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ENR – Escola Nacional de Registradores


Por ocasião do Curso de Direitos Reais e Sistemas Registrais, realizado na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra entre os dias 16 e 21 de janeiro do corrente ano, o registrador paulistano e Presidente do Irib, Sérgio Jacomino, entrevistou a professora Dra. Mónica Jardim. Conhecida especialista em direito registral e civil, Mónica respondeu às provocações e expôs, com clareza e elegância, sua opinião sobre os sistemas registrais da Europa, enfocando, especialmente, o sistema português e o brasileiro. Vale a pena conferir suas respostas.

A chave para o desenvolvimento econômico e social: segurança jurídica. “Sem segurança não há direito nem bom, nem mau”.

Sérgio Jacomino: Para quem estudou minuciosamente o direito comparado é possível que a Sra. Tenha formado um painel muito rico e abrangente das várias experiências na organização dos registros mundo afora. Nesse caso, seria possível cogitar de um "pan-direito" registral? Ou por outra: a engenharia jurídico-econômica poderia conceber uma teoria de registros jurídicos internacional?

Mónica Jardim: Atualmente, o desejado incremento, ou ao menos facilitação, dos negócios imobiliários transfronteiriços é confrontado com uma pluralidade heterogénea de sistemas de proteção, e é cada vez mais notória a necessidade de facilitar as transações transfronteiriças e de dotar os adquirentes de uma proteção homogénea.

Recordo que a Comissão Econômica para a Europa da Organização das Nações Unidas, já abordou a unificação da publicidade imobiliária e, em 1999, nas conclusões e recomendações adotadas, afirmou:

a) Os Estados devem criar os meios para que a lei facilite a existência não só de um mercado imobiliário, mas também de um mercado hipotecário.
b) Os registros favorecem o desenvolvimento do mercado imobiliário e reduzem os custos de transação.
c) A lei deve garantir os direitos inscritos no registro, para dar confiança ao mercado e dar segurança aos cidadãos no desfrute dos seus direitos.
d) É o Estado que deve garantir os direitos imobiliários. O seguro de títulos é geralmente mais caro, e supérfluo quando existe um registro e este funciona corretamente.
e) Deve ser elaborada uma legislação-tipo sobre a publicidade imobiliária, com a finalidade de que seja adotada pelos Estados membros atuais e potenciais da União Européia.

A nível Europeu, mesmo entre aqueles que vêm com ceticismo a projetada codificação européia, existe quem, como Herbert Kronke (Secretário-Geral da UNIDROIT), já tenha afirmado: “o mercado imobiliário, apesar da inamovibilidade dos bens que tem por objeto, não é local ou nacional (…), é, não só europeu, mas mundial. E, por isso, instituições como o registro da propriedade, se houvesse competência para tal, deviam ser tomadas em consideração para efeitos de uma regulamentação européia.

Pois bem, na minha perspectiva, parece-me prematuro tentar elaborar já um único direito registral, mas considero que os diversos legisladores nacionais deveriam empenhar-se em dar início a certa unificação jurídica, adotando algumas regras comuns. Por um lado, como comecei por referir, porque tal unificação se revela, atualmente, imprescindível. Por outro, porque o sistema registral de um país não é uma instituição natural, é uma instituição artificial, criada para atingir determinados fins no tráfico jurídico. A sua razão de ser está na utilidade efetiva que presta à economia e à sociedade do país, conseqüentemente as suas regras podem ser substituídas por outras que se revelem mais eficazes para conseguir as mesmas finalidades. O objetivo de todos os sistemas registrais é o mesmo - a segurança jurídica do tráfico imobiliário -, e as normas que suponham um impulso tendente a atingir tal objetivo podem ser aproveitas pelos diversos ordenamentos jurídicos nacionais.

Assim sendo, seguindo António Pau, considero que os diversos legisladores deveriam começar por adotar medidas que lhes permitissem consagrar três regras básicas:

1 - A máxima proteção ao terceiro de boa fé - que supõe a inoponibilidade e a oponibilidade, atendendo estritamente ao conteúdo do registro.

A superioridade de um sistema de máxima proteção do terceiro sobre um sistema de proteção mínima – onde o terceiro apenas está garantido quanto a inoponibilidade dos direitos não registrados, e quanto à oponibilidade dos direitos inscritos, mas não necessariamente nos termos em que estão inscritos - foi posto em relevo no documento Diretriz sobre a Administração do Território, da Comissão para a Europa das Nações Unidas, ao considerar que o sistema ideal de registro deve consagrar o princípio do espelho, o princípio da cortina e o princípio da garantia (the mirror principle, the curtain principle, the insurance principle), segundo os quais, respectivamente, o registro deve refletir fielmente a realidade, deve bastar a consulta do registro (sem necessidade de fazer averiguações extraregistrais) e o registro deve garantir a exatidão do que publica.

2 - O controle pleno da legalidade dos títulos suscetíveis de serem inscritos.

É evidente que a máxima proteção não pode ser consagrada enquanto os registradores não controlarem a legalidade formal e substancial dos títulos que lhes são apresentados. Porque assim é, as legislações que ainda não atribuem tal poder de controle ao registrador devem passar a atribuí-lo.

3 - O mínimo custo.

O sistema registral, como é evidente, impõe um custo ao titular - para conservar o seu direito - e um custo ao terceiro - para obter informações sobre o imóvel que pretende adquirir. O custo que pesa sobre o titular é o da inscrição; o custo que pesa sobre o terceiro é o que tem de pagar para obter informações junto do registro.

Pois bem, há que assegurar que tal custo seja o mínimo, como forma de obstar a que o particular recorra ao seguro de títulos, que nunca lhe fornece a proteção máxima no âmbito da segurança jurídica.

Cumpre destacar que um sistema de máxima proteção do terceiro é mais barato que um sistema de proteção mínima. A razão é clara: se a proteção registral não é completa, tem de completar-se com um seguro que garanta a recuperação do preço pago no negócio inseguro. Ao invés, o seguro de títulos é supérfluo quando existe um registro que funciona corretamente.

Quanto aos custos registrais aEconomic Commission for Europe, Social and economics benefits of good land administration já afirmou que “os poderes públicos devem garantir que os direitos legalmente previstos não sejam demasiado elevados, ao ponto de desincentivar o mercado imobiliário; o sistema registral deve auto financiar-se e custear-se pelos usuários; e os valores pagos pelos particulares só podem ser destinados a cobrir a instalação e funcionamento do registro, mas não outras funções do Estado ou outros gastos públicos.

Última floração da vetusta Universidade, o direito registral ganha espaço e importância- CeNoR – sala na FD-UC.

SJ: Os países em desenvolvimento têm procurado apoio nas experiências de países que têm um registro organizado. O registro é verdadeiramente importante para o desenvolvimento sócio-econômico?

MJ: A certeza e a segurança constituem necessidades fundamentais do indivíduo dentro dos ordenamentos jurídicos, não só quanto à elaboração e formulação das normas que constituem o direito objetivo, mas também quanto às relações concretas e situações subjetivas de que a pessoa é titular, consideradas no duplo aspecto de fato e de direito.Sem segurança não há direito nem bom nem mau. O ordenamento jurídico tem como uma das suas missões específicas combater a incerteza e a insegurança, dever que cumpre de duas formas:a posteriori, através do processo, resolvendo a incerteza atual; ea priori, ou preventivamente, evitando a incerteza futura, procurando dar certeza e segurança às situações e às relações concretas intersubjetivas, criando meios e instrumentos aptos a produzir tal certeza e segurança, colocando-os à disposição dos particulares.

A atividade registral situa-se no segundo destes planos, uma vez que tem por finalidades:

- a segurança jurídica dos direitos e a proteção do tráfico;
- o fomento do crédito territorial;
- a agilização das transacções imobiliárias – ao tornar desnecessária, com a garantia que supõe a consulta de um Registro público dotado do princípio do trato sucessivo, as complicadas indagações sobre a titularidade dos direitos que, noutro caso, se teriam de realizar –;
- o evitar a usura e as fraudes;
- etc.

Em resumo, a atividade registral gera segurança jurídica preventiva, garante a justiça, assegura a liberdade, conseqüentemente, evita demandas judiciais e propende para a paz social.

Não há, assim, como negar a importância do registro no desenvolvimento sócio-econômico de um país, sobretudo em face da atual aceleração da vida econômica a nível mundial.

SJ: A inexistência de registros dotados do efeito de fé pública em sentido positivo, ou proteção máxima do terceiro de boa fé, em alguns países da EU, é uma exceção que comprova a regra?

MJ: Se pensarmos nas origens dos diversos sistemas de registro existentes na Europa, a existência de registros não dotados de fé pública não pode ser vista como uma exceção. De fato, quando nos reportamos a essa época, torna-se claro que o registro de um dado país ou se integrava no chamado sistema latino – desprovido de fé pública em sentido positivo – ou se integrava no chamado sistema germânico. Os dois sistemas surgiram lado a lado, não havendo predomínio de um sobre o outro do ponto de vista dos países que a eles aderiram.

Atualmente, os sistemas registrais não existem de modo puro em praticamente nenhum lugar do mundo. O que encontramos são sistemas em transição. O que outrora foram modelos puros, hoje estão em fase de evolução. Por isso, hoje, apenas podemos falar de famílias dentro das quais encontramos sistemas com um tronco comum mas com características mais ou menos distintas. Não obstante, vários sistemas registrais europeus continuam integrados na “família latina”, não consagrando a fé pública registral em sentido positivo. É o que acontece com a França, a Bélgica, Luxemburgo, Itália e Portugal.

SJ: Na sua opinião o que deve conter um sistema para que possa ser considerado um bom sistema registral?

MJ: Creio já ter respondido a esta questão quando respondi à primeira. Um sistema registral deve fornecer ao terceiro que nele confia plena proteção. Ou seja, o registro deve funcionar como um crivo por onde só passem títulos válidos mas, uma vez registrados os títulos, mesmo que inválidos, o terceiro há de estar seguro de que efetivamente adquiriu o direito. Porque o registro deve expurgar, para o terceiro, os eventuais vícios que o título contenha.

Os sistemas de proteção máxima são, sem dúvida, os melhores sistemas. No entanto, nos países onde não está consagrada a fé pública, considero que a máxima proteção não pode ser concedida ao terceiro sem que previamente sejam eliminadas as fraquezas que se reconheçam ao sistema registral (p. ex. ausência de um bom sistema de georreferenciamento; duplicação de prédios; facilidade em obter a primeira inscrição de forma fraudulenta; etc). E caso nem todas as fraquezas possam ser eliminadas, terão de ser consagradas normas que limitem o funcionamento da fé pública. Sem estes cuidados prévios, ao registrador não pode ser imposto o dever de indenizar aquele que for privado do seu direito, conseqüentemente, este acabará por se ver “expropriado”, a favor do terceiro de boa fé, sem direito a qualquer indenização. O que, obviamente, não é aceitável.

SJ: O sistema registral brasileiro pode ser considerado um bom sistema em comparação com outras experiências? O sistema português é adequado às necessidades sócio-econômicas da sociedade?

MJ: Quer o sistema registral brasileiro, quer o português, são bons sistemas quando comparados com outros. Ambos são de fólio real, consagram princípios como o da legalidade e do trato sucessivo, e geram a presunção da existência e da titularidade do direito. Mas nenhum deles consagra o princípio da fé pública em sentido positivo e nessa medida não satisfazem plenamente as necessidades sócio-econômicas existentes.

SJ: Se pudesse modificar o sistema registral brasileiro, onde tocaria? E no direito português?

MJ: Depois de eliminar as fraquezas de cada um dos sistemas, consagraria o princípio da fé pública registral, introduzindo-lhe excepções e um prazo de suspensão de eficácia para a hipótese da primeira inscrição, compatibilizando-o com o instituto da usucapião, etc.

”A Cabra” e a Torre da UC, que reluz ao cair da tarde (Foto: KPTK).

SJ: Temas como direito urbanístico, ambiental têm invadido o cenário acadêmico registral. Gostaria que comentasse.

MJ: Esses temas começaram por invadir os direitos reais. E, sabendo nós que os sistemas registrais são os instrumentos jurídicos que permitem concretizar as características predominantes dos direitos reais e, além disso, publicitá-los, hierarquizá-los e torná-los eficazes perante todos, era inevitável que tais temas também acabassem por invadir o direito registral. Penso, inclusive, que alguns sistemas registrais, nomeadamente o português, devem repensar a forma como se procede à descrição (matrícula) dos prédios, por forma a terem em conta restrições de índole urbanística e ambiental. Nomeadamente, na minha opinião, tal como na descrição consta a área de um prédio, também devia constar se o referido prédio se encontra em área de reserva agrícola, ecológica, etc., só assim se forneceria ao adquirente toda a informação de que necessita antes de celebrar o negócio jurídico.

SJ: O fato de se constituir um Centro de Estudos de direito notarial e registral na tradicional Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra traduz um crescimento de interesse por essas matérias?

MJ: É evidente que sim. Há uns anos atrás, exceção feita aos registradores e notários, praticamente ninguém se dedicava ao estudo destas matérias em Portugal. Posteriormente, as faculdades começaram a introduzir no programa da disciplina de Direitos Reais alguns aspectos de direito notarial e de direito registral. A criação do CENoR (Centro de Estudos Notariais e Registrais), em 2004, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, ocorreu, por um lado, para dar resposta a uma necessidade sentida pela comunidade jurídica portuguesa e, por outro, para incentivar o gosto e o estudo destas matérias, que quanto mais e melhor se estudam, mais clara se torna a sua importância e a sua complexidade.

Organização:

Irib
Serjus
Puc Minas Virtual
Cenor
Universidade de Coimbra



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