BE674

Compartilhe:


Registro de Imóveis Brasileiro Citado na Europa - O sistema é considerado um dos melhores da América Latina


O jornal espanhol El País estampou matéria de página inteira na edição de 17 de abril de 2003, dedicada inteiramente ao Brasil e às iniciativas do Governo Lula de outorgar títulos de propriedade à população de baixa-renda do país.

O texto é do eminente registrador espanhol Fernando P. Méndez González, profundo conhecedor da tecnologia registral e um dos mais renomados autores que em doutrina têm se dedicado à valorização do Registro de Imóveis visto de uma perspectiva sócio-econômica.

As razões de Lula são também as razões de todos nós, registradores imobiliários e cidadãos brasileiros, que temos o compromisso histórico de contribuir para que a população possa ter acesso aos bens materiais indispensáveis ao exercício pleno da cidadania, contribuindo com o desenvolvimento econômico e o bem-estar social.

Os registradores brasileiros estão dispostos e preparados para o grande desafio (SJ).
 


As razões de Lula - Fernando P. Méndez González*


Os principais meios de comunicação têm dado grande relevância à notícia de que o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva ordenou que fossem expedidos títulos formais de propriedade das favelas. Provavelmente esta medida terá surpreendido mais de uma pessoa. Não serão poucos os que a qualifiquem de demagógica, própria de um líder populista ou de decisão irresponsável que questiona as bases do sistema econômico e social.

Nada mais longe da realidade. Lula tem suas razões. Não deseja em absoluto destruir o sistema capitalista no Brasil, mas sim, pelo contrário, conseguir que deixe de ser um clube privado e que abra suas portas – e também seus benefícios – à grande maioria dos habitantes deste imenso país latino-americano.

É sabido que para estender o capitalismo é necessário desenhar e universalizar mecanismos capazes de gerar capital, a seiva genuína de todo o sistema. E que o processo pelo qual um ativo físico – uma favela, concebida unicamente como refúgio – se converta em outro gerador de capital, e que essa mesma favela, concebida, por exemplo, como garantia de um empréstimo, financie a criação de uma empresa, é complexo e encontra-se carregado de dificuldades. Mas esse é o apaixonante e transcendental processo que o presidente Lula pretende colocar em marcha com a decisão adotada.

Hernando de Soto (reconhecido economista de origem peruana, cujos ideário e equipe encontram-se sem dúvida por trás da decisão adotada pelo presidente brasileiro) formulou em sua época, uma pergunta chave (ver sua obra El misterio del capital, com subtítulo Por qué el capitalismo triunfa en Occidente y fracasa en el resto del mundo). Esta pergunta é simples: O que é que desprende valor de uma simples residência  e o fixa de tal forma que lhe permite gerar capital? A resposta é, também, simples: uma propriedade identificada, documentada e protegida por um sistema formal de direitos de propriedade.

No Ocidente, observa de Soto, todo ativo – toda parcela de terra, residência ou bem móvel de consumo duradouro – foi formalmente fixado em registros mantidos, atualizados e regidos por normas contidas no sistema de propriedade, de modo que todo aumento na produção, todo produto, imóvel ou objeto com valor comercial, é propriedade formal de alguém. A propriedade formal, observa de Soto, convida a identificar a casa como algo além do que mero refúgio e por isso um ativo inerte; convida a vê-la como capital vivo.

No Ocidente – continua o economista – os imóveis formais são fáceis de usar como garantia para um empréstimo; para obter um investimento mediante sua troca por ativos; como domicílio para a cobrança de dívidas ou de impostos, ou com finalidades comerciais ou judiciais, por exemplo, de modo que enquanto as casas como tal agem como refúgios ou lugares de trabalho de seus donos, seus títulos formais de propriedade com uma vida paralela, cumprem várias funções adicionais para afiançar os interesses daqueles que tentam criar nova riqueza.

Pelo contrário, aqueles ativos cujos aspectos jurídicos – e magnitudes relevantes a partir de um ponto de vista econômico – não estão fixados em um sistema de propriedade formal são sumamente difíceis de mover no mercado e seu intercâmbio comercial se circunscreve a círculos basicamente locais de amigos e conhecidos. Os efeitos desta brecha legal são dificultar a contratação com estranhos, restringir a divisão do trabalho e frear a produtividade e, finalmente, o crescimento econômico e o bem-estar.

Da mesma forma, no Ocidente, seus sistemas formais de propriedade caracterizam-se por, apesar de estarem concebidos para proteger tanto a segurança dos títulos como a das transações, concedem prioridade à segurança destas últimas com a finalidade de facilitar que os ativos possam cumprir sua função paralela como capital. Por isso, a maior parte dos países avançados dotou-se de sistemas registrais de direitos (também denominados de fé pública), enquanto que muitos dos países em vias de desenvolvimento continuam ancorados em sistemas registrais de documentos, os quais se limitam, como observa de Soto, “a ser guardiões dos desejos dos mortos”. “Isto talvez explique – continua o ilustre economista – por que é tão simples criar capital sobre propriedades ocidentais e por que nos países em vias de desenvolvimento a maior parte dos ativos escapou do sistema formal legal em busca de mobilidade”.

"Dois terços da riqueza dos países em desenvolvimento dependem da propriedade imobiliária".

Pois bem, enquanto isto sucede nos países desenvolvidos, na América Latina, segundo as pesquisas levadas a cabo pela equipe de De Soto, pelo menos seis de cada oito construções se encontram no setor subcapitalizado e 80% de toda a propriedade imobiliária é possuída fora da lei. Se considerarmos que dois terços da riqueza nacional dos países em vias de desenvolvimento estão relacionados com a propriedade imobiliária, a conclusão inevitável é que a lei é a exceção e a marginalidade a norma e que, devido a isto, (concretamente à ausência de um sistema formal e universalizado de direitos de propriedade) dois terços dos ativos físicos estão inabilitados para criar capital, não servem como garantia para obter um crédito, nem tampouco para desempenhar qualquer das demais funções que as representações formais da propriedade permitem. E isto constitui um autêntico dispêndio em um mundo imerso em uma intensa luta (nacional e internacional) pela captação de capitais.

Nos Estados Unidos, pelo contrário, a maior fonte individual de recursos para novos negócios é a hipoteca sobre a residência do empresário. Ou na Espanha, o volume dos saldos vivos dos ativos hipotecários já equivale a mais da metade do Produto Interno Bruto, constituindo-se mais de um milhão de novas hipotecas anualmente.

Torna-se imperativo, portanto, legalizar a situação extralegal das posses imobiliárias desses países, caso se deseje que possam começar a geral capital. E isto é exatamente o que persegue o presidente Lula. A questão é como integrar os ativos extralegais de um país em um único sistema de propriedade formal, especialmente quando a situação de extralegalidade afeta grande parte dos ativos imobiliários.

Prescindindo de outros aspectos, esta questão se apresenta como um autêntico desafio jurídico; sua solução requer uma sofisticada tecnologia jurídica capaz de oferecer soluções simples, universais, pouco custosas e sumamente eficazes na proteção dos direitos e, sobretudo, das transações. Esta questão – como fazê-lo – torna-se assim um assunto crítico, pois é sabido que uma má instrumentação de uma boa idéia pode acabar invalidando a própria idéia.

A análise de De Soto é, sem dúvida, brilhante. Seu diagnóstico, correto, deve muito a contribuições de economistas como Coase, North, Fogel, Pipes e outros. Inclusive aponta idéias para buscar soluções – inspiradas na história dos Estados Unidos, como os direitos de tomahawk, de cabana, de sementes, etc. – que são, sem dúvida, úteis, mas não se sente capaz de construir a tecnologia jurídica necessária para fazer frente a esse desafio extraordinário, se bem que indica quatro linhas mestras, absolutamente corretas a meu juízo:

1. Para criar uma economia de mercado moderna são necessários padrões comuns estabelecidos em um único corpo de normas.

2. Os sistemas devem proteger os direitos de propriedade e as transações, mas, sobretudo, estas últimas.

3. Devem ser facilitados os procedimentos para entrar nesses sistemas; mais concretamente, a meu juízo, devem ser facilitados os procedimentos para que as propriedades que vivem fora do registro entrem no sistema registral.

4. A questão básica não consiste em mapear e fotografar os edifícios ou as terras, mas sim em fixar regras que reflitam um consenso sobre como os ativos físicos devem ser possuídos, intercambiados e utilizados, conselho este que, se for seguido, pode economizar muito dinheiro para o Governo brasileiro.

Uma vez que o presidente Lula adotou a decisão e comunicou ao país que ele pessoalmente está à frente deste timão – imprescindível para vencer as prováveis resistências de certas minorias – o êxito deste apaixonante e transcendental processo vai depender – em medida maior que qualquer outra – de uma questão tecnológica, concretamente de tecnologia registral e, especificamente, em seus aspectos jurídicos, organizativos e gestores – a tecnologia física, sem dúvida útil, é, neste ponto, secundária. Para compreendê-lo, basta a seguinte reflexão: a propriedade não pode gerar capital enquanto não seja juridicamente indiscutível, e não o é enquanto a comunidade como tal não reconhecer a uma pessoa como proprietário mediante um ato de adjudicação.

"O Brasil dispõe de um dos melhores sistemas registrais da América Latina"

O Registro é uma instituição através da qual a comunidade realiza esse reconhecimento e a inscrição uma espécie de adjudicação que consolida um determinado statu quo jurídico real imobiliário que deve ser respeitado por todos. Por isso, o Registro é a chave. Facilitar os sistemas de entrada no Registro – sistemas de adjudicação – por um lado, e fortalecer os efeitos deste para que as transações com os direitos adjudicados sejam plenamente seguras, por outro, são duas das pedras angulares imprescindíveis para o êxito do processo.

Afortunadamente, hoje, temos a tecnologia registral que permite consegui-lo. Além disso, o Brasil dispõe de um dos melhores sistemas registrais da América Latina, pelo menos em suas grandes áreas urbanas, pelo que a implementação das medidas necessárias não deveria ser especialmente problemática.

* Fernando P. Méndez González é decano-presidente do Colégio de Registradores da Propriedade e Mercantis da Espanha e um dos principais especialistas internacionais em registro da propriedade. Assessorou diferentes países na aplicação de sistemas registrais. Matéria publicada no Jornal El País – Seção: Internacional – Página: 10 - Data: 17 de abril de 2003
 



Últimos boletins



Ver todas as edições