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I SIMPÓSIO LUSO-BRASILEIRO DE DIREITO REGISTRAL
Evento paralelo ao XXXIII Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil

Seqüestro
Margarida Costa Andrade*


Não posso deixar de começar esta minha intervenção sem confessar o quão apreensiva me encontrei quando me foi comunicado o tema que nos ocupará nos próximos minutos. De fato, um instituto de designação seqüestro é desconhecido no ordenamento jurídico português. Porém, rapidamente o temor virou estímulo, porque a riqueza que esta figura revelou, quer nos seus contornos cíveis quer nos penais, impeliu-me a uma viagem de descoberta pelo meu próprio direito pátrio. Assim, não ouvirá esta platéia uma intervenção discorrendo sobre o seqüestro, mas uma narrativa — que prometemos breve — sobre esta peregrinação pelas leis portuguesas em busca daquilo que se poderia chamar “um seqüestro à portuguesa”.

Rogo-lhes, pois, que sejam meus companheiros.

Naturalmente, foi meu porto de partida o direito brasileiro. Aqui, o seqüestro apresentou-se em duas vestes distintas: a civil e a penal. Comecemos, então, pelo seqüestro enquanto medida cautelar regulada nos arts. 822º e ss. do CPCv brasileiro e que visa assegurar futura execução para entrega de coisa, consistindo na apreensão de um bem determinado, justamente o objeto do litígio, para garantir a entrega deste, em bom estado, a quem vencer a causa.

Temos, pois, que, ao contrário do que sucede no arresto, o objeto do seqüestro é um bem determinado que se encontra no centro de uma disputa, e que vem garantir a execução de entrega da coisa certa, e não, portanto, um qualquer bem do patrimônio do devedor que possa garantir futura execução de obrigação de pagamento de quantia certa.

A coisa que é disputada — ou bem litigioso — será objeto de um depósito, que revestirá características especiais na medida em que, por um lado, se trata de um depósito que procura assegurar os fins de prevenção e segurança que se associam a esta medida cautelar, assim como, por outro lado, resulta de uma imposição judicial, que é resposta a uma solicitação da parte que não está na posse do bem. O depositário será um terceiro da confiança do juiz, uma pessoa indicada, de comum acordo, pelas partes ou, eventualmente, uma das partes, caso em que a parte depositária prestará caução.

Tal como as restantes medidas cautelares, o seqüestro poderá ser instaurado antes (caso em que falamos em providência cautelar preparatória) ou no decurso do processo principal (a providência incidente), assim como será admissível um diferimento liminar com sacrifício do princípio do contraditório (isto é, sem que seja ouvida a parte contrária). O que importará, porém, alguma cautela, nomeadamente, a apresentação de prova documental ou justificação, que podem, todavia, ser substituídas por caução. No demais, o Código de Processo Civil é claro ao remeter para o regime jurídico do arresto, desta forma subordinando ambos os institutos cautelares a uma única disciplina jurídico-processual.

Assim, arresto e seqüestro partilharão:

a forma de execução (dá-se a apreensão da coisa, se necessário, com recurso a força policial, e o depósito dela bem, com lavratura do respectivo auto; com, como dissemos, eventual dispensa de citação ou intimação prévia do requerido, para que assim se mantenha a surpresa e o segredo que são, frequentemente, condições de eficácia das medidas);
as regras de legitimação (com as devidas adaptações, naturalmente);
as regras de competência;
as regras de procedimento;
as causas de extinção; e
os efeitos.

Este último aspecto reclama que nos detenhamos um pouco, para assinalar que o seqüestro vincula o bem apreendido à sorte de um processo, produzindo a retirada da coisa ao poder da livre disponibilidade material e jurídica do devedor para assim se evitar a deterioração ou desvio dele. Em conseqüência surge com o seqüestro uma nova situação jurídica para o bem apreendido, pois que fica materialmente sujeito à guarda judicial (há uma restrição física da posse do proprietário, já que o bem fica à guarda do depositário) e juridicamente vinculado à atuação da prestação jurisdicional objeto do processo principal. Ou seja, serão ineficazes os atos de transferência dominial frente ao processo em que se deu a constrição. Esta sanção não pode, é claro, confundir-se com a nulidade dos atos dispositivos, pois uma futura alienação do bem não é inválida, mas apenas irrelevante para o processo. O bem transferido, embora integrando o patrimônio do adquirente, conserva a vinculação ao seqüestro e aos destinos do processo a que serve de medida cautelar.

Para terminarmos esta sumaríssima descrição do seqüestro, resta-nos referir a taxatividade que o caracteriza, no sentido de que só é admitido quando a lei expressamente o permite. Não é uma faculdade da parte. Assim, consultando os vários números do art. 822º do Código de Processo Civil  brasileiro, temos que o seqüestro será cabível:

1) sobre bens móveis, semoventes ou imóveis, quando lhes for disputada a propriedade ou a posse, havendo fundado receio de rixas ou danificações;
2) sobre frutos e rendimentos do imóvel reivindicando, se o réu, depois de condenado por sentença ainda sujeita a recurso, os dissipar;
3) dos bens do casal, nas ações de desquite e de anulação de casamento, se o cônjuge os estiver dilapidando;
4) nos demais casos previstos na lei.

Uma primeira nota conclusiva a apontar desde já vai no sentido de constatar a evidente semelhança entre o seqüestro e o que no direito italiano aparece designado como seqüestro giudiziario. Também aí estarão em causa coisas móveis, imóveis, empresas e outras universalidades, cuja propriedade ou posse é ponto de discórdia. Acrescente-se, porém, que poderá não estar em causa apenas o mero depósito do bem sob litígio, pois a lei admite que aquele que pretende obter o reconhecimento da propriedade ou da posse do bem esteja interessado em mantê-lo produtivo ou que a sua natureza produtiva seja estimulada, pelo que se prevê a possibilidade de o depósito se não cingir à mera custódia, associando-se-lhe uma efetiva gestão do bem durante o tempo necessário à resolução do conflito. Mas também poderão ser alvo de seqüestro judiciário livros, registros, documentos e outras coisas das quais se possa retirar elementos de prova, embora aqui o tipo de discórdia subjacente seja diverso, uma vez que se discute o direito de usar estes bens como meio de prova antes da sua exibição ou comunicação em juízo.

A este propósito cremos ser pertinente assinalar que sob a designação seqüestro três outras figuras são reguladas pelo direito transalpino:

a) o seqüestroconservativo;
 b) o seqüestroliberatorio;
 c) o seqüestroconvenzionale.

Todas estas modalidades de seqüestro têm natureza cautelar. As duas primeiras são, como o seqüestro judiciário, providências cautelares e têm em comum o fato de um sujeito requerer a um órgão judicial autorização para apor um vínculo — o seqüestro — sobre uma ou mais coisas, com o objetivo de as conservar para uma atividade subseqüente.

O seqüestro conservativo equivale ao que designamos por arresto.

O seqüestro liberatório tem por objeto somas de dinheiro ou outras coisas que foram postas à disposição do devedor para a sua liberação, a ele se recorrendo quando exista controvérsia sobre a existência da obrigação ou sobre a modalidade de pagamento ou de entrega, ou sobre a idoneidade da coisa oferecida em cumprimento. Especial característica desta forma de seqüestro está no fato de o sujeito que toma a iniciativa de seqüestrar a coisa ser o próprio devedor, isto é, a pessoa que materialmente dispõe do bem em causa. No seqüestro liberatório pede-se, pois, um seqüestro contra ou sobre si mesmo. E temos aqui uma representação esquemática da figura.

Já o seqüestro convencional, como a própria designação deixa adivinhar, é, simplesmente, um contrato típico, que merece destaque por ser uma medida de natureza voluntária que pode sub-rogar-se ao seqüestro judiciário. Este contrato encontra as suas origens no direito romano e pode definir-se como o contrato mediante o qual duas ou mais pessoas confiam a um terceiro uma coisa ou uma pluralidade de coisas em relação às quais nasceu uma controvérsia, para que aquele a guarde e a restitua a quem apareça como vencedor final da disputa. A mais marcada característica deste contrato encontra-se, pois, na sua função cautelar  [e fazemos aqui um parêntesis para salientar que esta funcionalização do contrato vem permitir a sua clara distinção frente ao contrato de depósito — a guarda da coisa aparece desempenhando apenas um papel instrumental, pois que a finalidade do contrato não consiste simplesmente em guardar a coisa que é o centro do litígio, mas em guardar a coisa para garantir a eficácia de uma futura decisão judicial que a tenha por objeto]; dizíamos que este contrato se caracteriza pela sua natureza cautelar, sendo um instrumento com origem na autonomia privada para realizar um objetivo assegurativo tipicamente conseguido através de meios de natureza judicial. Porém, lamenta a doutrina italiana o raríssimo uso que dá a prática a este negócio, mesmo mostrando-se um ágil instrumento de garantia ao serviço das partes em conflito, já que com ele podem escapar ao regime das providências cautelares judiciais. O que não deixa, por outro lado, de ser compreensível: pois se as partes se encontram em disputa quanto à titularidade do direito sobre a coisa, dificilmente conseguirão chegar a um acordo sobre a sua entrega a um seqüestratário. 

No ordenamento jurídico português não se encontra esta figura disciplinada, ou seja, não a encontramos por entre os vários contratos típicos que o legislador sugere no Código Civil. E penso não estar errada ao afirmar que o mesmo acontece no direito civil brasileiro. Naturalmente, contudo, nada afasta que a tal consenso cheguem sujeitos diversos ligados por uma disputa sobre uma coisa ou várias coisas, móveis ou imóveis. Ou seja, os princípios da autonomia privada e da liberdade contratual, patrimônio jurídico universal, não deixarão de sancionar estes contratos, embora aparecendo, naturalmente, como contratos atípicos.

Ora, prossigamos nossa peregrinação, passando agora para o direito luso. Uma medida paralela ao seqüestro brasileiro ou ao seqüestro judicial italiano não existe entre nós.

Na verdade, são estes apenas os procedimentos cautelares elencados pelo nosso legislador:

a) restituição provisória da posse;
b) suspensão de deliberações sociais;
c) alimentos provisórios;
d) arbitramento de reparação provisória;
e) arresto;
f) embargo de obra nova; e
g) arrolamento.

Nenhum destes procedimentos cautelares especificados, a própria designação o faz adivinhar, pode ser equiparado ao seqüestro, enquanto medida cautelar tendo por objeto um bem determinado que esteja no centro de um litígio.

Isto não significará, contudo, que os litigantes lusos estejam desprovidos de uma medida que vise assegurar a justiça e eficácia de uma decisão processual dirimindo um conflito sobre a entrega de coisa certa. É que sempre há a válvula de escape do procedimento cautelar comum. Assim, se for disputada, por exemplo, a propriedade de uma coisa móvel em sede de uma ação de reivindicação, pode ser requerido ao tribunal que assegure a apreensão e depósito do objeto do conflito, para salvaguardar a sua integridade assim que obtida uma decisão judicial final. E para sustentar tal afirmação, bastará recorrer ao art. 381º CPCv português, de epígrafe “âmbito das providências cautelares não especificadas”, e segundo o qual “sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado”.

As providências cautelares são, já se sabe, uma forma de responder à demora do processo, declarativo ou executivo, dado o tempo que inevitavelmente medeia entre a propositura da ação e a decisão final. De fato, entre estes dois momentos processuais, podem dar-se alterações substanciais e, mais importante, prejudiciais ao nível da situação jurídica das coisas ou das pessoas envolvidas na lide, o que levará, possivelmente, à inutilização da solução final do processo. Para responder a este perigo, é concedido aos tribunais um meio para assegurar a conservação do estado das coisas, pessoas e provas até ao tempo da decisão do pleito principal, já iniciado ou a iniciar. E este meio consubstancia-se, precisamente, no processo cautelar, um tertium genus entre a ação declarativa e a executiva, autonomizando-se pela essência preventiva, apesar da relação de instrumentalidade que sempre existe entre aquele e estes.

Tal como sucede no direito brasileiro, também no direito português encontramos um elenco de providências cautelares nominadas ou específicas, mas cuja inevitável incompletude obriga à consagração de uma espécie de cláusula geral cautelar, na medida em que o legislador concede ao juiz o poder de acautelar a situação das coisas, das pessoas e das provas, mesmo que a situação concreta com que seja confrontado não possa subsumir-se a uma das medidas que estão tipificadas na lei. Assiste-se, assim, à atuação daquilo que vemos frequentemente designado pela doutrina brasileira como poder geral de tutela.

Não pode, porém, com verdade afirmar-se uma diferença essencial entre o procedimento cautelar comum e as medidas cautelares específicas, pois que qualquer uma delas é atravessada pelas mesmas idéias de prevenção e de cautela. De fato, para que o juiz possa legitimamente recorrer ao procedimento cautelar inominado será necessária a verificação daqueles dois requisitos que tradicionalmente se designam por periculum in mora e fumus boni iuris, também eles condições sem as quais se não poderá recorrer a qualquer das providências cautelares especificadas.

Assim, o requerente de uma providência cautelar terá de provar, não a existência do seu direito, matéria de reserva da ação principal, mas uma probabilidade séria da existência do direito. Ao mesmo tempo em que não será imprescindível que demonstre o perigo do dano invocado, bastando que comprove um fundado, compreensível ou justificado receio da lesão do direito em causa. De posse desses elementos, estará o juiz habilitado para a summaria cognitio a que deve proceder nas medidas cautelares. Aquele poder geral de tutela, muito embora discricionário, não é, então, arbitrário.

E neste sentido militam também os limites a que a sua atuação estará sujeito, pois que apenas estará autorizado à utilização de tal poder quando a situação concreta prove ser necessária a sua intervenção antecipada — isto é, quando a situação substancial seja susceptível de modificação prejudicial pelo decurso do tempo —, assim como não pode desvirtuar a natureza provisória das medidas cautelares — o que quer dizer que estas medidas não podem ser satisfatórias, ocupando, pois, o lugar da decisão final. Além disso, estará o julgador sempre condicionado pelo pedido que lhe for dirigido, já que nunca pode a sua prestação ir para além ou ser diferente daquela que o requerente lhe roga.

Nada do que se disse até ao momento será, com certeza, novidade para esta platéia, uma vez que estas são idéias que transversalmente atravessam a dogmática do direito processual civil universal. Diferentes poderiam ser, porém, as fases procedimentais por que haveria de passar o requerimento até que a sentença cautelar fosse produzida. Mas, quando se comparam os ordenamentos jurídicos que hoje prendem a nossa atenção chegaremos à conclusão de que não se encontram distantes.

Este procedimento pode, pois, ser instaurado como preliminar ou como incidente de uma ação declarativa ou de uma ação executiva, iniciando-se com uma petição inicial acompanhada de prova sumária do direito ameaçado e de justificação do receio de lesão. Se o cumprimento do contraditório trouxer risco sério para o fim ou eficácia da providência, sacrificar-se-á este princípio e a providência poderá ser imediatamente decretada e executada, só posteriormente sendo chamado o requerido para se pronunciar sobre a providência decretada, a lei abrindo-lhe a opção entre o recurso do despacho que decretou a medida cautelar (quando entenda que ela não deveria ter sido proferida face aos elementos apurados) e a dedução de oposição (quando pretenda alegar fatos ou produzir meios de prova não tidos em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da providência ou determinar a sua redução). Dependendo da prova feita (que, entre nós, pode ser determinada ex officio pelo julgador) poderá o juiz substituir, manter, reduzir ou revogar a providência. 

Naqueles casos, todavia, em que ouvir o requerido não prejudique o fim ou a eficácia da providência, este será chamado para deduzir oposição. Agora, ouvida a parte contrária, o juiz pode, assim o julgando necessário, determinar (oficiosamente ou a requerimento) a produção da prova que considere necessária para decretar ou não a providência em sede de audiência final.

É claro que não nos interessará sobremaneira a comparação entre o procedimento cautelar comum presente no direito brasileiro e o presente no direito português. Cremos ser bastante mais pertinente a comparação entre o que sucede no seqüestro, enquanto providência cautelar específica no ordenamento jurídico brasileiro, e o procedimento cautelar inominado português (já que a este temos necessariamente de recorrer para responder aos problemas que o seqüestro resolve). Mas, nem aqui encontraremos diferenças de maior, já que o procedimento do seqüestro é o comum das medidas cautelares.  

Ora, coloca-se agora um outro problema que é o da registrabilidade desta providência cautelar. É que, ao contrário do que acontece no direito brasileiro, não existe nenhuma norma no ordenamento jurídico português que especificamente determine o registro desta providência. Embora esta matéria do registro das indisponibilidades esteja reservada para os méritos da Senhora Conservadora Dr.ª Madalena Teixeira, abordaremos de forma muito sintética a questão, tomando por paradigma a apreensão de um imóvel.

Podemos recorrer ao art. 2º, n.º 1, al. n) do CRP? Ou seja, àquela norma nos termos da qual é fato sujeito a registro a penhora, o arresto, a apreensão em processo de falência e o arrolamento, bem como quaisquer outros atos ou providências que afetem a livre disposição de bens? Tudo depende, responder-se-á, de saber se a apreensão traz uma afetação da livre disposição do bem que dela é objeto. O que é o mesmo que dizer que tudo depende do pedido que seja dirigido ao tribunal em sede de procedimento cautelar. Assim, se o requerente pedir que seja apreendido e depositado o bem, e que todos os atos dispositivos sobre ele estejam feridos de invalidade ou de ineficácia (pedido que nos parece de todo pertinente, já que, sem a retirada dos poderes de disposição se podem comprometer os objetivos da medida cautelar e frustrar plenamente a decisão final), recebendo a concordância da sentença, então esse fato terá de ser registrado para gozar de eficácia perante terceiros.

Sem tal pedido e sem norma legal que determine o registro de uma tal providência cautelar, não podemos dizer que a apreensão seja, de per se, um fato sujeito a registro, sob pena de violação do princípio da legalidade.

Como dizíamos, o seqüestro aparece também regulado em lei penal, desta feita como apreensão de bens, móveis ou imóveis, que tenham sido adquiridos com proventos de uma infração, mesmo que transferidos para terceiros (arts. 125º e 132º CPP). Estão, então, excluídos do âmbito deste instituto as coisas diretamente obtidas por meio criminoso, já que estas serão objeto de apreensão (arts. 91º/II/a) e b) CP e 118º e ss. CPP). A este propósito, faz Humberto Theodoro Jr. notar que um dos casos em que se usa erroneamente a expressão seqüestro está também presente no CPP, desta feita nos arts. 136º e 137º, pois aí se regula a medida cautelar de garantia da ação de indenização civil pelo dano oriundo do crime (que na lei portuguesa aparece regulada sob o título de arresto preventivo).

No direito penal português não encontramos uma figura batizada como seqüestro. Mas, serão passíveis de uma medida cautelar os bens que forem adquiridos com proventos de um fato típico e ilícito, medida a que damos, porém, o nome de apreensão e que abrange os objetos obtidos através de fato criminoso, que serviram ou se destinassem a servir a prática de um crime, que sejam recompensa de um crime ou que tenham sido deixados pelo agente no local do crime, bem como qualquer bem susceptível de servir de prova. Como se vê imediatamente, designamos de apreensão todo o ato de alteração da situação material de detenção de coisa por qualquer forma ligada a um crime, sem distinguirmos se foi produto do crime ou se foi adquirida com proventos dele.

A apreensão faz parte de um conjunto de medidas (como os exames, as revistas, as buscas e as escutas telefônicas) que aparece designado pelo legislador como meios de obtenção da prova. Isto significa que se trata de um instrumento de que se servem as autoridades judiciárias para investigar e recolher meios de prova, daí que se caracterizem pela sua presença nas fases preliminares do processo penal, nomeadamente na fase de inquérito. Por isto, a apreensão necessita ser autorizada por uma autoridade judiciária, muito embora a lei admita a sua validação, nomeadamente naqueles casos em que o ato de apreensão decorra de busca ou revista policial ou quando haja urgência ou perigo na demora.

Note-se, porém, que a apreensão não é apenas um meio de obtenção e conservação da prova, mas também de segurança de bens para garantir a execução. Não nos termos em que funciona o chamado arresto preventivo (que se destina a garantir o pagamento da pena de multa, do imposto de justiça, das custas do processo ou de qualquer dívida para com o Estado relacionada com o crime e ainda o pagamento de indenização ou outras obrigações civis derivadas do crime), uma vez que na apreensão se trata de garantir a execução da perda dos objetos relacionados com o crime em favor do Estado.

Um dos problemas trazidos pela apreensão em processo penal, e que se nos afigura pertinente tratar aqui hoje, é o de saber se esta medida está ou não sujeita a registro. É que não marca presença no nosso direito uma norma equivalente ao art. 128º CPP brasileiro, sujeitando ao registro o seqüestro de imóveis.

Por algumas vezes o Conselho Técnico da Direção Geral dos Registos e Notariado foi chamado a pronunciar-se sobre esta questão, em sede de recurso hierárquico. A posição adotada não é unânime, embora em verdade se possa vislumbrar uma tendência para negar a registrabilidade de tal fato. Se na primeira vez em que foi chamado a pronunciar-se sobre o problema aquele Conselho optou por aceitar a apreensão como fato sujeito a registro, nas restantes três vezes pronunciou-se, umas vezes mais outras vezes menos veementemente, no sentido da insusceptibilidade de trazer a apreensão a registro.

Vejamos os argumentos que se digladiam nesta matéria, mais u ma vez elegendo por paradigma o registro predial.

A polêmica surgiu, invariavelmente, com a recusa do conservador em aceitar o pedido de registro da apreensão, sendo esgrimidas sempre as mesmas razões:

a apreensão não pertence ao rol dos fatos sujeitos a registro;
compete ao conservador respeitar o princípio da legalidade na sua apreciação da viabilidade do registro;
a inscrição tabular deve ser recusada sempre que o fato não esteja sujeito a registro.

Perante esta decisão, reclama o Ministério Público reclama ou, mais tarde, recorre, alegando que:

a lei se refere à registrabilidade de quaisquer atos ou providências que afetem a livre disposição dos bens, entre os quais se deve integrar a apreensão;
não deve o intérprete ou aplicador da lei restringir a aplicação desta quando tal não resulte do texto da lei, antes pelo contrário, nem da intenção do legislador.

Qual das duas posições deve prevalecer é, então, o cerne da polêmica. Vejamos como se têm elas debatido.

O problema começa, justamente, com a interpretação a dispensar à expressão legal “quaisquer atos ou providências que afetem a livre disposição do bem”, presente no art. 2º/1/n) do Código de Registro Predial, onde afirma o legislador, recordemo-lo, que são fatos sujeitos a registro “a penhora, o arresto, a apreensão em processo de falência e o arrolamento, bem como quaisquer outros atos ou providências que afetam a livre disposição de bens.”                     .

De um lado afirma-se que não podem as palavras mais amplas e vagas do legislador ser usadas para “forçar a tipicidade”, que é pedra angular do sistema registral. Ora, não forçar a tipicidade significaria a não associação na previsão de uma mesma norma de duas medidas de natureza jurídica díspar. A apreensão em processo penal destina-se a facilitar a instrução do processo, e, simultaneamente, a garantir a efetivação da perda a favor do Estado em momento posterior. Não está, pois, em causa, na apreensão penal, acautelar uma garantia patrimonial eventualmente colocada em risco por atos dispositivos ou de oneração do argüido, ao contrário do que acontece no arresto, na penhora ou na apreensão em processo de falência, todas elas providências cautelares expressamente referidas pelo legislador. E tanto assim é que a conseqüência da alienação pelo apreendido será a punição pela prática do crime de descaminho ou destruição de objetos colocados sob  o poder público previsto no art. 355º do Código Penal português, onde se tipifica a conduta de “quem destruir, danificar ou inutilizar, total ou parcialmente, ou, por qualquer forma, subtrair ao poder público a que está sujeito, documento ou outro bem móvel, bem como coisa que tiver sido arrestada, apreendida ou objeto de providência cautelar, é punido com pena de prisão de 5 anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.” A este propósito afirmar-se num dos parecer do Conselho Técnico: “não é, pois, a propriedade do imóvel que se pretende defender, mas sim o poder público.” Não está aqui em causa o receio de perda da garantia patrimonial, ao contrário das outras medidas exemplificadas na lei. aliás, encontra-se integrado o art. 355º entre os crimes contra a autoridade pública.

Que resposta se reserva para este argumento? Diz-se que:

a) a apreensão, em processo penal, pode não ser entendida como uma providência, mas será, certamente, um ato; justamente um ato de apreensão dos objetos envolvidos na prática do crime;
b) o fato de o legislador usar a expressão “quaisquer outros” é prova de que quis usar, propositadamente, uma expressão suficientemente ampla para conter providências ou atos que eventualmente vierem a considerar-se sujeitos a registro e que neste momento não se encontram expressamente sujeitos a registro, sem se distinguir, adianta-se ainda, se o ato ou providência se integra num processo cível comum, cautelar ou especial, ou de natureza criminal.

A resposta não tarda: a apreensão não afeta a livre disposição do bem, na medida em que o argüido continua a poder alienar ou onerar o bem apreendido.

Porém, sempre se pode responder que esta expressão, “atos que afetem a livre disposição de bens” não deve — nem pode — ser entendida à letra. É que a penhora ou o arresto ou a apreensão em processo de falência também não impedem ou proíbem a livre disposição do bem, mas apenas tornam tal ato ineficaz em relação ao exeqüente, e, ainda assim, encontram-se previstos na lei como fatos sujeitos a registro ligados à afetação da livre disposição dos bens. Depois, afetar, em linguagem jurídica, significa modificar o conteúdo da relação jurídica em causa, o que certamente acontece no caso da apreensão na medida em que o argüido cujo patrimônio é apreendido não pode dispor do bem numa tentativa de frustrar a efetivação da perda a favor do Estado.

Em terceiro lugar, continuando a pugnar-se pela irregistrabilidade da apreensão sustenta-se que a perda dos bens a favor do Estado em processo penal constitui uma aquisição originária, independentemente de quem tenha a titularidade do bem, independentemente da vontade do proprietário do bem. “A perda dá-se por via autoritária”, sem que seja necessária uma relação com o anterior proprietário ou uma inscrição prévia da apreensão. Aliás, nem sequer é condição de perda a favor do Estado que o objeto em causa alguma vez tenha sido apreendido. O que quer dizer que o registro não é condição de oponibilidade de um direito do Estado perante terceiros, pelo que se torna irrelevante, não acrescenta nada de novo. Se o ato é válido e eficaz independentemente do registro, então o registro aparece irrelevante, pois dele não decorrerão quaisquer efeitos.

Mas, adianta o Ministério Público na sua argumentação, deve a apreensão ser registrada como forma de impedir que o argüido disponha ou onere o bem apreendido, para que se constitua um obstáculo à efetivação da futura perda a favor do Estado, assim se permitindo que aos terceiros seja dado a conhecer a situação em que se encontra o bem. Ora, este argumento do Ministério Público é criticado em duas frentes. Primeiramente, sustenta-se que se procura desta forma instrumentalizar o registro no sentido de com ele se construir uma presunção de má fé de terceiro que celebre qualquer negócio com o apreendido. E esta não é, conclui-se, função do registro. De outra forma: quando o registro não se apresenta como condição de oponibilidade ou eficácia de um fato, a inscrição tabular deste apenas servirá para lhe dar publicidade — no sentido de mera publicidade-notícia. Em segundo lugar, continua-se, os terceiros estão protegidos pelo regime jurídico da apreensão, pois podem intervir ou ser chamados ao processo, tenham adquirido antes ou depois da apreensão, para provar a sua boa fé e, assim, ver-lhes restituído o bem apreendido. Vejamos, em termos esquemáticos. Assim, se no direito brasileiro, sem registro do seqüestro não poderá opor-se a perda a favor da União (o seqüestro é um fato sujeito a registro, no sentido de que este é condição de oponibilidade), no direito português não é necessário registro para que a perda a favor do Estado possa efetivar-se, estando, contudo, os terceiros protegidos, desde que capazes de provar a sua boa-fé.

Com aquela conclusão concordam, curiosamente, aqueles que pugnam pela registrabilidade da apreensão. De fato, reconhecem, o registro não é condição de oponibilidade, na medida em que se não exige, para a perda a favor do Estado, qualquer prévio registro de apreensão. Mas, ainda assim, sugere-se a distinção entre fatos sujeitos a registro — os tais em que o registro é condição de oponibilidade — e fatos passíveis de registro, distinção que já foi usada para justificar o registro da ação pauliana e que permitirá aceitar o registro da apreensão, como fato, não sujeito a registro, mas passível de registro. Podemos ler num parecer do Conselho Técnico: “cremos que o caso em tabela — o registro da apreensão em processo penal — se deve enquadrar nesta última situação do fato admitido a registro, muito embora esta não fosse a ele sujeito, no sentido de indispensabilidade aos próprios fins da oponibilidade, genericamente visados pelo registro.”

No fundo, a questão acaba por ser esta, e como bem pôs uma conservadora recorrida depois de manter a recusa do registro:

Na questão em apreciação estão em causa dois pontos:

Por um lado a interpretação a dar à norma de caráter vago e amplo do art. 2º/1, al. n, 2º parte, do CRP [norma do Código de Registro Predial que admite como fato sujeito a registro “a penhora, o arresto, a apreensão em processo de falência e o arrolamento, bem como quaisquer outros atos ou providências que afetem a livre disposição de bens”];

Por outro lado [e é isto que pretendemos realçar], se deve prevalecer a opinião de que o registro predial deve pautar-se apenas por critérios de eficácia e oponibilidade, ou se deve ter ainda uma função de ‘mera publicidade-notícia’.”

Nos termos do art. 1º do CRP português, “o registro predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário.” De modo a que, acrescentam Antunes Varela e Henrique Mesquita, se garanta “aos interessados que, sobre os bens a que aquele instituto se aplica, não existem outros direitos senão os que o registro documenta e publicita. Os direitos não inscritos no registro devem ser tratados como direitos clandestinos que não produzem quaisquer efeitos contra terceiros.” Isto é, o que preside à decisão de escolha dos fatos que devem ser apresentados a registro parece ser o da sua possibilidade de produzir efeitos contra terceiros ou não, ou, de outra forma, devem ser registrados aqueles fatos que, sem o registro, não podem produzir efeitos em relação a terceiros. E só estes. Isto quer dizer que, para aqueles fatos que já tenham em si a essência da oponibilidade, nada lhes acrescenta o registro, tornando-se este um ato irrelevante, apenas funcionando como um aviso.

Para além da questão da registrabilidade da apreensão em processo penal, um outro problema é trazido por este instituto em matéria de registros: verifica-se ou não uma violação do princípio do trato sucessivo na inscrição do direito de propriedade a favor do Estado com base na sentença judicial que declare a perda do bem apreendido? De fato, nos poucos casos conhecidos, verificamos que um dos motivos invocados pelo conservador para reagir negativamente ao registro da apreensão é, justamente, o da violação do trato sucessivo.

Este princípio impõe-se ao conservador, na sua função qualificadora, no sentido de assegurar que no registro se reflitam todas as vicissitudes da vida de um direito real, de forma a que todos os assentos sobre um direito sejam conseqüência uns dos outros. O titular do direito tem de o adquirir do titular imediatamente antes inscrito no registro, assim como o próximo titular só o poderá adquirir daquele que atualmente se mostre inscrito.

A observância do princípio do trato sucessivo exige, consequentemente, que o registro definitivo de aquisição de direitos ou de constituição de encargos por negócio jurídico dependa de prévia inscrição dos bens em nome de quem os transmite ou onera — art. 34º/1 CRP. No caso de existir sobre o bem registro de aquisição ou reconhecimento de direito susceptível de ser transmitido ou de mera posse, é necessário a intervenção do respectivo titular para poder ser lavrada nova aquisição definitiva, salvo se o fato for conseqüência de outro anteriormente inscrito — art. 34º/2 CRP. Nos termos do art. 16º/e) CRP, o registro lavrado com violação do princípio do trato sucessivo é nulo.

A aquisição do direito pelo Estado dá-se, já o dissemos, por via originária, decorrendo, pois, da sua auctoritas ou ius imperium. Não há, portanto, relação entre o anterior proprietário e o atual. Isto significa, então, que com a perda a favor do Estado se rompe com o trato sucessivo anterior estabelecendo-se um novo trato sucessivo. Porém, não estaremos na perda a favor do Estado perante uma violação ou exceção ao princípio do trato sucessivo, porque se exige a intervenção no processo dos titulares inscritos, através da sua notificação, assim se lhes permitindo a defesa do seu direito (art. 178º/7 CPP), bem como se lhes concede legitimidade para recorrerem, enquanto terceiros, da sentença que declarou a perda (art. 401º/1/d) CPP). E assim se dá cumprimento ao princípio da fé pública registral, segundo o qual o que consta do registro é juridicamente existente e consequentemente quem aparece no registro como titular de um direito real sobre um bem é o seu verdadeiro titular e pode, portanto, dispor do seu direito (art. 7º CRP). O titular inscrito goza da presunção da existência da titularidade do direito publicitado pela inscrição nas tábuas a seu favor, pelo que tem de ser demandado ou provocada a sua intervenção, sendo certo que o princípio do trato sucessivo, na modalidade da continuidade das inscrições, se realiza pela intervenção naquelas do titular inscrito.

E se, por inércia do Estado, posteriormente ao trânsito em julgado da sentença de perda, este não proceder atempadamente ao registro da aquisição originária e se, entretanto, uma outra aquisição vier a ser registrada por o argüido ter procedido à venda do imóvel, que já não lhe pertencia, após o trânsito julgado daquela sentença? Este registro será efetuado definitivamente. A falta de intervenção deste titular inscrito no processo irá, face ao princípio do trato sucessivo na modalidade consignada no art. 34º/2, impedir o registro definitivo daquela aquisição originária à qual se aplicarão as regras e princípios registrais. Caberá ao tribunal, e não ao conservador, apreciar e eventualmente declarar a nulidade do negócio e determinar o conseqüente cancelamento do registro.

Conclusão

Não existem, é certo, nem no direito processual civil, nem no direito processual penal portugueses, figuras com a designação ou formalmente equivalentes ao seqüestro. Mas, em termos materiais, dispomos de ferramentas muito semelhantes para assegurar o cumprimento da lei e a eficácia e justiça das decisões judiciais.

Se não temos uma providência cautelar nominada, podemos assegurar a guarda da coisa e sua entrega futura ao verdadeiro proprietário ou a quem seja titular de um direito sobre ela através do procedimento cautelar nominado ou comum. E até podemos obter o registro de tal medida, desde que o requerimento inicial o rogue e o juiz o aceite.

Já se o argüido de um processo penal, já iniciado ou não, decide usar os proventos de um crime para adquiriu uma coisa móvel ou imóvel, arrisca-se, quer em Portugal, quer no Brasil, a ver-lhe apreendido um bem, cuja propriedade será perdida em favor do Estado (ou da União) uma vez obtida a condenação. Havendo apreensão, garantias de oponibilidade e de protecção dos terceiros existem dos dois lados do Atlântico, ou porque a lei assim o determina, ou porque a inscrição tabular o concede.

Minhas senhoras e meus senhores, prometi ser breve e penso ter cumprido tal desígnio. Agradeço penhoradamente a vossa companhia durante esta viagem, esperando que se encontrem sãos e salvos.

Muito obrigada.

*Margarida Costa Andrade é professora de Direito na Universidade de Coimbra, Portugal.



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