BE686

Compartilhe:


 

TV Justiça entrevista Ricardo Dip sobre a segurança jurídica do registro de imóveis


A convite do Irib, o doutor Ricardo Dip, Juiz do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo e professor da Universidade Paulista, concedeu entrevista à TV Justiça, no programa Cartório, o parceiro amigo, da Anoreg-BR, no último dia 12/4/2003 às 11h00, reapresentado nos dias 13/4 às 11h e 14/4 às 6h e às 22h.

O entrevistado

Além de convidado da pós-graduação da Faculdade de Direito da PUC Argentina, acadêmico de honra da Real Academia de Jurisprudência e Legislação de Madrid e membro do Instituto Jurídico Interdisciplinar da Faculdade de Direito da Universo do Porto, honrarias que já acumulava, agora o insigne magistrado Ricardo Dip acaba de tornar-se membro do Comitê Científico da Revista Internacional de Filosofía Práctica de Buenos Aires. 

Tema da entrevista

O assunto do programa foi a importância da segurança jurídica como um dos aspectos do bem comum político. Para o entrevistado a segurança jurídica integra, ao lado da justiça, um dos aspectos fundamentais do bem comum. Confira, a seguir, o teor integral da entrevista, com pequenas retificações autorizadas pelo entrevistado:

1. O que os cartórios têm a ver com a vida comum das pessoas e em que medida o cidadão pode se sentir seguro em virtude das atividades exercidas pelo registro de imóveis?

R.DIP:
Estamos muito acostumados a cogitar da existência da Justiça no campo do Direito, mas a deliberação sobre a Justiça há de ter um termo, ela não pode ser infinita. Há certos institutos jurídicos, tais, por exemplo, a coisa julgada, a perempção, a prescrição, a decadência e a preclusão, que desempenham um papel importante porque concedem ao cidadão uma certeza que, por sua vez, é correspondente a um estado de estabilidade objetiva a constituir, efetivamente, a segurança jurídica: há, de um lado, o estar certo de alguma coisa, que guarda a correspondência, de outro lado, com o fato de que essa coisa só poderá ser mudada por meio de procedimentos regulados em lei.

Os cartórios de registros públicos desempenham o papel mais importante que se confere aos institutos jurídicos conhecidos para assegurar determinadas situações e, ao mesmo tempo, que se concede, no plano subjetivo, à certeza humanamente possível que faz com que repousemos na confiança de que o direito correspondente só nos será eventualmente suprimido ou alterado de conformidade com o procedimento normal, com o procedimento legal (isto é, previsto em lei). Suponhamos que eu tenha um imóvel na zona litorânea e neste exato momento, em que estou aqui concedendo esta entrevista, eu esteja, pois, longe desse meu hipotético imóvel. A certeza que tenho de que esse imóvel é de minha propriedade está no fato de que eu confio no cartório de registro, de que há um instituto que me concede a segurança quanto a esse domínio. Do contrário, eu teria que ficar armado à frente desse prédio para não perdê-lo. Os cartórios de registros concedem a toda população a segurança de que podemos dormir porque não seremos traídos por um comportamento desleal, por uma conduta juridicizável fora da lei.

2. Por que os cartórios não subsistem em regimes totalitários?

R.DIP:
Eu, diversamente, penso que os cartórios subsistem no regime totalitário muito bem, desde que não tenham independência jurídica. O problema central da consistência da segurança jurídica para a sociedade, por meio de cartórios de registros e de notas, está efetivamente cifrado no tema da independência jurídica, ou seja, na possibilidade de um registrador ou de um notário se incumbirem de sobregarantir os direitos das pessoas que procuram o cartório, até mesmo diante do Estado. Isso é o que desaparece nos regimes totalitários.

Na medida em que o Estado reconhece, fora de sua órbita, um poder que lhe pode fazer frente e ao qual está obrigado a observar – porque deve respeitar a legislação, a própria ordem jurídica constituída –, nisso se encontra a garantia de sobrevivência dos direitos que esses órgãos, no nosso caso, os registros, estão a assegurar. No regime totalitário isso não ocorre porque, como o próprio nome está a dizer, o Estado totaliza em si a gama de poderes, o plexo de direitos que ele acha que pode conceder para a sociedade. Isso também pode ocorrer em outros Estados, apesar de não serem ostensivamente totalitários. Esses podem, talvez, resolver estatizar os registros e as notas. Na verdade, esses organismos tendem, com essa estatização, a perder a independência que podem ter dentro de um Estado temperado. Isso não é ontológico, não é exigência metafísica. É perfeitamente possível haver organismos estatais independentes, como, por exemplo, um juiz que, embora seja funcionário do Estado, tem total independência para decidir até mesmo contra o Estado, se for o caso. Tendencialmente, os cartórios estatizados passam, contudo, a ficar mais ou menos sobre uma órbita de interferência estatal, que pode levar a essa sutileza de totalitarismo, que é o fenômeno do Estado moderno depois da queda do Muro de Berlim.

3. Ao registrar a minha escritura eu posso me sentir juridicamente segura mesmo em face do Judiciário? Que valor teria o registro perante o Judiciário?

R.DIP:
Na vida, todos nós estamos sempre em busca de segurança, mas, enquanto estivermos, como entes humanos, neste mundo terreno, não é possível esperar segurança absoluta. Sim, e apenas, relativa. Deve dizer-se que, muito provavelmente, os registros constituem o melhor instrumento até hoje encontrado pelo homem para cumprir o requisito da segurança jurídica, sem embargo de que, relativa, os registros convivam, aqui ou ali, com um conjunto de falhas residuárias suscetíveis de levar a uma diminuição dessa segurança e correlatamente da certeza jurídica. Quando alguém registra uma escritura pode ter uma segurança estatística e tamanha que se aproxime da segurança absoluta, de que tem garantido o seu direito enquanto um procedimento legalmente previsto não venha alterá-lo, até mesmo no plexo judiciário. Dentro do Judiciário, para que alguém perca seu direito, ver-se-á citado para o processo e poderá defender-se. Pode dizer-se que estamos muito próximos de uma segurança tranqüila. Tanto é verdade que o meu suposto imóvel na praia está lá placidamente, enquanto eu, eu estou aqui.

4. Segurança jurídica e seguros privados são basicamente a mesma coisa?

R.DIP:
A segurança jurídica é um gênero, e o termo ‘seguro’ ou ‘segurança privada’ tem mais de uma significação. Aquele guarda particular, o antigo guarda-noturno e agentes de banco são seguranças particulares, mas a pergunta que a Sra. me faz, se bem a compreendo, é relativamente à ‘segurança de títulos’.

Veja a diferença que há entre a segurança dada pelo registro e o seguro de título.

Provavelmente a Senhora já teve na vida um automóvel de estimação, como eu também já tive o meu primeiro fusca pelo qual tinha uma afeição muito grande. A segurança jurídica dada pelo registro consiste em dizer que esse automóvel é seu enquanto um processo legal não alterar isso. A segurança do título, que é a alternativa que se põe para o registro, significa que terá o dinheiro correspondente ao automóvel, se ele for furtado ou não. Confesso que não gostaria de ver subtraído aquele meu fusca. Preferiria que ele estivesse assegurado juridicamente.

Veja, o seguro do título não é propriamente a segurança jurídica, é uma segurança financeira e econômica. Não quero tirar o valor que a segurança privada possa ter; ela é importante, mas, numa cultura como a nossa, em que há um apego adequado ao solo, à casa, que com tanta dificuldade se consegue adquirir, com certeza vamos preferir essa casa e não o dinheiro correspondente a ela. Isso funciona em outras culturas, como em um certo ambiente urbano norte-americano. Para alguns americanos, o dinheiro vale muito mais do que a casa. Não sou especializado em direito norte-americano, mas, segundo notícias que ouvi, os Estados Unidos estão cuidando, em alguns lugares, de instituir um registro adequado para que não tenham que ir ao remédio e fiquem apenas na prevenção.

5. Os cartórios representam a intervenção do Estado na vida do cidadão? Por que não deixar a própria sociedade, por meio de seus instrumentos, cuidar dos seus interesses patrimoniais privados? Por que um órgão estatal?

R.DIP:
A Senhora retoma, de caminho, a distinção absolutamente correta entre a soberania política, que está nas mãos do Estado, e a soberania social, que é aquela exercida pelos corpos intermediários entre o indivíduo e o Estado. Mas veja que, em determinado momento histórico, a segurança jurídica atribuída à tarefa dos registros revelou-se tamanhamente importante que não poderia ficar mais entregue a organismos contingentes, que possam não existir pela só vontade ocasional dos particulares. O que ocorreu é que, em muita parte, atos e tarefas que eram exercidas por comunidades, corpos intermediários, grupos sociais menores, foram, em determinado tempo histórico, atribuídos ao Estado como uma passagem histórica quase natural; ou seja, se os registros não são propriamente atividades jurídicas essenciais do Estado, pelo menos não em toda a gama de suas funções, é certo que, historicamente, o Estado tem que se interessar por esse serviço.  O que não quer dizer que devam ser serviços prestados diretamente por ele. Serviços organizados, ordenados, fiscalizados e supervisionados pelo Estado, de uma parte, e, de outra parte, serviços diretamente gestados pelo Estado são coisas distintas. No caso do Brasil, não podemos dizer que os registros sejam propriamente organismos estatais.

6. O senhor acha que os cartórios de imóveis deveriam ser estatizados?

R.DIP:
Não há impedimento algum a que cartórios de registros sejam estatizados. É perfeitamente possível, no plano ontológico. Historicamente, contudo, isso contraria a tradição brasileira, mostrando uma inconveniência experiencial. Basta ver, com todo o respeito, o cotejo que se pode fazer entre os organismos, as repartições públicas sempre lidando com muitas dificuldades financeiras, com funcionários freqüentemente bem-intencionados, verdadeiros heróis em suas funções, mas que não trabalham com as mesmas condições com que se trabalha no ambiente de cartórios de registros. Por outro lado, os resultados da prestação registrária são tão evidentemente bons no Brasil que –eu me permitiria dizer, sem que haja nisto nenhuma soberba nacionalista– os cartórios brasileiros de registro de imóveis estão entre os melhores se é que não são até mesmo os melhores do mundo.

7. O que é a função social da propriedade e em que medida pode-se falar da função social do registro de imóveis?

R.DIP:
A função social da propriedade é vítima, hoje, de uma técnica generista; tudo, retoricamente, é função social da propriedade. Dizer especificamente qual seja a função social, ou mais adequadamente, quais são as funções sociais da propriedade, apontar o imenso leque de situações em que se encontra a propriedade, tudo isso é muito difícil. Todavia, a respeito de uma possível função social do registrador, em particular do registrador imobiliário, eu ainda me permitiria observar que encontro como a primeiríssima das funções sociais da propriedade privada a de delimitar exatamente o que é de um e o que é de outro. Isso é importante, é essencial, porque a ordem natural das coisas não diz o que é meu e o que é seu, o que é de um, o que é de outro; então é preciso que a convivência humana estabeleça determinados critérios, sinais que permitam saber separar, distinguir, para evitar conflitos. Basicamente é isso que faz um registrador: delimita o que é de um do que é de outro. Isso mostra que o registrador possui sim uma função social eminente; cabe a ele, no exercício da tarefa registrária, ao fazer essa delimitação, permitir que a propriedade cumpra o seu papel; ora, a propriedade particular, com essa demarcação, permite que nós garantamos o exercício da nossa própria liberdade concreta. Aquele que é dono seguro de um pedaço de terra tem nessa terra um bastião em defesa de sua liberdade. O registrador, portanto, atua como sobregarante dessa liberdade. Por isso, no século que se findou e ao princípio deste, deixamos mais ou menos soterrado nos escombros do Muro de Berlim a idéia de abolição da propriedade e, em troca, substituímos por algo notável: a difusão da propriedade. Não é mais suprimir a propriedade, mas difundir a propriedade, porque isso é difundir a liberdade. E liberdade que há de ser sobregarantida pela atividade séria do registrador imobiliário.

8. De uma maneira geral, o que o senhor acha que pode ser melhorado no registro de imóveis brasileiro?

R.DIP:
Há muita coisa a se fazer e pacientemente. É preciso esclarecer que o fato de o registro Imobiliário trabalhar, em geral, magnificamente, e de se encontrar na vanguarda dos registros Imobiliários de todo mundo – se não for, como eu disse, até mesmo o seu melhor exemplar–, não quer dizer que não possa melhorar, retificar-se, desenvolver suas virtudes. A potencialidade dos registros é muito grande; há muita coisa a corrigir, embora devamos acautelar-nos contra a opinião —ingênua— de que toda mudança representa um bem. Muitas vezes, a estabilização, a manutenção das coisas como se encontram já é coisa muito boa (por exemplo, manter a saúde de alguém é, por certo, coisa boa e melhor do que mudá-lo e convertê-lo num doente). As nossas mudanças políticas —incluso as do registro— devem atender à realidade histórica; vale dizer, devem ser mudanças que não se afastem da nossa tradição, que não copiem modelos estrangeiros, trasladando instituições que não tenham nenhuma relevância para a situação nacional. Ao mesmo tempo, devemos considerar também a realidade circundante, o Brasil de hoje. Nós temos um Brasil que não é do futuro e nem do passado —como seria o Brasil silogístico, se parodiarmos Nabuco—; é o Brasil dos nossos dias que está a reclamar algumas coisas, entre elas, a tranqüilidade dominial, uma certa segurança jurídica, uma segurança de que a cada momento não se estejam a mudar as regras do jogo, especialmente quando quem está a mudar as regras seja participante do jogo. A estabilidade que se espera do registro é também a estabilidade legislativa. As mudanças na área do registro devem ser feitas com muito critério na linha da tradição e em vista da nossa realidade concreta, em vez de pura e simplesmente arriscar, experimentar com modelos estrangeiros ou com modelos tirados da imaginação utópica; isso pode desestruturar os serviços de registros.

Lembremos que a desorganização do registro imobiliário representa a desordenação da propriedade imobiliária, representa a luta entre o forte e o fraco. Não quero deixar a má impressão de que padeça de alguma xenofobia; nada tenho, nada tenho, por si só, contra os países estrangeiros; ao contrário, por exemplo, estou muito interessado em conhecer a experiência russa —anoto que haverá em junho na Rússia, um Congresso internacional registrário, lá nessa Rússia onde tentam restaurar os registros de imóveis para resolver os problemas daquela grande nação.



Últimos boletins



Ver todas as edições