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Processo e registro: o que muda com a lei 11.382/06
Petrônio Calmon*


Palestra apresentada pelo processualista Petrônio Calmon, no XXXIV Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil, no dia 25 de setembro, no hotel Majestic Palace, em Florianópolis, SC

Histórico do processo

O direito processual está supervalorizado em todo o mundo. Ele se tornou algo muito maior do que deveria ser. Parece que é da natureza humana complicar as coisas, e o direito processual é o melhor instrumento que existe para enrolar as coisas, para não se chegar a um fim, que é fazer justiça.

O direito civil existe desde o início da humanidade, mas o direito processual é muito novo, existe há 150 anos, nasceu como ciência em 1850 com as discussões dos alemães romanistas. Na tentativa de se auto-afirmar, ele se agigantou. As pessoas que fizeram o direito processual tiveram a capacidade de agigantar essa ciência, os primeiros alemães romanistas bem como os italianos como Enrico Tullio Liebman, que veio morar no Brasil e trouxe toda essa cultura italiana e alemã sobre o direito processual.

Nós herdamos tudo isso. Estávamos vivendo uma época de códigos de processo em cada estado. O Brasil não nasceu com seu Código de Processo Civil unificado, pelo contrário, nossa República era frágil e tudo era centralizado. No afã de centralizar e construir uma República federativa, começamos a ter códigos em cada estado. Somente em 1939 começamos a construir um código único para o Brasil, exatamente quando Enrico Tullio Liebman chegou ao Brasil e trouxe novidades.

Esse Código de Processo Civil não é de 1973 como pensamos, mas da década de 1950, uma vez que foi entregue pelo professor Alfredo Buzaid, fundador do Instituto que aqui represento, ao governo Jânio Quadros, em 1961, evidentemente refletindo o Brasil de 1950, a ciência processual de 1950.

Duas coisas mudaram radicalmente.

O direito processual que temos no CPC, salvo as reformas efetuadas desde 1990, é o direito processual que reflete o desenvolvimento da ciência processual civil de 1939 a 1961, período em que foi se desenvolvendo e amadurecendo no seio da chamada escola processual paulista. Portanto, estamos vivendo hoje a ciência do direito processual de 1940 a 1960.

Era preciso dar respostas ao Brasil de 1940 a 1960, onde 75% da população viviam em área rural, um Brasil que não tinha a multiplicação de residências sobre o mesmo terreno, que tinha uma diferença de renda monstruosa, um país cuja população negra ainda lembrava a escravidão, um país que não tinha uma fábrica de automóvel, que estava inaugurando uma prospecção de petróleo e, portanto, não tinha desenvolvido as indústrias decorrentes do petróleo. Esse é o direito processual que ainda temos no nosso Código de Processo Civil.

Qual é a ideologia desse CPC? É montado sobre que tipo de pensamento? É preciso buscar a ideologia do Código e não mais ter essa visão infantil de que processo é técnica, porque o que tem de técnica no processo tem de serviço à ideologia.

Lei 11.232

Para dar um exemplo, muitos falam em processo sincrético. Não gosto muito dessa expressão, sobretudo se utilizada sob o ponto de vista de que, agora, com a lei 11.232, isso aconteceu.

No Brasil, sempre tivemos cumprimento de sentença sem um novo processo de execução. É claro que tínhamos apenas aquilo que interessava ao poder dominante, ao poder dos grandes e ricos proprietários. Sempre tivemos uma exceção à regra de que, primeiro, se faz um processo de conhecimento, depois, o sistema recursal e, mais depois, inaugura-se uma execução.

Sempre foi assim, por exemplo, nas ações possessórias, em que se podia propor uma demanda, e a parte obter a expulsão de alguém da residência numa reintegração de posse. Isso não aconteceu só agora, com a lei 11.232. O que aconteceu, talvez, com mais ênfase foi a lei que criou a antecipação de tutela, que tirou dos procedimentos especiais e levou para todo e qualquer procedimento ordinário a possibilidade de uma medida liminar, não necessariamente cautelar, como a do inciso II do artigo 273, segundo o qual, basta ao juiz ver uma defesa manifestamente protelatória, no chamado abuso do direito de defesa, para já conceder. Isso nada mais é do que o procedimento judicial de sempre com as ações possessórias.

Essa decisão tem ou tinha caráter precário, é verdade, uma vez que a lei 10.444 de 2001, passou despercebida por muitas pessoas. Ela nos deu a possibilidade de uma execução provisória que, de provisória, só mantém o nome, uma vez que se tornou execução definitiva.

O artigo 273 do CPC diz que a tutela antecipada deve ser cumprida de acordo com o artigo 475-O, que normatiza o procedimento da execução provisória ao dispor que o bem poderá ser alienado e entregue o dinheiro ao credor. Com isso ficou completa a questão que faltava, a obrigação de pagar, mas a obrigação de fazer, a obrigação de não fazer e a de entregar a coisa já existem desde a modificação do artigo 461, em 1994, e do artigo 461-A, em 2001.

Há um sistema complexo que faz com que as coisas não sejam mais como eram. É verdade que temos uma colcha de retalhos. Fabricam-se leis todos os dias, mesmo assim as pessoas me perguntam qual será a próxima lei. Mas nada disso aconteceu por acaso. Essas reformas fazem parte de uma questão ideológica, de um pensamento único sobre como deve ser o processo de hoje, qual é a ciência processual de hoje e qual é o Brasil de hoje e do que ele necessita.

Ainda para falar dessa questão ideológica do processo, o que é e o que foi, devo falar de um dado importantíssimo. Até 24 de junho de 2006, tínhamos no Brasil uma execução única tanto para título executivo extrajudicial quanto para sentença judicial ou arbitral. Agora, existem no Brasil as execuções separadas. Esse peso é enorme e nossa mente ainda não está acostumada a entender as coisas dentro dessa modificação. Para entender isso, é preciso recordar algumas coisas.

A lei 11.232 tem como fundamento o trabalho de concurso para professor titular da Universidade Federal de Minas Gerais do professor Humberto Theodoro Jr., de 1987. Esse estudo está assentado, historicamente, no Processo de Execução, de Enrico Tullio Liebman, no qual está demonstrado claramente que havia uma evolução no processo de Roma à Idade Média. Essa pesquisa histórica justifica por que existiam dois processos, ou seja, por que o sujeito tinha de ir à Justiça para pedir uma sentença que declarasse o direito e era obrigado a voltar à Justiça com o processo de execução.

Como o processo se desenvolvia nas duas primeiras fases do Direito romano? Não era o juiz estatal que julgava, mas o árbitro. Ao chamado pretor, que era do Estado, cabia apenas a formação do processo, e às partes cabia a escolha, primeiro livremente, depois pelo pretor, de um árbitro, de um cidadão privado para que desse a sentença. Com a evolução natural das colônias, isso foi desaparecendo porque não se concebia que povos dominados usufruíssem de tanta liberdade assim.

Como o Estado interfere no litígio entre pessoas de um povo dominado? Nas províncias de Roma desenvolveu-se um sistema chamado cognição extraordinária, pensamento político que consistiu em tirar a liberdade do povo dominado de julgar seus conflitos entre si. Foi então que se inventou o juiz, o cidadão do Estado que impõe a decisão às pessoas. Apesar da evolução por que passou essa instituição, permaneceu a necessidade de o reclamante voltar à Justiça para que executasse a sentença, se bem a justificativa já tivesse deixado de existir. Agora, quem julgava era o juiz do Estado.

E por que voltar à Justiça com outro processo para que ela executasse a sentença? Esse erro, que talvez à época não fosse considerado como tal, uma vez que tudo evoluía lentamente, passa a ganhar corpo, depois de findo o Império Romano, até fazer desaparecer o processo de execução (Athos Gusmão Carneiro, De volta à Idade Média).

O que ocorre com a lei 11.232 é uma volta à Idade Média, uma volta ao já descoberto, ou seja, recomeçar um processo cujo árbitro já não existe mais não tem cabimento; agora, quem decide é o Estado, é o Estado que interfere e se impõe diante dos cidadãos; mais que isso, é o Estado que monopoliza a jurisdição e arroga para si a exclusividade de julgar.

O comércio desenvolveu-se até a chegada da Revolução Industrial. Só com o comércio e as indústrias incipientes é que nasce o título de crédito. Foi ele que atrapalhou tudo. Quando se entendeu de ir à Justiça com um papel que determinava uma obrigação líquida, certa e exigível, nasceu o questionamento: por que é necessário o processo de conhecimento para algo que já está tão claro, isto é, de que o devedor deve a quantia de tanto desde o dia tal?

Na prática, o que aconteceu foi que a sentença passou a ter o mesmo valor de um título de crédito. O direito moderno passou a igualar o título de crédito à sentença; foi ele o responsável pelo dano irreparável contra a sociedade durante tanto tempo: dar à sentença judicial o mesmo valor de um título de crédito e de demais títulos aos quais a lei confere força executiva.

Isso não é possível! Basta lembrar que, no processo de execução de título judicial, dava-se à defesa e ao executado o mesmo efeito. Estávamos igualando duas coisas não igualáveis, por mais claro, limpo e nítido que seja um título executivo extrajudicial. Sentença é sentença porque passou pelo crivo do juiz.

Sob o ponto de vista social do processo, temos a noção exata da extrema distorção que os processualistas e os processos causaram e continuam causando à humanidade. Com essa alteração legislativa, a lei 11.232, o Brasil já está adiante até dos países mais desenvolvidos.

É uma incoerência ainda falar em título executivo judicial. Não há mais título executivo judicial, o que existe é uma sentença que se cumpre. Também se discute muito se, na antecipação de tutela, a decisão chamada interlocutória é ou não um título executivo uma vez que é executável? Essa discussão é importante porque não existe mais título executivo judicial; não obstante a letra da lei, o que existe são decisões judiciais que são cumpridas.

Lei 11.382/06: certidão comprobatória do ajuizamento da execução nada mais é do que o carimbo ou a etiqueta

Hoje temos um sistema diferente. O artigo 615-A da lei 11.382/06 se aplica também ao cumprimento de sentença? Como se aplicaria?

Ouso começar por essa parte para dizer o seguinte: data venia, penso que a discussão de a certidão ser ou não necessária deve ficar para segundo plano.

Estamos passando de uma legislação liberal, segundo a qual cada um deve se virar para tomar suas cautelas, para uma legislação protetiva, que obriga cada um a tomar essas providências. Agora, as pessoas serão obrigadas a ter essas certidões.

Estamos falando de formalidades e suas conseqüências, e o que importa é o que está lá atrás, antes de 1985, saber se o inciso II do artigo 593 está revogado. Se não estiver revogado, temos de imaginar que houve fraude à execução, se, ao tempo da alienação, corria contra o devedor demanda capaz de reduzi-lo à insolvência. Não estamos falando em processo de execução.

Será que agora só haverá fraude à execução após a propositura da execução, como diz o artigo 615? No cumprimento da sentença, o que vem a ser propositura de execução? Quando se falou em obter certidão comprobatória do ajuizamento da execução, ela nada mais é do que o carimbo ou a etiqueta que se põe na cópia que se tem como prova. Tanto isso é certidão comprobatória do ajuizamento da execução, que vale para situações muito mais importantes. Há conseqüências seriíssimas. Qual é a certidão do ajuizamento da execução? É necessariamente aquele simples carimbo.

São Paulo inventou um requerimento, inventou custas, não sei por quê. Será que os registradores não aceitaram somente o carimbo ou a etiqueta? Aquilo vale como certidão de um ajuizamento de execução.

O artigo 615-A diz que o exeqüente poderá, no ato da distribuição, obter certidão comprobatória do ajuizamento da execução, com identificação das partes e valor da causa, para fins de averbação no registro de imóveis, registro de veículos ou registro de outros bens sujeitos à penhora ou arresto.

Quanto ao fato de o exeqüente obter a certidão no ato da distribuição, entendo que a expressão poderia ter sido mais bem escrita. Mas, se se diz que a certidão é comprobatória do ajuizamento da execução, a nosso ver, não se trata de certidão comprobatória da distribuição; portanto, não é preciso nem esperar para ver para qual vara foi.

Mas o que é a propositura do ajuizamento da execução no cumprimento da sentença? Se a sentença transitar em julgado em Manaus, e a pessoa for de São João Gabriel da Cachoeira, o advogado diligente tem de avisar seu cliente que transitou em julgado em Manaus, para que ele possa cumprir a sentença no prazo de quinze dias, sob pena de ser requerida a penhora de seus bens e incidência de multa de 10%.

Portanto, não há o ajuizamento da execução, o que há no cumprimento da sentença é o requerimento da penhora, podendo ou não indicar os bens a serem penhorados.

O ministro Ruy Rosado queria inserir a obrigação de o credor indicar o bem a ser penhorado no ajuizamento da execução, uma vez que o Judiciário não tem de ficar procurando bens. Além disso, pode acontecer de se penhorar um bem impenhorável e a responsabilidade civil passa a ser do Estado.

O sistema antigo foi mantido com uma pequena modificação. O devedor, agora, não pode indicar o bem à penhora, mas apenas pedir a substituição de acordo com a ordem preferencial. E o próprio artigo 615 reprime o abuso pelo credor, se ele averbou dez imóveis, nove averbações terão de ser canceladas.

Na petição inicial não há mais que falar em ação de execução. As coisas mudaram na essência, e não só no nome. Alguns bons intérpretes, infelizmente, dizem que só mudou o nome, chegam a dizer que a lei não muda a natureza da vida. Acontece que a natureza da vida estava sendo distorcida pela legislação anterior, e agora a legislação se encaixa na natureza da vida, ou seja, o sujeito vai à Justiça para pedir o bem da vida, e não para pedir uma sentença de mérito. Morreu tarde demais o artigo 463, que dizia que o juiz cumpre e encerra o ofício jurisdicional quando prolata a sentença de mérito. Isso é um absurdo, ninguém outorgou ao juiz esse poder de dizer que cumpre seu ofício quando prolata uma sentença de mérito.

A possibilidade de a averbação vir a ser obrigatória para qualquer demanda

Temos que pensar também na questão do processo eletrônico. Não dá mais para pensar em registro de imóveis sem imaginar o que já está sendo feito por notários e registradores com vistas à certificação digital.

Sob o ponto de vista prático, entendo que vamos chegar à centralização do registro de imóveis. Não foi revogado o artigo 493 do CPC, portanto, com certidões ou sem certidões, a venda feita quando já havia uma demanda judicial em curso foi feita em fraude à execução.

Temos solução para isso. Seria o caso de exigirmos a averbação de toda demanda judicial no registro de imóveis, o que será fácil de cumprir num sistema eletrônico? Sim, se interpretarmos que o artigo 615-A vale para o cumprimento de sentença, temos de, necessariamente, permitir a qualquer autor de qualquer demanda que averbe nos registros de imóveis o bem suficiente para garantir aquela demanda, para que não haja fraude à execução.

Resta é saber se tudo isso é obrigatório. Temo essa obrigatoriedade, ou seja, revogarmos a possibilidade de fraude à execução sem que tenha havido a averbação premonitória. A lei ainda não está revogada no sentido de dizer que a venda do bem, quando em fraude à execução, será anulada.

Teremos algumas conseqüências ao imaginar que hoje só há fraude à execução se, ao tempo da alienação, corria demanda capaz de reduzir o devedor à insolvência e de reduzir esse dispositivo em duas etapas – primeiro, quando houver execução, e não demanda, e, segundo, dizer que será fraude à execução quando tiver sido providenciada a averbação de que trata o artigo 615-A. Estaríamos agindo em sentido contrário à lei. Seria algo a se pensar, legi ferenda, como proposta de legislação, para que tenhamos, com uma nova lei aprovada, a possibilidade de tornar obrigatória a averbação para qualquer demanda, desde a petição inicial.

 *Petrônio Calmon  é doutor em Direito processual pela USP, procurador de justiça e secretário-geral do Instituto Brasileiro de Direito Processual, IBDP.



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