BE1743

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Princípios da prioridade e da anterioridade
exceções no Registro de Imóveis
Mateus Colpo *


O interesse em abordar tema tão específico e raro na prática – as exceções –, nasceu quando da leitura de uma questão de prova de um importante concurso para provimento da vaga de Registrador Imobiliário em uma unidade da Federação.
 
A assertiva assim previa: “Não se registrarão no mesmo dia duas hipotecas constituídas sobre o mesmo imóvel, em favor de pessoas diversas, salvo se as escrituras, do mesmo dia, indicarem a hora em que foram lavradas”. No gabarito oficial, mesmo após os recursos administrativos possíveis, ela foi considerada correta pela banca examinadora.
 
Os princípios da prioridade e da anterioridade registrais podem ser considerados dois pilares do sistema registral imobiliário brasileiro. Poucas são as exceções a esses princípios. E, se houver, devem vir expressas em lei. Jamais são presumíveis.
 
A exceção àqueles princípios discutida nessas linhas é acerca da possibilidade de se inscreverem no mesmo dia dois títulos sobre o mesmo imóvel. É a chamada supremacia do direito pessoal sobre o direito real.
 
Segundo Erpen e Paiva o princípio da prioridade “confere ao primeiro que apresentar o título para registro/averbação, a preferência na realização do ato e, assim, a prioridade do direito real oponível erga omnes. Vale a máxima que diz: o direito não socorre quem dorme”. (2004, p.175).
 
O art. 1.494 do CC de 2002 prescreve: “Não se registrarão no mesmo dia duas hipotecas, ou uma hipoteca e outro direito real, sobre o mesmo imóvel, em favor de pessoas diversas, salvo se as escrituras, do mesmo dia, indicarem a hora em que foram lavradas”. Redação semelhante possuía o art. 836 do CC de 1916: “Não se inscreverão no mesmo dia duas hipotecas, ou uma hipoteca e outro direito real, sobre o mesmo imóvel, em favor de pessoas diversas, salvo determinando-se precisamente a hora, em que se lavrou cada uma das escrituras”.
 
A redação do art. 1.494 do atual código possui duas alterações em relação à redação do art. 836 do diploma de 1916: a primeira alteração foi a atualização da redação – substituiu a expressão “inscrição” por “registro”; a segunda exigiu que as escrituras fossem lavradas no mesmo dia. Mas esta inovação já estava consolidada na legislação específica de registros públicos, conforme se verá.
 
Os art. 207, 208 e 209 do Decreto 4.857 prescreviam: “Não serão registrados, no mesmo dia, direitos reais contraditórios sobre o mesmo imóvel, salvo se ambas as escrituras, do mesmo dia, determinarem a hora de sua lavratura, prevalecendo, neste caso, a que tiver sido lavrada em primeiro lugar, ou ficarão em pé de igualdade se coincidirem” (207). “Se as escrituras forem de dias diversos, prevalecerá quando apresentadas no mesmo dia a que primeiro foi lavrada; quando não, prevalecerá o dia da apresentação, salvo o caso do art. 206” (208). “Se forem do mesmo dia e sem referência a hora, a que for apresentada depois só será protocolada no dia imediato” (209).
 
O Decreto 4.857 já exigia que as escrituras devessem ser lavradas no mesmo dia. Portanto, o artigo 1.494 do código de 2002 apenas consolidou no seu texto uma disposição que há muito já figurava no ordenamento jurídico.
 
Em 31 de dezembro de 1973 foi publicada a Lei 6.015, que entrou em vigor em 1 de janeiro de 1976, revogando os dispositivos legais referidos – exceto o código civil de 1916 – e todas as disposições em contrário existentes no ordenamento.
 
Neste novo diploma, alguns artigos praticamente repetem o conteúdo existente em normas anteriores. Eis o conteúdo dos art. 190 e 191. “Não serão registrados, no mesmo dia, títulos pelos quais se constituam direitos reais contraditórios sobre o mesmo imóvel. (190) Prevalecerão, para efeito de prioridade de registro, quando apresentados no mesmo dia, os títulos prenotados no Protocolo sob número de ordem mais baixo, protelando-se o registro dos apresentados posteriormente, pelo prazo correspondente a, pelo menos, 1 (um) dia útil. (191)”.
 
No entanto, o artigo 192 da Lei 6.015 inovou em sua redação e trouxe um elemento até então não encontrado na legislação: “O disposto nos artigos 190 e 191 não se aplica às escrituras públicas, da mesma data e apresentadas no mesmo dia, que determinem, taxativamente, a hora da sua lavratura, prevalecendo, para efeito de prioridade, a que foi lavrada em primeiro lugar”. (grifo nosso).
 
A partir da introdução dessa norma, para que a preferência dos títulos possa ser invertida, é necessário, além dos requisitos já exigidos, que a apresentação das escrituras se dê no mesmo dia.
 
O código de 1916 continha regras gerais sobre registros públicos, entre as quais a exceção aos princípios da anterioridade e prioridade. Então, sobrevieram os Decretos de 1939 e 1949 e regularam a matéria, detalhando as disposições sobre registros públicos, inclusive a disposição prevista no artigo 836 do código de 1916. Não se tratou de revogação de um diploma por outro, mas sim de uma lei específica tratando e regulamentando detalhadamente uma disposição que já se encontrava no diploma anterior – código civil da 1916.
 
A partir da vigência dos Decretos referidos, o artigo 836 do código de 1916 deveria ser lido e interpretado em conjunto com as normas encontradas nesses diplomas. Em 1976 entrou em vigor a lei 6.015, que revogou todas as disposições anteriores que tratavam de registros públicos e as contrárias as suas disposições. Com o advento desta lei, o artigo 836 do código de 1916 deveria ser lido em conjunto com os artigos 190, 191 e, principalmente, o 192 da Lei 6.015.
 
Por fim, em 2002 foi publicado o atual código civil que revogou em grande parte o código de 1916.
 
Mas as leis esparsas, e, especialmente a lei de registros públicos de 1973, não foram revogadas, exceto naquilo que forem incompatíveis com ele. Mas em relação aos artigos 190, 191 e 192 não houve qualquer alteração ou incompatibilidade.
 
Então, a interpretação permaneceu: o código civil de 2002 trata de maneira geral sobre o assunto e coube a lei específica detalhar a matéria. É o caso de interpretação e conjugação das normas, pois uma regra é geral, a outra, específica.
 
Lopes, muito antes da Lei 6.015 já alertava que para que o sistema possa ser excepcionado, é necessária a simultaneidade da apresentação dos títulos. Conforme o autor: “Simultaneidade de apresentação – para que haja a aplicação, cumpre, finalmente, que a apresentação dos títulos se dê no mesmo dia. Depende dessa simultaneidade a própria essência dos direitos contraditórios e o funcionamento do seu mecanismo legal criado para solver o conflito de títulos. Se, embora de mesma data, ou de data anterior, ou mesmo posterior, um título for apresentado no dia anterior, já não há mais lugar para a aplicação do art. 207 [Dec. 4.857, de 09 de novembro de 1939], pois, em tal caso, desaparece a noção de direitos contraditórios, para dar lugar a de direitos opostos, embora originários do mesmo transmitente, porque a prenotação, feita antecedentemente, cria um estado preferencial contra o qual não cabe qualquer reclamação: prior in tempore potior in jure. É o que se deduz do art. 208, estabelecendo que se as escrituras forem de dias diversos, prevalecerá, quando apresentadas no mesmo dia, a que primeiro foi lavrada; quando não, prevalecerá o dia da apresentação, salvo o caso de segunda hipoteca, na forma prevista no art. 206”. (1962, p. 340).
 
A exceção ao sistema merece ser analisada de maneira profunda e cuidadosa. Para Ceneviva, o disposto no artigo 192 “é caso de preponderância do direito real sobre o pessoal”. (1988, p.414). No entanto, adverte o autor, “o dispositivo em exame contém exceção ao sistema, merece interpretação restritiva, exigindo atenta observância da forma prescrita”. (1988, p. 415).
 
Para Carvalho, “apesar da simplicidade com que se resolvem todos os conflitos à luz do princípio da prioridade, este recebeu no nosso direito o aditamento das disposições dos artigos 836 e 837 do Código Civil (1916), que redundam em soluções anômalas. Essas disposições ou são supérfluas, porque o princípio geral basta, ou quebram a sistemática dele resultante, por admitirem para determinar a prioridade um elemento estranho ao registro, a saber, o tempo em que foi lavrada a escritura”. (1976, p.198). Continua o autor a dizer que “de mais a mais, ainda que houvesse indicação das horas nas escrituras, revelar-se-ia, ao cabo de tudo, irrelevante, porquanto o registrador tem o dever de prenotar e inscrever os títulos à medida que se apresentam, de sorte que não poderia sustar a prenotação e inscrição de um deles diante da simples conjectura de que, em hora anterior à sua lavratura, na mesma data, houvesse sido lavrado outro em cartório diverso. Desta sorte, uma vez prenotada e inscrita a primeira escritura que se apresenta, se, no mesmo dia, for apresentada segunda sobre o mesmo imóvel, ainda que lavrada em hora anterior.” (CARVALHO, 1976, p.198-199).
 
Até o advento da lei 6.015 de 1976, o elemento simultaneidade (apresentadas no mesmo dia) não estava positivado no ordenamento, embora a doutrina mais especializada já o referendasse. Mas o artigo 192 dessa Lei introduziu o a simultaneidade, exigindo que as escrituras sejam apresentadas ao Ofício Imobiliário no mesmo dia.
 
Para Carvalho “na sucessividade da apresentação das escrituras ao protocolo não é possível, portanto, levar em consideração o tempo em que foram lavradas, seja a data seja a hora, como cada qual chega se sua vez e há de ser imediatamente protocolada e em seguida inscrita. Na simultaneidade da apresentação, hipótese talvez teórica, quando deixa de estar em causa o princípio de prioridade registral, aí, sim, é que se torna viável recorrer a prioridade obrigacional, levando em conta seja a data seja a hora para determinar a qual delas será dada preferência no registro”. (1976, p.199).
 
Por fim, para excepcionar o princípio da prioridade e da anterioridade é necessário a conjugação de vários elementos: escrituras públicas + a indicação da hora em todas + lavradas na mesma data + apresentadas no mesmo dia ao registro imobiliário correspondente. Sem a conjugação de todos esses elementos, e em especial, a apresentação no mesmo dia, aquela exceção não se aplica.
 
Diante do exposto, a questão alhures referida deveria ser considerada incorreta pela banca examinadora, pois para que a exceção seja viável, é fundamental a inclusão da circunstância de as escrituras serem apresentadas no mesmo dia, o que não constou.
 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
 
CARVALHO, Afranio de. REGISTRO DE IMÓVEIS. Comentários ao sistema de registro em face da Lei nº 6.015, de 1973, com as alterações da Lei nº 6.216, de 1975. Forense: Rio de Janeiro, 1976.
 
CENEVIVA, Walter. LEI DOS REGISTROS PÚBLICOS COMENTADA. 6ª ed. rev. e atua., Saraiva: São Paulo, 1988.
 
LOPES, Miguel Maria de Serpa. TRATADO DOS REGISTROS PÚBLICOS, em comentário ao Dec. N. 4.857, de 09 de novembro de 1939 e legislação posterior em conexão com o direito privado brasileiro. v. IV, 5ª ed. Livraria Freitas Bastos S.A.: São Paulo e Rio de Janeiro, 1962.
 
ERPEN, Décio Antonio e PAIVA, João Pedro Lamana. Princípios do Registro Imobiliário Formal. p.169-184. Introdução ao Direito Notarial e Registral. Coordenador: Ricardo Dip. Safe. Sergio Antonio Fabris Editor: Porto Alegre, 2004.
 
* Mateus Colpo é Tabelião-Substituto de Santa Bárbara do Sul (RS), Especialista em Direito Privado e Especializando em Direito Notarial e Registral



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