BE2621

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Fideicomisso
Robson de Alvarenga*


1. Conceito.

A etimologia de fideicomisso está associada à expressão romana fidei tua comitto, o que bem evidencia o caráter fiduciário da substituição fideicomissária, inserindo-se no ordenamento jurídico como forma excepcional de nomeação sucessiva de herdeiros ou legatários.

Não se confundindo com a substituição vulgar (simples, coletiva ou recíproca), em que ocorre uma única transmissão, beneficiando ou os primeiros nomeados ou os seus substitutos, o fideicomisso implica dupla transmissão hereditária: primeiro, ao fiduciário; e, depois, ao fideicomissário. Havendo combinação de substituições vulgar e fideicomissária, dá-se a chamada substituição compendiosa.

Robson de Alvarenga em aula proferida no II Educartorio, Lins, São Paulo em 10/7/2006

Ressalte-se, desde logo, que a lei veda peremptoriamente a instituição de fideicomisso “além do segundo grau” (CC, art. 1.959), o que permite afirmar que serão sempre três as posições jurídicas decorrentes do fideicomisso: o fideicomitente (testador), o fiduciário (que sucede em primeiro lugar) e o fideicomissário (que recebe a herança ou o legado por último).

O fideicomisso somente pode ser instituído por testamento, adotada qualquer de suas formas legais. Desde que respeitada a legítima dos herdeiros necessários (sobre a qual não pode incidir, sob pena de nulidade), admite-se o fideicomisso de herança ou legado, podendo recair sobre móveis ou imóveis.

2. Do fiduciário e do fideicomissário.

Poderá ocupar a posição de fiduciário qualquer pessoa, física ou jurídica, legalmente apta e legitimada a suceder (CC, arts. 1.798 e 1.799), aplicando-se-lhes, portanto, os impedimentos referidos no art. 1.801 do CC. Cabe salientar, contudo, que a nomeação de pessoa física ainda não concebida para ocupar a posição de fiduciário mostra-se manifestamente contrária à mens legis do instituto, devendo ser repelida.

No que se refere ao fideicomissário, o atual CC restringiu consideravelmente o alcance do instituto, estabelecendo que apenas a prole eventual de pessoa viva poderá ser favorecida pela substituição fideicomissária (CC, art. 1.952). Impõe-se considerar, ademais, que a capacidade e legitimação da prole eventual para suceder, na conformidade do § 4° do art. 1.800 do CC, depende fundamentalmente do seu efetivo nascimento no prazo de 2 anos, contados da abertura da sucessão.

Consigne-se, a propósito, com a devida vênia dos posicionamentos divergentes (v.g., Venosa), que o prazo de dois anos acima referido é improrrogável, daí decorrendo a afirmação de que, se o fideicomissário não nascer no prazo referido, caduca a disposição, salvo se houver o testador indicado substituto simples (prole eventual de outra pessoa) para ocupar a posição de fideicomissário.

A ressalva contida na norma ora em análise (“salvo disposição em contrário do testador”) não torna admissível a ampliação do prazo de dois anos por vontade do testador, permitindo apenas, como já referido, a nomeação de substituto simples para ocupar a posição de fideicomissário, devendo esse substituto ser concebido naquele mesmo prazo de dois anos, igualmente sob pena de caducidade.

Importa frisar que a natureza cogente dessa norma resulta do interesse público de evitar o inconveniente consistente na manutenção da propriedade sob condição resolutiva por longos anos, aguardando-se a incerta concepção do fideicomissário, estando, portanto, superada a antiga crítica ao instituto do fideicomisso, baseada na alegação de insegurança jurídica proveniente da sistemática legal prevista no Código Civil de 1916.

3. Características. Utilidade. Inalienabilidade e sub-rogação. Responsabilidade.

Com a abertura da sucessão, transmitem-se simultaneamente ao fiduciário e ao fideicomissário direitos sobre os bens fideicomitidos. A diferença fundamental está em que o primeiro recebe, desde logo, a propriedade da herança ou legado, embora restrita e resolúvel (vale dizer, submetida a condição ou termo resolutivos - CC, arts. 1.953); já o fideicomissário recebe mero direito eventual sobre tais bens (isto é, sujeito a termo ou condição suspensiva). Daí por que, resolvida a propriedade do fiduciário, ele apenas “passa” materialmente os bens ao fideicomissário, que os recebe juridicamente do próprio testador.

A utilidade do fideicomisso está em permitir a atribuição de bens à prole eventual de pessoa a quem o testador não quer beneficiar diretamente, evitando-se, ademais, os inconvenientes da administração provisória da herança ou legado. A par disso, possibilita o favorecimento, provisório ou definitivo, de pessoa diversa (fiduciário) indicada pelo próprio testador.

Enquanto figurar como proprietário, o fiduciário passa a exercer todos os poderes inerentes ao domínio, podendo alienar ou onerar os bens, salvo se houver cláusula proibitiva. Contudo, seus atos de disposição (e mesmo a locação) são também resolúveis (CC, art. 1.359), podendo o fideicomissário reivindicar os bens de quem estiver na sua posse (direito de seqüela). O fiduciário é obrigado a proceder ao inventário dos bens e a prestar caução se for exigido, sem o que não poderá entrar na posse dos bens. Tem-se admitido, entretanto, o fideicomisso residual, que recai apenas sobre os bens que não forem alienados pelo fiduciário.

Havendo cláusula de inalienabilidade, surge a controvérsia doutrinária sobre a possibilidade de sub-rogação dos bens fideicomitidos. Embora não seja a orientação prevalecente, parece razoável sustentar que, afora as hipóteses de bens fungíveis, não há como transferir o vínculo do fideicomisso para bens que nunca integraram o patrimônio do testador (princípio da continuidade registral), devendo o fiduciário renunciar ao fideicomisso caso não esteja satisfeito com a herança. Ressalte-se, porém, que a jurisprudência tem entendido que a cláusula de inalienabilidade subsiste ainda quando consolidada a propriedade na pessoa do fiduciário, impondo-se admitir, em tal caso, a sub-rogação, que é prerrogativa do proprietário definitivo do bem.

O fiduciário tem o dever de zelar pelos bens fideicomitidos como um bonus pater familias, em atenção aos princípios da probidade e da boa-fé objetiva. Responderá, por culpa ou dolo, pela deterioração dos bens ou por danos que excedam o mero desgaste pelo uso normal. Advindo o termo o condição, deverá passar os bens ao fideicomissário com todos os acréscimos feitos, sem que se possa cogitar de indenização ou retenção por benfeitorias, podendo, no entanto, levantar as voluptuárias.

4. Fideicomisso por ato entre vivos

A antiga polêmica sobre a admissibilidade do fideicomisso por ato entre vivos encontra-se atualmente superada.

Considere-se, de um lado, que o art. 1.952 do CC somente permite a substituição fideicomissária em favor da prole eventual de pessoa viva. De outro lado, o art. 547 do CC, ao tratar da doação, repetiu a regra que permite a doação resolúvel em favor do doador, mas inovou o sistema anterior, vedando expressamente a cláusula de reversão em favor de terceiro (parágrafo único).

Conclui-se, por conseguinte, não ser mais juridicamente possível a instituição de fideicomisso por ato inter vivos.

Discute-se, então, se seria admissível o preestabelecimento, pelo doador, de uma segunda doação, concomitantemente à primeira, mas sujeita a condição suspensiva, dependendo sua eficácia da sobrevivência do doador ao donatário. Tal hipótese, evidentemente, não se confunde com o fideicomisso, porquanto ausente a cláusula de reversão em favor de terceiro, sendo nítida a existência de dois negócios autônomos (com incidência de dupla tributação). Todavia, a objeção que se levanta é que tal ajuste envolveria, na verdade, promessa de doação.

5. Extinção, caducidade e renúncia

A forma normal de extinção do fideicomisso se dá com a superveniência da morte do fiduciário ou do advento da condição ou termo resolutivos estabelecidos pelo testador, resolvendo-se, então, a propriedade em favor do fideicomissário. No entanto, se o fiduciário renunciar a herança, morrer anteriormente à abertura da sucessão ou dela for excluído, os bens serão transferidos diretamente ao fideicomissário, salvo se houver disposição contrária do testador, observado o direito de acrescer (CC, art. 1.956). De igual modo, caduca o fideicomisso se a prole eventual não nascer no prazo legal, se o fideicomissário renunciar a herança ou se morrer antes do advento do termo ou da condição estabelecidos, consolidando-se, então, a propriedade em favor do fiduciário.

Cuidando-se de imóvel, a despeito da crítica de parte da doutrina, a constituição do fideicomisso decorre de averbação na matrícula imobiliária (Lei n° 6.015/73, art. 167, II, 11), cujo cancelamento não depende necessariamente de intervenção judicial (v.g., nos casos de morte do fiduciário, advento do termo e renúncia por meio de instrumento público).

Relevante observar que se, ao tempo da morte do testador, já houver nascido o fideicomissário, o fideicomisso converter-se-á em usufruto (CC, art. 1.952, parágrafo único). Caberia, então, indagar como ficaria a situação do fideicomissário já concebido (mas ainda não nascido) ao tempo da morte do testador. Entendemos que o referido dispositivo comporta interpretação extensiva, de modo a abranger também a hipótese de já estar concebido o fideicomissário ao tempo da morte do testador, caso em que o nascituro teria assegurado o direito de propriedade sobre o bem, cabendo ao fiduciário apenas o direito real de usufruto. Sem embargo, sobrevindo a morte do nascituro antes de seu nascimento, não haveria como negar a ocorrência de consolidação da propriedade em favor do fiduciário, caducando o fideicomisso, nos termos do art. 1.958 do CC.

*Robson de Alvarenga é Tabelião em Buritama, São Paulo



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