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O instrumento particular e o registro de imóveis - bis - João Pedro Lamana Paiva* - Tiago Machado Burtet**


Em atenção a diversos questionamentos de colegas, preocupados com as modificações introduzidas pelo Novo Código Civil, especialmente no tocante ao artigo 108, tem a presente exposição a finalidade de realizar uma simples exegese do dispositivo, conforme segue:  

Primeiramente, cabe esclarecer que a maioria das dúvidas tem por objeto a necessidade (ou não) de escritura pública (art. 1.417 do NCC) para a formalização da promessa de compra e venda de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no Brasil e, também, quanto ao aspecto do uso do salário mínimo como parâmetro para a verificação do instrumento correto a ser utilizado para um determinado negócio jurídico. Frise-se que a forma é um dos requisitos de validade do negócio jurídico (art. 104).  

Pois bem, o artigo 108 do Novo Código Civil assim estabelece: “Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País”. 

Tal dispositivo estabeleceu como regra geral a necessidade de um ato notarial para a alienação e/ou oneração de bens imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo do País. Ainda, previu duas exceções à regra geral: a primeira, relativa aos negócios de valor inferior ao previsto; a segunda relativa aos casos em que a lei expressamente reconhece a validade do instrumento particular, por força do enunciado não dispondo a lei em contrário. Assim, sumariamente, vale dizer que a forma particular somente será admitida quando a lei expressamente prever e quando o valor do negócio realizado for inferior ao definido pela norma (Código Civil).  

Ressalta-se, com isso, que os negócios realizados até o referido valor poderão ser celebrados por instrumento particular, sem exceção. Outrossim, para os atos de valor superior, dever-se-á verificar se há exceção à regra geral do artigo 108, pois, havendo, deverá ser aplicada a lei especial. É o que ocorre com a promessa de compra e venda (arts. 11 e 22, do Decreto-Lei nº 58/37; art. 32, §2º e 67, da Lei nº 4.591/64; art. 26, da Lei nº 6.766/79; e, art. 1.417, da Lei nº 10.406/02), com os contratos celebrados no âmbito do Sistema Financeiro da Habitação (§5º, do art. 61, da Lei nº 4.380/64), com a concessão de uso (§1º, do art. 7º, do Decreto-lei nº 271/67), com os contratos do Sistema Financeiro Imobiliário (art. 38, da Lei nº 9.514/97, alterado pela Medida Provisória nº 2.223/01) e com as certidões dos atos de constituição e de alteração de sociedades mercantis, passadas pelas Juntas Comerciais (arts. 53 e 64, da Lei nº 8.934/94). Assim, quando a lei for omissa quanto à forma, aplicar-se-á a regra geral.  

Quanto ao valor fixado pela norma, tem-se discutido se o artigo 108 é ou não inconstitucional, sob a alegação de que houve a vinculação vedada pelo artigo 7º, IV, da Carta Magna, ao salário mínimo. Nosso entendimento é de que o recente texto legal não realizou indexação ou vinculação alguma, tão-somente criando uma referência pela qual se possa cumprir a lei adequadamente, o que o artigo 134 do Código Civil de 1916 não conseguiu, sem repercussão alguma no negócio jurídico, mas sim, na sua forma de realização, que, para o legislador, deve conter um critério de estimação. 

Discute-se, também, qual o sentido da expressão valor prevista no artigo 108. Alguns juristas e colegas têm entendido que a estimação feita pela autoridade fazendária competente pela arrecadação do tributo incidente sobre o negócio é o que determinará a forma do ato a ser realizado. Porém, em sentido contrário, levando em consideração os princípios da boa-fé e da probidade, previstos no artigo 422 da Lei nº 10.406/02 e na presunção da legalidade e da não-simulação dos contratos, temos que o termo valor significa, para os negócios onerosos, aquele estabelecido e convencionado pelas partes na realização do negócio e, para os negócios gratuitos, aquele que se prestar para o cálculo do pagamento do imposto de transmissão. Também, adotando, por analogia, a norma estabelecida no artigo 2º, §2º, da Instrução Normativa SRF nº 324, de 28 de abril de 2003, que assim estabelece: “O valor da operação imobiliária será o informado pelas partes ou, na ausência deste, o valor que servir de base para o cálculo do Imposto de Transmissão de Bens Imóveis (ITBI)”. 

Desta forma, o valor que regerá a forma do ato será, na compra e venda, o estipulado pelas partes e, na doação, o que servir de base para a verificação do quantum do imposto a ser pago. 

Impõe-se, aqui, realizar um sucinto exame das espécies de instrumentos particulares que podem gerar direitos reais sobre coisas imóveis.  

Relativamente aos documentos passados pelas Juntas Comerciais, entende-se que o artigo 53 c/c o artigo 64, da Lei nº 8.934/94, estabeleceram a admissão de instrumento particular para os atos de alteração contratual de sociedade empresária, cujo capital social tenha sido integralizado por bem imóvel. Assim, não se admite a forma particular para a constituição de sociedade onde tenha sido prevista a integralização em bem imóvel, uma vez que a lei previu a espécie particular somente para as alterações. Também, não se admite o instrumento privado quando a alteração contratual envolver bem imóvel não integralizado no capital social, como por exemplo, a alteração contratual que estabeleça o pagamento da quota de um dos sócios retirante com imóvel que não integrou o capital social. Neste sentido, a Apelação Cível nº 75.582-0-SP e a Apelação Cível nº 63.971-0/1-SP estabelecem que o artigo 64 deve ser interpretado restritivamente. 

Quanto aos contratos celebrados no âmbito do Sistema Financeiro da Habitação e do Sistema Financeiro Imobiliário, pela clareza dos textos legais, não há maiores considerações a serem feitas, assim como não se vislumbra indagações relevantes que possam surgir do exame do Decreto-lei nº 271/67.  

Já no tocante à promessa de compra e venda, a dúvida levantada será quanto a necessidade ou não do registro para que o promitente comprador logre êxito na ação de adjudicação compulsória. É sabido que o Novo Código Civil veio para consolidar, em muitos casos, a jurisprudência dominante de nossos Tribunais. Porém, no caso do direito do promitente comprador, a recente legislação está em desconformidade com as decisões judiciais atinentes à matéria. Assim, questiona-se qual a real intenção do legislador contida no artigo 1.418, da Lei nº 10.406/02. Parece-nos que a jurisprudência adotada pelo STJ (RSTJ 32/308, 25/465, 29/356, 42/407, 28/419 e Súmulas 84 e 239), que não vinha admitindo as Súmulas 167 e 413 do STF, perdeu validade, pois o texto da lei civil é claro e reforçou o entendimento de que é necessário o registro da promessa de compra e venda para a procedência da ação de adjudicação.  

Assim, entende-se, s.m.j., que o legislador não adotou a interpretação dada pelo STJ e reforçou a idéia de que há a necessidade do registro da promessa para gerar um direito real. Com isso, o registro da promessa de compra e venda se torna um dos requisitos legais previstos para o êxito da demanda adjudicatória, no mesmo sentido em que é exigido o registro da compra e venda para a admissão das ações petitórias, a exemplo da reivindicatória. Contrario sensu, poder-se-ia dizer que foi suspenso o apotegma quem não registra não é dono. Portanto, se o legislador quisesse poderia ter inserido dispositivo que consagrasse a jurisprudência dominante, como o fez em diversos outros momentos no Novo Código Civil, mas não quanto ao direito real à aquisição do imóvel (é de se lembrar a premissa de que o legislador não edita leis inócuas). Tudo isso para preservar o princípio da segurança jurídica.  

Corroborando a idéia acima exposta, a expressão titular de direito real prevista no artigo 1.418 do Novo Código Civil, inserida entre vírgulas e, portanto, com idéia explicativa, que veio auxiliar a resolver o impasse e acabar com a discussão, uma vez que o direito real à aquisição do imóvel nasce com o registro. Portanto, enquanto não registrado o contrato de promessa de compra e venda o promitente comprador tem somente um direito obrigacional, que se resolve em perdas e danos, e não um direito real oponível a terceiros e passível de ensejar uma ação de adjudicação compulsória.  

Considera-se, a nosso critério, que as disposições acima referidas aplicam-se tanto para os imóveis loteados, quanto para os não-loteados, motivo pelo qual não competirá ao Registrador Imobiliário verificar se os contratos apresentados para registro provêm ou não de loteamento registrado (art. 167, I, 9, da Lei nº 6.015/73). 

A promessa de compra e venda é um contrato preliminar que atribui ao promitente comprador a perspectiva de proprietário, gerando ao promitente vendedor a obrigação de outorgar a escritura de compra e venda (contrato definitivo) quando do pagamento integral do preço. Assim, à promessa de compra e venda poderá ser aplicada, concomitantemente, a norma do parágrafo único do artigo 463, do Novo Código Civil, ao estabelecer que “o contrato preliminar deverá ser levado ao registro competente”.  Mais precisamente, tal dispositivo deverá reger a promessa de permuta (utilizada nas incorporações imobiliárias) e a promessa de dação em pagamento, pois não há previsão expressa de registro destes contratos. 

Por oportuno, ainda quanto ao direito do promitente comprador, agora inserido na legislação material como direito real, alerta-se os colegas Notários e Registradores que a cláusula de irretratabilidade é essencial para que o instrumento possa ser registrado.  

Embora não relacionado diretamente com o imóvel, mas determinando a competência territorial para o registro, verifica-se que os contratos de constituição de penhor rural, industrial e mercantil poderão ser formalizados, também, por instrumento público ou particular.  

Ainda, é de se ressaltar que a observância da forma é requisito de validade do ato, o qual gerará a nulidade do título na hipótese de inobservância da norma (art. 166, IV, do NCC), não gerando efeito algum e não ensejando a confirmação (art. 169), diferentemente da anulabilidade.  

Atentem-se, por relevante, à norma do artigo 170, que permite às partes que celebram um negócio jurídico nulo, embora com os requisitos de outro negócio, fazer com que este subsista, desde que a finalidade permita a suposição de que os contratantes queriam a realização deste, se houvessem previsto a nulidade. Poder-se-á aplicar este dispositivo, por exemplo, quando realizado um instrumento particular de compra e venda de valor superior ao valor previsto no artigo 108. Porém, a prova desta suposição deverá ser procedida em juízo, a quem competirá o reconhecimento dos efeitos gerados pelo contrato mal formulado, e não perante os Oficiais de Registro. 

Para não passar desapercebido, o artigo 108 previu a necessidade da escritura pública para a realização da renúncia de um direito real, a qual somente gerará efeitos após o registro na matrícula do imóvel, nos termos do parágrafo único do artigo 1.275. Antes, embora entendimento consolidado, não havia previsão expressa neste sentido. 

No tocante a necessidade ou não da presença de testemunhas no instrumento particular, entende-se que o artigo 221 da Lei dos Registros Públicos - por tratar de matéria específica - continua vigorando, e, conseqüentemente, mantém-se a obrigatoriedade para a formalização do ato. 

Finalmente, em virtude de que os Tabeliães são profissionais do Direito qualificados para interpretar, sanear e materializar a vontade das partes, eliminando defeitos que possam existir na relação negocial, para que esta surta seus efeitos dentro do plano da normalidade e da segurança jurídica almejada, o que, via de regra, não acontece nos negócios celebrados por instrumentos particulares, que são devolvidos diversas vezes às partes interessadas por não preencherem os requisitos legais, para complementação e/ou retificação, antes de alcançarem a aptidão necessária para a realização do registro ou de averbação (princípio da qualificação), recomenda-se o ato notarial para a realização de contratos envolvendo a transferência e alienação de direitos reais sobre imóveis. 

Diante do exposto acima, pode-se concluir o seguinte: 

Os instrumentos particulares aptos para ingressar no Registro de Imóveis são aqueles definidos expressamente em lei e aqueles cujo valor do negócio seja inferior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País; 

A promessa de compra e venda pode ser celebrada por instrumento particular, independentemente do valor pactuado, tanto para os imóveis loteados, quanto para os não-loteados; 

A expressão “valor” prevista no artigo 108, da Lei nº 10.406/02 refere-se, nos contratos onerosos, àquele estipulado pelas partes e, nos gratuitos, ao da avaliação da autoridade fazendária; 

Somente através do registro da promessa de compra e venda é que nasce o direito real à aquisição do imóvel (art. 1.417, do Novo Código Civil); 

O registro da promessa de compra e venda é um dos requisitos legais previstos para o êxito da ação de adjudicação compulsória (art. 1.418); 

É mister a inserção de cláusula de irretratabilidade e a presença de testemunhas no instrumento de promessa de compra e venda, para seu ingresso no Fólio Real. 

Sendo estas algumas considerações iniciais sobre o assunto, conclamamos a Classe Notarial e a Registral, além de outros estudiosos do Direito, para o estudo e o debate do tema, a fim de que possamos consolidar os entendimentos, gerando segurança aos Registradores, aos Notários, aos contratantes e à sociedade em geral. 

Sapucaia do Sul / maio / 2003. 

* João Pedro Lamana Paiva é Registrador e Tabelião de Protesto
** Tiago Machado Burtet é Registrador Substituto



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