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Sala temática - Imóvel rural - Lei 10.267/2001 e Decreto 4.449/2002 - Cadastro Nacional de Imóveis Rurais e Programa de Regularização Fundiária - RELATÓRIO 2  * - Jaceguay Feuerschuette de Laurindo Ribas  **
 
Publicamos abaixo o parecer II elaborado pelo Dr. Jaceguay Ribas, feito a partir de solicitação feita pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento BID, enfocando os vários aspectos relacionados com a implementação do programa de regularização fundiária consistente no Projeto BR 0392 - que pode ser acessado em http://www.iadb.org/exr/doc98/pro/pbr0392.pdf  (o texto traduzido por ser analisado em http://www.irib.org.br/notas_noti/boletimel701a.asp#4). 
 
O texto está sendo divulgado neste espaço com autorização expressa do autor e do BID, com a ressalva de que o texto não expressa a opinião da instituição que financia o projeto (SJ). 
 
Cadastro Nacional de Imóveis Rurais e Programa de Regularização Fundiária - RELATÓRIO 2  * 
Jaceguay Feuerschuette de Laurindo Ribas  **
 
1. CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE A LEGISLAÇÃO 
 
Inicialmente, deve-se dizer que existem leis federais e estaduais que regulam a matéria de interesse do Programa. Como dito no relatório anterior, as leis federais tem prevalência sobre as estaduais, uma vez que estas não podem disciplinar o tema de maneira distinta. Na prática, entretanto, algumas vezes isto não acontece. 
 
Um exemplo claro ocorre no tamanho da área que pode ser titulada ao particular pelo Governo. Enquanto que a União Federal estabelece o teto máximo de 100 ha (Lei 6.383/76, art. 29), é comum que os Estados concedam áreas maiores. O Ceará e o Maranhão, por exemplo, podem titular até 200 ha, enquanto que os títulos outorgados por Minas Gerais chegam até a 250 ha. 
 
Trataremos desse choque de legislação mais adiante. 
 
Estou aguardando ainda o recebimento da legislação de 9 Estados, para poder concluir uma análise sumária, comparativa entre elas, fato que será possivelmente objeto do próximo relatório. 
 
No que tange às leis federais que dizem respeito ao Programa, relaciono a seguir aquelas que considero as mais importantes para todo o trabalho. Assim, temos: 
 
a) A Constituição Federal, que trata da Política Agrícola e Fundiária e Reforma Agrária nos arts. 184 a 191, com ênfase neste art. 191, que disciplina o usucapião rural especial; 
 
b) O Código de Processo Civil de 1973, que regula a tramitação judicial do processo de usucapião; 
 
c) O Código Civil, que entrou em vigor no início deste ano, o qual, dentre outras matérias, tratou das diversas formas de usucapião; 
 
d) O Estatuto da Terra (Lei 4.504, de 1964), a lei mais abrangente sobre as questões do campo; 
 
e) A Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/73), com ênfase no art. 213, que trata da retificação de títulos dominiais; 
 
f) A Lei 6.383/76, que possui dois artigos da maior importância, ou sejam, o 28 (arrecadação de área rural sem registro de domínio particular) e o 29 (legitimação de posse de terras públicas a agricultor); 
 
g) A Lei 6.739/76, que trata da Matrícula e do Registro de Imóveis Rurais; 
 
h) A Lei 10.267/01, que trouxe uma série de novidades, especialmente relativos ao CCIR, ao CNIR, à troca de dados entre o INCRA e os registros de imóveis, e trazendo especialmente a obrigatoriedade do georreferenciamento nas alterações de registros imobiliários; 
 
i) O Decreto 4.449/02, que regulamentou a Lei 10.267/01. 
 
Voltaremos a nos referir à legislação mais adiante, neste relatório. 
 
2. CONSIDERAÇÕES SOBRE O OBJETIVO DO PROGRAMA 
 
De uma forma simples e sumária, pode-se dizer que a Regularização Fundiária irá consistir na inserção, junto aos registros imobiliários, dos dados reais que vierem a ser levantados em campo pelo cadastro. 
 
Antes de tratar do encaminhamento desses dados ao registro, todavia, devemos considerar as diversas áreas rurais sob a ótica de três situações diferentes: (1) terras devolutas (pertencentes ao Estado ou à União Federal), (2) terras em poder de posseiros que estão tituladas a particulares e (3) terras já tituladas a particulares. Cada qual possui as suas particularidades, razão pela qual devem ser enfocadas distintamente. 
 
Dentro deste panorama, formulamos, a seguir, um diagrama que procura sintetizar as diferentes maneiras de tratar da matéria, de acordo com os entendimentos jurídicos mais freqüentes.
 
Diagrama
 
Para uma adequada compreensão deste trabalho, cada uma das situações supra serão tratadas em separado. Comecemos pelas posses existentes sobre as áreas devolutas, que teoricamente devem simplesmente ser arrecadadas e tituladas em nome de quem detenha a sua posse, atendidas as exigências legais. O INCRA e os Estados tem longa experiência neste quesito. 
 
3. AS POSSES SOBRE TERRAS PÚBLICAS 
 
A Lei nº 6.368/76 disciplina o processo discriminatório, através do qual, em síntese, uma vez feito o levantamento de campo e apuradas as terras sobre as quais não exista título de domínio particular, o Estado as arrecada e as registra como sua junto ao Cartório de Imóveis. São as chamadas terras devolutas. 
 
Esse processo pode ser administrativo ou judicial e é, via de regra, por demais demorado, porque a lei prevê uma série de etapas a serem vencidas. Na prática, para contornar esses entraves legais, todos os levantamentos são feitos preliminarmente, sem deflagrar o processo propriamente dito. Quando estiver concluído o levantamento de campo, há o início do processo discriminatório administrativo (sem a participação do Juiz, portanto). 
 
A arrecadação das terras pelo Poder Público é feita com base no art. 13 da Lei nº 6.368:
 
Art. 13. Encerrado o processo discriminatório, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA providenciará o registro, em nome da União, das terras devolutas discriminadas, definidas em lei, como bens da União. 
 
Note-se que o dispositivo legal supra normalmente possui o seu correspondente nas diversas legislações estaduais. 
 
As terras devolutas da União compreendem as que forem consideradas “indispensáveis à defesa das fronteiras, das fortificações e construções militares, das vias federais de comunicação e à preservação ambiental” (Constituição Federal, art. 20, II). Todas as demais pertencem aos Estados onde estão localizadas. 
 
Uma vez arrecadadas pelo Poder Público, as áreas podem ser tituladas às pessoas que detém as respectivas posses. 
 
Feitas essas ponderações, passa-se à análise da legislação, com vistas à sua aplicação prática ao Programa. 
 
O primeiro questionamento que se faz diz respeito a quem possui um terreno com área inferior a um módulo rural. Ocorre que o art. 65 da Lei nº 4.504/64 [ 1] não permite o fracionamento de um imóvel em parcelas inferiores ao módulo. Assim, considerando-se que a área que foi arrecadada em nome do Estado, e que está matriculada no Registro de Imóveis, constitui um todo, o desmembramento do aludido terreno, para fins de emitir o título em favor do posseiro, em tese, não pode ser feito, porque é menor que o módulo. Embora este caso não se constitua em regra, mas se restrinja a uma pequena parte dos imóveis, proporciona, de qualquer sorte, uma dificuldade, para a qual deve ser encontrada uma solução. 
 
Por outro lado, o agricultor, que tem a posse de uma área localizada em terras públicas, necessita preencher uma série de requisitos para poder obter o título de propriedade. Estas condições estão contidas no art. 29 e seus §§, da Lei n° 6.383/76:
 
Art. 29. O ocupante de terras públicas, que as tenha tornado produtivas com o seu trabalho e o de sua família, fará jus à legitimação da posse de área contínua até 100 (cem) hectares, desde que preencha os seguintes requisitos:
 
I - não seja proprietário de imóvel rural;
 
II - comprove a morada permanente e cultura efetiva, pelo prazo mínimo de 1 (um) ano.
 
§ 1º. A legitimação da posse de que trata o presente artigo consistirá no fornecimento de uma Licença de Ocupação, pelo prazo mínimo de mais 4 (quatro) anos, findo o qual o ocupante terá a preferência para aquisição do lote, pelo valor histórico da terra nua, satisfeitos os requisitos de morada permanente e cultura efetiva e comprovada a sua capacidade para desenvolver a área ocupada. 
 
... 
 
§ 3º. A Licença de Ocupação será intransferível inter vivos e inegociável, não podendo ser objeto de penhora e arresto. 
 
Da análise desse dispositivo, pode-se extrair que o interessado que ocupa terra pública deve preencher, simultaneamente, uma série de condições para poder obter, ao final, o título de domínio sobre ela. Essas condições compreendem: 
 
a) A transformação da área improdutiva em produtiva, pelo trabalho do agricultor e de sua família; 
 
b) A limitação da área em 100 ha; 
 
c) A exigência de que se trate de terras contínuas; 
 
d) A inexistência de propriedade sobre outro lote; 
 
e) A moradia permanente e a cultura efetiva, por pelo menos um ano; 
 
f) Obtenção de uma licença de ocupação por pelo menos 4 anos, intransferível inter vivos e inegociável; 
 
g) Preferência na compra pelo valor histórico da terra nua. 
 
Analisemos rapidamente a primeira exigência (alínea “a”): a lei pede que o trabalho na terra seja do agricultor e de sua família. Considerando-se que a conjunção “e” é usada normalmente como aditivo, uma leitura apressada do dispositivo legal poderia levar à conclusão de que é preciso o trabalho tanto do titular quanto dos demais membros familiares. Isto se afigura um manifesto exagero, até porque muitas vezes é só o homem, chefe da família, que labuta na terra. Conclui-se que este não pode ser o espírito da lei, descartando-se tal interpretação. 
 
Assim, quando o texto legal diz “com o seu trabalho e o de sua família”, certamente tencionou dizer “seja com o seu trabalho, seja com o de sua família”. A rigor, o ideal seria se a lei tivesse usado o conectivo “ou”, em vez de “e”. De qualquer sorte, creio que, do ponto de vista hermenêutico, o entendimento não pode ser outro, sob pena de fazer prevalecer um formalismo descabido, divorciado da realidade que a lei quis regular. E é importante que se adote esta interpretação de forma geral e uniforme, para não se criar embaraços ao Programa e dele alijar um sem número de agricultores. 
 
A segunda exigência (letra “b” supra) diz respeito à área máxima que pode ser titulada. A lei federal limitou-a em 100 ha, enquanto que as legislações estaduais apresentam variações de até 250 ha. É certo que a lei estadual não pode afrontar a federal, especialmente na matéria em apreço, porquanto compete privativamente à União legislar sobre direito agrário (Constituição Federal, art. 22, I). Aos Estados sobraria a competência legislativa subsidiária, estabelecida pelo art. 24, § 2º, também da Constituição [ 2]. Isto significa que as leis estaduais que disciplinam a matéria de maneira diferente da lei federal não poderiam subsistir. Assim, ao menos em tese, a legislação estadual, divergente da federal, não deveria sequer ser considerada. No entanto, enquanto não for declarada expressamente essa incompatibilidade, tais leis continuam a ser aplicadas. 
 
É de se questionar, por outro lado, os aspectos relativos às conveniências locais. O pessoal técnico poderá definir eventuais necessidades de áreas maiores dos 100 ha previstos na lei federal, por exemplo, na região da Amazônia Legal. Assim, como visto, as leis estaduais podem continuar a ter aplicação (alargando-se, desta forma, a área do imóvel a ser titulado), posto que é muito pouco provável que alguém venha a questionar a validade de determinada lei estadual. 
 
As letras “c” e “d” supra, sobre a exigência de que as terras sejam contínuas e que o interessado não possua outro lote, podem ser analisadas conjuntamente. Muitas vezes, na prática, o agricultor pode deter a posse de dois imóveis próximos (ou até mais), sobre os quais mantenha ao mesmo tempo cultura permanente. Nestas condições, a rigor, a sua titulação somente seria possível sobre um dos terrenos. Este caso é interessante, porque, em tese, o interessado estaria cumprindo com a função social da propriedade, a qual, por questões próprias e peculiares, ficou cindida em duas partes, pela existência de outras terras, em seu permeio, pertencentes a terceiros. A aplicação pura e simples to texto legal resultaria ainda em outra questão: em nome de quem poderia ser titulada a parte restante. 
 
Ao se deparar com o caso concreto, o técnico, analisando a realidade, poderá ser tentado a encontrar soluções práticas para o caso, titulando uma área em nome do agricultor e a outra em nome de parente deste, o que poderia conduzir no futuro à existência de problemas sucessórios, com respeito aos filhos do agricultor. 
 
O ideal consistiria numa lei clara, que pudesse prever a titulação de mais de um imóvel em nome da mesma pessoa, desde que preenchesse todas as condições necessárias para tanto. Inexistindo essa lei nova, a sua falta certamente não irá comprometer o Programa, seja porque aqui se trata de uma exceção, seja porque cada caso concreto pode ser contornado na prática, como vem fazendo os diversos Órgãos Estaduais de Terras. 
 
O item “e” supra não oferece maiores indagações. 
 
Por fim, as exigências das alíneas “f” e “g” acima merecem também alguns poucos comentários. Pelos termos legais, a pessoa recebe uma licença de ocupação por 4 anos, que não pode ser negociada e, após este período, tem preferência na aquisição da terra. Este aspecto tem sido contornado, considerando muitas vezes o Órgão Público que, se o interessado possui um período de posse superior a 4 anos, anteriormente à arrecadação do imóvel, está cumprida a exigência legal, quanto ao prazo. Eventualmente, essa posse pode ser até de somente um ano, invocando-se, no caso, o inciso II do art. 29 supra transcrito. 
 
Penso, entretanto, que seria melhor o fornecimento de um título definitivo ao interessado, ingressando o imóvel no mercado, com as valorizações daí decorrentes, embora respeite as opiniões contrárias, que antevem nesta possibilidade a apropriação especulativa de imóveis públicos, para venda futura. 
 
Com respeito à compra prevista no § 1º do mesmo dispositivo legal, este aspecto também merece algumas considerações. Se o agricultor se estabelece sobre uma área de particular, pode, depois de certo tempo, vir a usucapi-la; se o imóvel se situa em terrenos públicos, todavia, a maior parte dos autores entende que o usucapião não pode ser aplicado. Em outras palavras, estabelecido sobre imóvel de particular, o agricultor, com o passar o tempo, simplesmente se torna dono dele. Mas se a terra é pública, deverá pagar por ela. É certo que o preço passa a ser quase simbólico, na medida em que incide sobre o valor da terra nua. De qualquer sorte, esse pagamento pouco representa aos cofres públicos e o seu controle (que exige esforços extras da Administração Pública, incluindo a avaliação da terra, a arrecadação do preço, o controle da verba arrecadada, a prestação de contas, etc.) certamente o torna mais um ônus que uma fonte de receita para o Estado. Em suma, seria melhor que não existisse cobrança alguma. Para tanto, todavia, a lei deveria prever a sua exclusão. 
 
Estes são os principais aspectos legais relacionados com as posses existentes sobre terras devolutas e a maneira de regularizar tais posses. 
 
4. AS POSSES SOBRE TERRAS PARTICULARES 
 
Trata-se de uma ocorrência bastante comum: o titular do domínio morre e seus herdeiros, dividindo ou não a terra, não promovem o respectivo inventário, embora a abertura deste seja obrigatório, no prazo de 30 dias (Código Civil, art. 1796). Por vezes, o imóvel passa por mais de uma geração em tais condições. As razões para tanto são via de regra de ordem econômica: a família não dispõe de dinheiro para pagar o imposto de transmissão, o advogado e as custas processuais referentes ao inventário. Também é freqüente que o herdeiro venda a posse a terceiros, sendo que estes mantém a mesma situação do vendedor, isto é, continuam a deter a posse mas não providenciam o registro do imóvel. 
 
Em suma, nestes casos, a pessoa tem a posse da área e possui tempo mais que suficiente para usucapir o bem, apenas não tem o título de domínio. E o nó górdio consiste em saber como esse título será atribuído ao agricultor. 
 
A primeira possibilidade a respeito poderia consistir na outorga do título pelo Poder Púbico, após feito o cadastro e constatado que o interessado realmente detém uma área definida e possui os requisitos para ser seu legítimo proprietário. Para tanto, o Estado precisa estar amparado em alguma lei, que o autorize a fornecer o título ao agricultor. E o único dispositivo que trata da matéria é o art. 28 da Lei 6.383/76:
 
“Art. 28. Sempre que se apurar, através de pesquisa nos registros públicos, a inexistência de domínio particular em áreas rurais declaradas indispensáveis à segurança e ao desenvolvimento nacionais, a União, desde logo, as arrecadará mediante ato do presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, do qual constará: ...” (Grifei). 
 
Destaco que o artigo supra se refere às terras sob a responsabilidade da União Federal (indispensáveis à segurança e ao desenvolvimento nacionais), aos cuidados do INCRA, mas o dispositivo se aplica também aos Estados, com respeito às demais áreas. 
 
Nota-se que a lei exclui da arrecadação as terras sobre as quais já exista um título particular. Em tese, é o que ocorre nos exemplos supra, onde a área já havia sido registrada em nome de alguém. Assim, sempre que o Cartório de Imóveis indicasse a ocorrência dessa titularidade, a área deveria ser automaticamente excluída da arrecadação estatal, inibindo a outorga do título dominial. 
 
A alternativa que se apresenta para tentar contornar o entrave legal consiste em desconsiderar a existência do título pré-existente, em nome de terceiros, e arrecadar ainda assim o imóvel, emitindo-se a seguir o título em nome do atual ocupante. Corre-se, todavia, o risco de que o Cartório se recuse a efetuar o registro, prenotando o pedido, isto é, levantando dúvidas quanto à legalidade do registro. Neste caso, somente o Juiz da Comarca pode decidir a questão. E dificilmente concordará com a emissão do título pelo Poder Público, visto que a lei não autoriza a arrecadação da área pelo Estado, se existir algum título anterior em nome de particular. 
 
Em suma, a arrecadação em tela pode ser realizada, desde que o Cartório Imobiliário, previamente consultado, entenda ser viável fazer o registro nos casos em análise, e que o Órgão de Terras concorde em adotar tal procedimento, a lattere da lei. Eventualmente, poderá ser verificado também o entendimento a respeito do Juiz e o Ministério Público, de forma a assegurar que não haverá pedido ou decretação de nulidade do procedimento adotado. 
 
Não sendo possível ao Poder Público arrecadar a área e outorgar o título ao interessado, a outra alternativa que se apresenta consiste no usucapião. Trata-se de um processo judicial, no qual serão feitas as citações de todos os confrontantes e da pessoa em cujo nome estiver registrado o imóvel, havendo sempre a intervenção do Ministério Público. Se essa ação for proposta individualmente, como normalmente acontece, possuirá um custo bastante elevado. 
 
A solução, neste caso, consiste em se fazer um único processo judicial de usucapião coletivo, onde seriam requerentes todos os posseiros que preenchessem as condições para usucapir as respectivas áreas. As equipes de campo, neste caso, quando forem entrar em contato com os agricultores, poderão coletar destes uma procuração específica para receber a citação pessoal, na qual eles se declararão cientes da pretensão dos demais interessados e expressarão a sua concordância com relação às divisas respeitadas de seus vizinhos, reconhecendo-as como boas. Essas procurações, juntadas aos autos, eliminam a necessidade de fazer a citação individual, de cada agricultor, através de mandado judicial, por meio do Oficial de Justiça. Desta forma, será preciso citar apenas aquelas pessoas que detém o título junto ao Cartório de Imóveis, simplificando em muito o processo e reduzindo, conseqüentemente, o seu tempo de tramitação. A citação dos ausentes, sejam vizinhos ou interessados, será feita por edital. O envolvimento do Juiz e do Promotor da Comarca com os objetivos do Programa certamente irão também facilitar sobremaneira o andamento da ação. 
 
Estas são as possibilidades que pude detectar, dentro do atual arcabouço jurídico, com respeito à regularização maciça de posses existentes em terrenos anteriormente titulados a particulares. 
 
5. A RETIFICAÇÃO DOS TÍTULOS 
 
Acredita-se que todas as propriedades rurais que vierem a ser georrefenciadas indicarão medidas diferentes daquelas que constam dos respectivos registros, consignando áreas para mais ou para menos. Assim ocorrendo, haverá a necessidade de efetuar a retificação de cada um dos títulos atualmente existentes. 
 
O ideal seria que, uma vez feita a medição, os novos dados fossem levados pelo Poder Público, sem maiores burocracias, diretamente ao Cartório de Imóveis, o qual iria promover as respectivas retificações em massa. A legislação atual, entretanto, não permite a adoção desta fórmula. 
 
O tema é disciplinado pelo art. 213 da Lei de Registros Públicos, nos seguintes termos:
 
“Art. 213. A requerimento do interessado, poderá ser retificado o erro constante do registro, desde que tal retificação não acarrete prejuízo a terceiro.
 
 § 1º A retificação será feita mediante despacho judicial, salvo no caso de erro evidente, o qual o oficial, desde logo, corrigirá, com a devida cautela.
 
§ 2º Se da retificação resultar alteração da descrição das divisas ou da área do imóvel, serão citados, para se manifestar sobre o requerimento em 10 (dez) dias, todos os confrontantes e o alienante ou seus sucessores, dispensada a citação destes últimos se a data da transcrição ou da matrícula remontar a mais de 20 (vinte) anos. (Redação dada ao parágrafo pela Lei nº 9.039, de 09.05.1995)
 
§ 3º O Ministério Público será ouvido no pedido de retificação.
 
§ 4º Se o pedido de retificação for impugnado fundamentadamente, o juiz remeterá o interessado para as vias ordinárias.
 
§ 5º Da sentença do juiz, deferindo ou não o requerimento, cabe recurso de apelação com ambos os efeitos.” (Grifei). 
 
Analisemos este dispositivo. 
 
O primeiro aspecto que chama a atenção é que somente o interessado pode requerer a alteração de seu registro. Este fato, de um lado, exclui a participação direta do Poder Público e, de outro lado, deixa toda a iniciativa a cargo exclusivo do agricultor. Experiências anteriores demonstraram que o interesse particular, neste caso, pode não se fazer presente. Mais, ainda: pode até haver interesses em sentido contrário, ou seja, na não retificação, especialmente quando houver sensível aumento da área, porque isto significa o pagamento maior do imposto. 
 
Este problema pode ser contornado pela adoção de vários procedimentos, dentre os quais podem ser destacados: (1) um prazo determinado para que a retificação seja feita com custo zero ou bastante reduzido; (2) o não fornecimento, pelo INCRA, do CCIR; e (3) algum mecanismo por parte da Receita Federal, quando da cobrança do ITR. 
 
O ponto crucial da retificação, entretanto, consiste na possibilidade ou não de fazê-la administrativamente, ou seja, sem a participação judicial. Como destacamos no relatório anterior, uma corrente entende ser perfeitamente cabível a retificação administrativa. 
 
O argumento central é que a medição da área através do GPS apresentará um resultado sem dúvida alguma mais preciso do que aquele que consta do registro imobiliário e muito próximo da exatidão. Assim, o registro anterior conteria um erro evidente, ou seja, evidenciado pela nova tecnologia utilizada na medição. Este fato permitiria eliminar a apresentação do caso perante o Juiz da Comarca, segundo o preceito do §1º supra. 
 
Entretanto, o § 2° fala na citação de todos os confrontantes, sempre que houver alteração de área, destacando-se que a citação é um ato que ocorre sempre num processo judicial. Assim, não será surpreendente se vários cartórios imobiliários aventarem este caso e suscitarem dúvidas, que serão necessariamente dirimidas pelo Juiz. Desnecessário dizer que, se isto ocorrer, o Programa poderá ser sensivelmente prejudicado, neste aspecto. 
 
A alternativa existente consiste numa retificação judicial coletiva, nos moldes do que restou exposto acima, semelhante ao usucapião coletivo. Também aqui haveria a coleta de procurações para o agricultor se dar por citado e concordar com as divisas pleiteadas e respeitadas por seus vizinhos. Os alienantes das diversas áreas a serem retificadas, entretanto, somente seriam citados se o título tiver menos de 20 anos (art. 213, § 2º, da Lei 6.015/73), o que simplifica um pouco este processo coletivo, comparado com o de usucapião. Indispensável será também o envolvimento do Juiz e do Promotor da Comarca com os objetivos do Programa. 
 
6. CONCLUSÕES 
 
Do exposto, pode-se verificar que o sistema legal brasileiro, até certo ponto, contempla os aspectos necessários gerais para o desenvolvimento do Programa. Existem, todavia, alguns entraves que podem ser contornados com um dispêndio maior de tempo, tais sejam os casos dos processos judiciais de usucapião coletivo e da retificação coletiva das áreas, tempo esse que dependerá basicamente da colaboração que for encontrada nas Comarcas, especialmente por parte do Juiz, do Promotor e do Registro de Imóveis. Em hipóteses mais raras, como quando se tratar de posse menor que um módulo em terras devolutas, a omissão legal pode vir a trazer uma certa dificuldade, cuja solução deve ainda ser buscada. 
 
Em suma, estas leis são as ferramentas atualmente disponíveis: não são ótimas, mas são as possíveis. 
 
Refriso que o ideal seria o encaminhamento administrativo de todo o levantamento georreferenciado diretamente ao Cartório de Imóveis, para outorgar os títulos a todos os posseiros (de áreas públicas ou privadas) e para retificar de ofício as áreas já tituladas. O arcabouço jurídico hoje existente, todavia, não permite a implementação direta dessas hipóteses. 
 
Nesta senda, creio que o caminho mais adequado consistiria na edição de uma nova lei, que contemplasse todos os aspectos dúbios, omissos ou controvertidos acima apontados, e que permitisse uma sensível simplificação no sistema registral imobiliário. 
 
Analisemos esta hipótese. A edição de qualquer lei sofre uma prolongada tramitação nas duas Casas do Congresso Nacional, antes de ser promulgada pela Presidência da República, demora essa que provavelmente comprometeria todo o Programa. Neste caso, uma solução que pode ser adotada consiste na Medida Provisória, ato disciplinado pelo art. 62 da Constituição Federal nos seguintes termos:
 
Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional. 
 
Pelo dispositivo supra, nota-se que o Presidente da República tem poderes para editar uma Medida Provisória, com força de lei, desde que se trate de matéria relevante e urgência. Penso que o Programa contempla ambas as exigências: trata-se de algo de grande relevância, acompanhado da urgência que a sociedade espera para a questão agrária no País. 
 
Uma vez editada, a Medida Provisória, que já tem força de lei desde o seu nascimento, é submetida ao Congresso Nacional, para fins de ser convertida em lei propriamente dita. Pela importância do Programa e tendo em vista que o Governo Federal tem obtido tranquila maioria no Congresso, aprovando as polêmicas reformas tributária e previdenciária, pode-se acreditar que a aprovação de uma Medida Provisória de tal quilate não teria a menor dificuldade em ser igualmente aprovada. Bastará uma dose modesta de vontade política. 
 
Em síntese, o caminho ideal para o sucesso do Programa, dentro do enfoque jurídico, consiste na edição de uma lei (ou de uma Medida Provisória). Se isto se mostrar inviável, por qualquer razão, a legislação brasileira atualmente existente poderá dar suporte ao mesmo Programa, embora com maiores dificuldades e com dispêndio de tempo consideravelmente maior. 
 
Estas são as considerações que considerei importantes fazer, de forma a contemplar, em conjunto com o primeiro relatório, as atividades constantes do item III do Anexo A do Agreement firmado. 
 
Curitiba, 4 de dezembro de 2003. 
 
Confira também:
 
Opinião - Boletim Eletrônico IRIB/ANOREG-SP - São Paulo, 06/02/2003 - n. 620 - Lei 10.267/01 e Decreto 4.449/02: Aspectos Técnicos - O Georreferenciamento de Imóveis Rurais e o Cadastro Nacional de Imóveis Rurais – CNIR - Andrea F.T. Carneiro 
URL:http://www.irib.org.br/opiniao/boletimel620b.asp
 
Notas & Notícias - Boletim Eletrônico IRIB/ANOREG-SP - São Paulo, 08/01/2004 - n. 973 - Irib recebe consultores do BID em São Paulo 
URL:http://www.irib.org.br/notas_noti/boletimel973.asp 
 
Notas & Notícias - Boletim Eletrônico IRIB/ANOREG-SP - São Paulo, 20/06/2003 - n. 710 - Imóveis rurais, Lei 10.267/2001 e Decreto 4.449/2002 na berlinda. 
URL:http://www.irib.org.br/notas_noti/boletimel710a.asp 
 
Notas & Notícias - Boletim Eletrônico IRIB/ANOREG-SP - São Paulo, 12/06/2003 - n. 701 - IRIB é recebido pelo Incra para debates sobre projetos internacionais 
URL:http://www.irib.org.br/notas_noti/boletimel701a.asp 
 
Notas & Notícias - Boletim Eletrônico IRIB/ANOREG-SP - São Paulo, 07/04/2003 - n. 663 - Cadastro rural e regularização fundiária  - Presidente do Irib entrevista-se com técnicos do BID 
URL:http://www.irib.org.br/notas_noti/boletimel663d.asp 
 
Notas & Notícias - Boletim Eletrônico IRIB/ANOREG-SP - São Paulo, 07/04/2003 - n. 663 - Seminário sobre imóveis rurais – a nova estrutura fundiária brasileira 
URL:http://www.irib.org.br/notas_noti/boletimel663a.asp 
 
Notas & Notícias - Boletim Eletrônico IRIB/ANOREG-SP - São Paulo, 06/02/2003 - n. 620 - CONVÊNIO IRIB/UFPE REÚNE ACADÊMICOS, NOTÁRIOS E REGISTRADORES 
URL:http://www.irib.org.br/notas_noti/boletimel620a.asp 
 
Notas & Notícias - Boletim Eletrônico IRIB/ANOREG-SP - São Paulo, 16/01/2003 - n. 601 - Imóveis rurais - Lei 10.267/2001 - Portaria 955 do Incra ainda aguarda providências 
URL:http://www.irib.org.br/notas_noti/boletimel601a.asp 
 
Notas & Notícias - Boletim Eletrônico IRIB/ANOREG-SP - São Paulo, 17/12/2002 - n. 591 - WORKSHOP Experiências e Expectativas para o CNIR - Incra, SRF e Irib debatem o Cadastro de Imóveis Rurais 
URL:http://www.irib.org.br/notas_noti/boletimel591d.asp 
 
Boletim Eletrônico IRIB/ANOREG-SP - São Paulo, 07/11/2001 - n. 396 - Cadastro Nacional de Imóveis Rurais - Irib comparece a reunião no INCRA 
URL:http://www.irib.org.br/notas_noti/boletimel396a.asp 
 
Notas & Notícias - Boletim Eletrônico IRIB/ANOREG-SP - São Paulo, 28/01/2004 - n. 1.004 - Nova reunião do programa Cadastro de Terras e Regularização Fundiária reúne IRIB, BID e INCRA em Brasília 
URL:http://www.irib.org.br/notas_noti/boletimel1004a.asp 


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