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Sociedades limitadas, o Registro Imobiliário e o Novo Código Civil. - Alexandre Laizo Clápis*


As sociedades limitadas surgiram no direito inglês e no francês nos anos de 1862 e 1863, respectivamente, como forma simplificada das sociedades anônimas. No Brasil, o projeto do então Ministro da Justiça Nabuco de Araújo que previa a criação de sociedade por ações simplificadas foi rejeitado em 1867 pelo Imperador D. Pedro II. A forma própria da sociedade limitada independente do conceito de sociedade anônima surgiu na Alemanha em 1892 e influenciou ordenamentos de outros países, inclusive do Brasil que, no ano de 1919, pelo Decreto nº 3.708, criou as sociedades por quotas de responsabilidade limitada[i]1.

Dentre outros preceitos, o tão conhecido art. 18 do referido Decreto nº 3.708/1919 determinava que, em casos de omissão do estatuto social e naquilo que não fosse contraditório, seriam observadas as disposições da lei das sociedades anônimas. A redação do mencionado dispositivo legal é a seguinte:

“Art. 18 Serão observadas quanto às sociedades por quotas, de responsabilidade limitada, no que não for regulado no estatuto social, e na parte aplicável, as disposições da lei das sociedades anônimas.”

Pois bem. Quanto ao Registro de Imóveis, os negócios praticados para a formação de capital social de pessoas jurídicas são feitos por atos de registro, com fundamento no art. 167, inciso I, nº 32, da Lei Federal nº 6.015/1973, independente da espécie de sociedade. Apesar da regra geral reforçada no atual Código Civil (art. 108), a escritura pública não será necessária para formalizar este tipo de transferência, vez que há previsão expressa em legislação especial. Assim, como sabido, o instrumento particular de constituição de sociedade que formalize a transferência de bens imóveis para a formação do respectivo capital social, passado pelo registro do comércio e apresentado na via original ao Registrador Imobiliário, é o título hábil para registro[ii]2. Há, contudo, necessidade de constar a descrição dos bens que serão integralizados no capital social da pessoa jurídica, em atenção ao princípio da especialidade[iii]3.

Até aqui nenhuma novidade.

No entanto, surge uma questão que deve ser refletida e debatida em razão das regras estabelecidas pelo Código Civil de 2002.

As operações societárias de incorporação, fusão ou cisão de sociedades anônimas, também podem ser instrumentalizadas por escritos particulares, que envolvam transferência de bens imóveis, são levadas para as correspondentes matrículas nos Registros de Imóveis por atos de averbação, diante da expressa previsão legal contida no art. 234, da Lei das Sociedades Anônimas.

Há casos, porém, em que a incorporação de uma sociedade por outra ou fusão de duas ou mais sociedades para a criação de uma nova, acarreta transferência de bens imóveis que passam a integralizar o capital social das respectivas empresas. O mesmo pode acontecer com as sociedades que são cindidas, em que parte do capital destacado (representado por bens imóveis) é vertido para formar o de uma nova pessoa jurídica. Nestas situações, ressalvado entendimento contrário, o ato a ser praticado pelo Registrador Imobiliário é de registro e não de averbação, vez que se trata de transferência de direito real para integralizar capital social, ainda que de sociedades anônimas[iv]4.

Importante, nestes casos, é observar o destino que se dará aos imóveis envolvidos na respectiva operação societária. Na hipótese de simples incorporação, fusão e cisão, que não implique modificação do capital social com a integralização de imóveis, aplica-se o mencionado art. 234, da Lei Federal nº 6.404/1976. Estas informações podem ser obtidas com criteriosa análise do protocolo e da justificação, artigos 224 e 225, respectivamente, da Lei das Sociedades Anônimas.

Seja por equívoco, seja por motivação política, a Lei das Sociedades Anônimas não observou a natureza dos atos registrários e seus respectivos efeitos[v]5. A aquisição de direito real por ato de averbação não se coaduna com o pensamento doutrinário.

Afrânio de Carvalho afirma que os atos de averbação são acessórios e servem para refletir eventuais alterações sofridas pelos atos principais. “A inscrição, nela absorvida a transcrição discrepante, cobre as aquisições e onerações de imóveis, que são os assentos mais importantes, ao passo que a averbação cobre os demais, que alteram por qualquer modo os principais. A nomenclatura binária condiz com a diferença entre a principalidade dos primeiros atos e a acessoriedade dos segundos.”[vi]6.

E segue dizendo que “antes de tudo, devem ser registrados, para se imporem ao respeito de terceiros, os direitos de propriedade, visto ser esta o máximo dos direitos reais, pressupostos dos demais, que, para se distinguirem, são chamados de limitados. A propriedade tem primazia, ‘até pela razão da grandeza jurídica do direito de domínio, que está para os outros direitos reais, como o todo está para as suas partes, como a unidade para as frações’.”[vii]7 (grifou-se).

Assim, como notório, os negócios jurídicos que envolvem a transferência do direito de propriedade, em princípio, devem ser registrados e suas eventuais modificações averbadas, apesar da Lei Federal nº 6.015/1973 não estabelecer critérios tão rígidos por falta de coerência legislativa[viii]8.

Utiliza-se o mesmo fundamento legal (Lei Federal nº 6.404/1976, art. 234) para as sociedades por quotas de responsabilidade limitada, de forma supletiva, em razão do transcrito art. 18 do Decreto nº 3.708/1919. Ou seja, afora os atos de integralização de capital social - que devem ser registrados[ix]9 -, as referidas operações societárias de incorporação, fusão e cisão entre sociedades limitadas ingressam no fólio real por ato de averbação.

No entanto, necessário refletir se ainda é possível a aplicação da Lei das Sociedades Anônimas de modo supletivo, como autorizava o art. 18 do Decreto nº 3.708/1919, para os casos em que envolvam incorporação, fusão ou cisão de sociedades por quotas de responsabilidade limitada.

Sempre respeitados os entendimentos contrários, parece que a resposta deve ser negativa em razão do que estabelece o atual Código Civil.

O art. 1.053, do Código Civil de 2002 dispõe que: 

“A sociedade limitada rege-se, nas omissões deste Capítulo, pelas normas da sociedade simples.

Parágrafo único. O contrato social poderá prever a regência supletiva da sociedade limitada pelas normas da sociedade anônima.”

Não se pode admitir que as diversas matérias reguladas pelo Código Civil deixem de se correlacionar umas com as outras. É preciso pensar de modo uníssono. As regras de um Livro devem ser aplicadas, no que couber, aos demais que delas necessitem. A exemplo, se o preço estabelecido na compra e venda de bem imóvel for superior a 30 salários mínimos, a forma do instrumento deverá ser pública (artigos 108 e 481); a doação feita aos descendentes, ascendentes e ao cônjuge importa antecipação do que lhes couber na herança e há a obrigação da colação por ocasião da abertura da sucessão (artigos 544, 1.845, 1.846 e 2.002), dentre inúmeros outros.

Neste sentido, não se pode afastar a aplicação do regramento próprio que dispõe quanto à forma de aquisição da propriedade naquilo que for pertinente, por exemplo, ao direto de empresa.

Se o Código Civil de 2002 regulou exaustivamente o direito das sociedades, com exceção feita às anônimas que continuam regradas pela Lei Federal nº 6.404/1976, como dispõe o art. 1.089, o modo de se adquirir a propriedade deve ser observado também pelas pessoas jurídicas nele previstas, ou seja, transfere-se o direito real de propriedade, de acordo com o art. 1.245, “mediante registro do título translativo no Registro de Imóveis”.

Assim, não parece adequada a aplicação supletiva da Lei das Sociedades Anônimas como autorizava o citado art. 18 do Decreto 3.708/1919, vez que o Código Civil regulou inteiramente a matéria sobre direito de empresa, especialmente quanto às espécies de sociedades e respectivo regramento. Desta forma, com fundamento no princípio estabelecido no § 1º do art. 2º do Decreto-Lei nº 4.657/1942, o decreto das Sociedades Limitadas[x]10 está revogado. Até então, para a constituição e dissolução das sociedades limitadas aplicava-se, nas omissões do referido decreto, o Código Comercial, e, para as demais matérias, se omisso o contrato social, a Lei das Sociedades Anônimas[xi]11.

De acordo com os ensinamentos de Miguel Maria de Serpa Lopes, “pode-se dizer que a lei nova regula inteiramente a matéria da lei anterior quando, dispondo sobre os mesmos fatos ou idênticos institutos jurídicos, os abrange em sua complexidade”[xii]12. No mesmo sentido, Maria Helena Diniz afirma que a revogação tácita das leis ocorre “quando houver incompatibilidade entre a lei nova e a antiga, pelo fato de que a nova passa a regular parcial ou inteiramente a matéria tratada pela anterior, mesmo que nela não conste a expressão ‘revogam-se as disposições em contrário’, por ser supérflua e por estar proibida legalmente, nem se mencione expressamente a norma revogada. A revogação tácita ou indireta operar-se-á, portanto, por força de aplicação supletiva do art. 2º, § 1º, primeira parte, da referida Lei de Introdução do Código Civil quando a nova lei contiver algumas disposições incompatíveis com as da anterior, hipótese em que se terá derrogação, ou quando a novel norma reger inteiramente toda a matéria disciplinada pela lei anterior, tendo-se, então, a ab-rogação.”[xiii]13.

Fábio Ulhoa Coelho afirma que com o novo diploma legal “o regime disciplinar desse tipo societário é o do Código Civil, inclusive em matéria de constituição e dissolução (CC/ 2002, arts. 1.052 a 1.087). Quando omisso o Código Civil quanto a esse tipo societário, a disciplina supletiva poderá ser a da sociedade simples ou da anônima, dependendo da vontade dos sócios”[xiv]14.

Por ser a forma de aquisição da propriedade norma cogente ou de ordem pública, os sócios não podem decidir pela aplicação da Lei das Sociedades Anônimas[xv]15, nem deliberar modo diverso nos atos constitutivos, sob pena de nulidade do respectivo ato jurídico[xvi]16. Admitir o contrário é atribuir à manifestação da vontade autonomia que a lei expressamente limitou ou não concedeu.

Não há mais complexidade sobre qual diploma legal deverá ser aplicado para as sociedades limitadas. Aplica-se o novo Código Civil. E, como tal, todo e qualquer título que consubstancie a aquisição do direito de propriedade deve ser registrado no Fólio Real (de acordo com o termo utilizado pela lei civil - o melhor seria que o legislador tivesse encampado o conceito do termo inscrição indicado por Afrânio de Carvalho, para designar todo e qualquer “assento principal, seja transmissivo da propriedade, seja constitutivo de ônus real”[xvii]17. Contudo, não o fez).

Portanto, admitindo-se como revogado o Decreto nº 3.708/1919 (que sequer tratava sobre a forma de aquisição da propriedade) com o advento do novo Código Civil, na hipótese de ocorrer transferência de patrimônio imobiliário nas operações de incorporação, cisão ou fusão de sociedades limitadas, o documento hábil para ingressar no Registro Imobiliário será o correspondente ato societário passado pela Junta do Comércio[xviii]18, e o ato a ser praticado é o de registro[xix]19 e não de averbação, como outrora praticado com subsídio no Decreto nº 3.708/1919, não mais em vigor como referido, e na Lei das Sociedades Anônimas.

* Alexandre Laizo Clápis é Oficial Substituto do 13o Registro de Imóveis da Capital de São Paulo [email protected] 



[i][1]Fábio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial, vol. 2, Saraiva, 5ª edição, 2002, pág. 364.

[ii][2]Lei das Sociedades Anônimas, artigos 89 e 98, § 2º; Lei das Sociedades Mercantis, art. 64, e Lei de
Registros Públicos, art. 221.

[iii][3]Lei de Registros Públicos, art. 225, §§ 1º e 2º, Lei das Sociedades Anônimas, art. 98, § 3º, e Lei das
Sociedades Mercantis (Lei Federal nº 8.934/1994), art. 35, inciso VII, alínea a.

[iv][4]Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial 1996/0033496-0 de Minas Gerais, relatado pelo
Ministro Eduardo Ribeiro.

[v][5]Superior Tribunal de Justiça, Embargos de Divergência em Recurso Especial 2000/0052047-0 de
Minas Gerais, relatado pelo Ministro Ruy Rosado de Aguiar.

[vi][6]Registro de Imóveis, Forense, 4ª edição, 1998, pág. 117.

[vii][7]Afrânio de Carvalho, op. cit., pág. 83.

[viii][8]Narciso Orlandi Neto, Retificação do Registro de Imóveis, Juarez de Oliveira, 2ª edição, 1999, págs.
51 e 52.

[ix][9]Lei de Registros Públicos, art. 167, inciso I, número 32.

[x][10]Decreto nº 3.708, de 10 de janeiro de 1919.

[xi][11]Decreto nº 3.708, de 10 de janeiro de 1919, art. 18.

[xii][12]Miguel Maria de Serpa Lopes, Curso de Direito Civil, vol. I, Biblioteca Jurídica Freitas Bastos, 9ª edição, 2000, pág. 108.

[xiii][13]Maria Helena Diniz, Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada, Saraiva, 9ª edição, 2002, pág. 68.

[xiv][14]Op. cit., pág. 365.

[xv][15]Fabio Ulhoa Coelho, op. cit., pág. 366.

[xvi][16]Miguel Reale, Lições Preliminares de Direito, Saraiva, 25ª edição, 2000, pág. 131.

[xvii][17]Afrânio de Carvalho, op. cit., pág. 116.

[xviii][18]Lei das Sociedades Mercantis, artigos 35 e 64.

[xix][19]Código Civil de 2002, artigos 1.053, 1.245 e 2.033.



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