é notório, trata-se de funções que têm um conteúdo muito específico e em relação às quais, como sabemos, a todos os juristas, mesmo qualificados, se deparam diversos problemas.

De resto, como todos reconhecem, tanto aos magistrados – quer judiciais quer do Ministério Público – como aos advogados, como a outros juristas, nunca lhes tem sido negado um estatuto prescrevendo que devem ser eles mesmos a gerir as suas ordens profissionais e a dirigir os organismos representativos da classe, já que são os verdadeiramente capazes de definir, orientar e fixar as regras pelas quais se deve pautar a sua atuação. Ora, porque pretender então negá-lo aos registradores? Porque querem dirigir esta classe os que dela nunca tiveram experiência? Os que dela só têm demonstrado querer explorar, como dizia o discípulo de Maquiavel, “o gostoso sabor do mando”?

Não há dúvidas, em nosso singelo mas linear entendimento, que, tal como acontece com os demais organismos sócio-profissionais do direito, também neste âmbito da publicidade registral, devem ser os registradores – porque, como se frisou, são os que possuem os necessários conhecimentos, aliados à experiência concreta – aqueles que devem ser chamados a pronunciar-se sobre os fins, a disciplina e a organização da classe. Afinal, são os que melhor conhecem os problemas e, assim, lógica, indubitável, e necessariamente os que estarão mais interessados em resolvê-los. Não é correto, nem benéfico, que possam ser estranhos e ao fim e ao cabo, intrometidos, sempre ilegítimos, a querer fazê-lo.

E acrescente-se ainda: o conservador é um jurista preparado, que atravessou provas e árduo caminho. Não pode estar sujeito à eventual concorrência de quem não tenha essa preparação, de quem não se haja submetido a provas e concursos, de quem, afinal, não seja registrador.

12º - O setor da válida contratação, da eficácia e prioridade das relações jurídicas privadas assume, no contexto social, o relevantíssimo papel da composição dos interesses, da realização de um dos fins primordiais da justiça que é o de alcançar a paz civil. É a segurança dos atos, pactos e negócios jurídicos que essencialmente está em causa.

E não nos olvidemos que as próprias palavras “pacto” e “pactuar” têm, etimologicamente, a mesma raiz  “de paz”.

É o cidadão, é o seu direito privado – graças a Deus independente da administração pública e das influências políticas – aquele que na área dos registros e do notariado é visto como destinatário, como o sujeito de direito, como a pessoa juridicamente credora de toda a proteção possível – e que é mister que se lhe dê - neste domínio extra-litigioso.

Ora, na ótica do estatuto do registrador, creio que se poderá afoitamente concluir que a autonomia do registrador, o seu crédito e competência profissional, a sua responsabilidade são o suporte necessário de uma garantia jurídica, que, em si mesma, pode contribuir decididamente para a própria paz social.

E com estas doze proposições chegamos ao fim deste breve enunciado.

A filosofia que rege o direito e a busca de uma justa normatividade concreta assenta sempre num difícil equilíbrio, diríamos, como que num fio de cortante navalha em que a proteção dos cidadãos e dos terceiros, bem como a defesa e o combate pela solução acertada se vislumbram como o Norte orientador que procura evitar o erro e a injustiça. Para aí chegar, o registrador tem de caminhar firme, mas humildemente, com independência, bom-senso e sã filosofia, amparado pelo bastão da lei que terá de aplicar com isenção e critério. Isto é: será a livre, prudente e eqüitativa qualificação, a verdadeira pedra de toque que permite, nesta nossa atividade, um combate pela certeza do direito e, portanto, pela paz social .

Combate este que se antevê, para além da positividade fria da norma, como um imprescindível ajustamento aos supremos valores da verdade, da imparcialidade, da isenção e da credibilidade jurídica.

Para a definição do estatuto do registrador importa caminhar nesta direção para que tal estatuto se ajuste ao nobile officium que caracteriza a função e possa concorrer, no seu campo de atividade, para que se alcance tão ambicioso e ambicionado fim.

Por último, diremos que estas finalidades e balizas de atuação têm de ser manifestadas aos detentores do Poder e serem deles reivindicadas as medidas necessárias para o bom funcionamento da Instituição Registral e para que, portanto, o Registrador possa efetuar a correta inscrição dos fatos, e, deste modo, tendo os meios necessários, contribuir, com a sua honestidade, isenção, competência, autonomia e responsabilidade, para a paz social e para a imprescindível certeza do Direito.


* Prof. José Augusto G. Mouteira Guerreiro. Autor de ensaios e estudos, o Professor Mouteira é autor das Noções de Direito registal (predial e comercial), editado pela Coimbra Editora, e reproduz as lições ministradas no Curso dos Registos e do Notariado, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. O Irib publicou recentemente o seu Registro Imobiliário. Necessário instrumento do progresso econômico-social, (RDI 45/82). 

** No original O estatuto do conservador. Trabalho apresentado no transcurso da II Jornadas de Direitos dos Registros na Universidade do Minho, Portugal. Para consulta da publicação original, tecle aqui.



[i][1] Pergunta-se: poderá algum dia entender-se que a publicitação das relações e situações jurídicas privadas – desde a de um casamento, ao de um legado testamentário, ou de uma permuta de prédios, ou de alteração de um contrato de sociedade, etc., etc. – tenha natureza administrativa?



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