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Os Direitos do Nascituro
Ulysses da Silva*
Quando o Código Civil de 2002 estabelece, logo no artigo primeiro, que toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil, ele mantém a norma contida no artigo segundo do Código Civil de 1916. Substitui, porém, os termos “homem” por “pessoa” e “obrigações” por “deveres”, antes adotados, o que faz acertadamente, especialmente quanto ao primeiro vocábulo, cujo sentido é extensivo às pessoas jurídicas e outras entidades.
Até aí nenhuma novidade. Emerge, entretanto, questão interessante, que transcende o campo do direito, ao afirmar, em seguida, o legislador, no artigo segundo, que a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida, mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro. E não é difícil perceber que a razão principal do interesse na questão em apreço reside na distinção estabelecida entre o ser incapaz, que ainda se encontra no ventre da mãe, chamado de nascituro, e o ser capaz que vem ao mundo exterior com vida, ou, em outras palavras, que sobrevive ao parto e é agraciado com a personalidade civil.
É certo que nascer vivo tem vários significados alinhados com o sentido dado pelo Código Civil. Entre eles, destacamos: vir ao mundo; vir à luz; começar a ter vida exterior. Para efeito de lavratura do respectivo assento no Registro Civil das Pessoas Naturais, a lei 6.015, de 1973, no parágrafo segundo do artigo 53, considera o nascimento com vida a partir do momento em que, realizado o parto, o ser gerado passa a respirar por conta própria.
Pondere-se, contudo, que princípio ou origem também é definição lógica de nascer, afinada, perfeitamente, com a tese, aceita em todos os campos do conhecimento, de que a vida começa da concepção e o feto já é um ser humano, ou, em outras palavras, uma pessoa, ainda que em fase de gestação. Aliás, a própria lei aceita como verdadeira, embora relutantemente, a apontada tese, quando admite, implicitamente, no citado artigo segundo, quea existência da pessoa precede a concessão da personalidade civil.
É aceitável, sem dúvida, a justificativa de que a distinção em apreço é estabelecida pelo direito civil com a finalidade precípua de definir direitos relacionados com bens materiais, exteriores ao mundo no qual está encerrado o nascituro.
Assim acontece, por exemplo, quando o Código Civil prescreve, no artigo 542, que a doação feita a nascituro valerá, sendo aceita por seu representante legal, mas, sob condição suspensiva, de acordo com a doutrina, como informa Jones Figueiredo Alves, integrante da equipe que organizou a obra Novo Código Civil Comentado, publicada pela Editora Saraiva, em 2002, sob coordenação de Ricardo Fiúza, que foi o relator do projeto da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Isso significa que a validade da liberalidade está condicionada ao nascimento com vida do donatário. Se nascer morto, caducará.
O mesmo ocorre quando o legislador cuida da vocação hereditária, dispondo, no artigo 1.798, que se legitimam a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão. Curiosamente, também aqui o legislador não faz nenhuma distinção entre pessoa nascida e pessoa já concebida, mas, drasticamente, anula o direito do nascituro se não adquirir a personalidade civil, ou seja, se não sobreviver ao parto e não estiver vivo no momento da abertura da sucessão, como consta do artigo 1.799, inciso I.
Seguindo a mesma linha e confirmando o enunciado, acrescenta o parágrafo terceiro do artigo 1.800 que, nascendo com vida o herdeiro esperado, ser-lhe-á deferida a sucessão, com os frutos e rendimentos relativos à deixa, a partir da morte do testador. Claro está, no teor desse dispositivo legal, que o direito do nascituro foi preservado desde a morte do testador, mas somente lhe será deferida a sucessão e atribuídos, conseqüentemente, os frutos e rendimentos dela decorrentes, se nascer com vida.
A propósito, Zeno Veloso, Professor de Direito Civil na Universidade Federal do Pará e de Direito Civil e Direito Constitucional Aplicado na Universidade da Amazônia, ao comentar o artigo 1.798 (p. 1612), na mesma obra, o Novo Código Civil Comentado, afirma que:
“O herdeiro, até por imperativo lógico, precisa existir quando morre o hereditando, tem de sobreviver ao falecido”.
E acrescenta tratar-se de princípio adotado na generalidade das legislações, citando, como exemplos, os códigos civis francês, italiano, português, suíço, chileno, argentino e mexicano.
Como se observa, os direitos do nascituro à doação e à herança, assim como a aquisição de sua personalidade civil, estão subordinados a uma condição de natureza suspensiva, o que nos leva a outras considerações.
Para a personalidade, atributo natural de cada pessoa, existem vários sentidos: caráter ou qualidade do que é pessoal; pessoalidade; o que determina a individualidade de uma pessoa moral; o elemento estável da conduta de uma pessoa; sua maneira habitual de ser; aquilo que a distingue de outra; traços típicos, originalidade. Mas, é a psicologia que nos apresenta conceito mais científico. Para ela, personalidade é a organização constituída por todas as características cognitivas, afetivas, volitivas e físicas de um indivíduo.
Ao discorrer sobre os direitos subjetivos, de que o homem é titular, Sílvio Rodrigues, no capítulo III, primeiro volume de sua obra “Direito Civil” (parte geral), 34.ª edição, publicada pela Editora Saraiva, realça aqueles que são inerentes à pessoa humana e, portanto, a ela ligados de maneira perpétua e permanente. E acrescenta “não se podendo conceber um indivíduo que não tenha direito à vida, à liberdade física ou intelectual, ao seu nome, ao seu corpo, à sua imagem e àquilo que ele crê ser sua honra”. Tais são, no entender do autor, os chamados direitos da personalidade, que saem da órbita patrimonial e são intransmissíveis, imprescritíveis e irrenunciáveis.
É, compreensível, pois, haver o atual Código Civil dedicado o capítulo II, composto de 11 artigos sem precedentes no Código anterior, exclusivamente aos direitos da personalidade. Entre eles, citaremos o de número 11, confirmando a lição de Sílvio Rodrigues, segundo o qual: “Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária”.
Considerando os argumentos insertos na exposição até aqui feita, podemos dizer que o nascituro possui personalidade? Há quem negue peremptoriamente com apoio no entendimento de que somos produto do meio, ou seja, do lugar onde vivemos, de nosso lar, de nossa educação, formação religiosa, convivência com familiares e amigos, papel exercido na sociedade, etc. Esquecem, porém, os que assim pensam, que o meio não é o único fator importante no condicionamento do indivíduo. Existe outro, fundamental na formação física e mental, que é a herança genética de cada um. É admissível, assim, que o nascituro já tenha personalidade, embora em gestação, como ele próprio. Incorre, aliás, em sério equívoco quem imaginar que a personalidade já se encontra formada no momento do nascimento da pessoa. Por muitos anos, ela ainda vai se desenvolver, seguindo as tendências determinadas pela combinação de genes legados por seus ancestrais e sob influência do meio.
Personalidade civil é outra coisa. Não se confunde, portanto, com atributo natural inerente ao ser humano ou com caráter, qualidade pessoal. Ela, a civil, é sem dúvida, um direito de toda pessoa, quando nasce com vida, mas não deixa de ser uma atribuição conferida por lei, porque assim determina a lógica da ordem jurídica. Podemos conceituá-la como aptidão ou capacidade para exercer direitos e contrair obrigações. Isso significa que, mal nascida, a pessoa natural já é considerada capaz de direitos e deveres, como consta do artigo primeiro do Código Civil, apesar de não ter a mínima noção deles e, muito menos, condição de administrá-los. Tentando atenuar a contradição observada, esclarece o legislador, no artigo terceiro, que são absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 anos e os deficientes mentais que não puderem exprimir a sua vontade.
A análise, despida da lógica jurídica, desse ponto, nos leva à convicção de que a personalidade civil, da qual decorre a capacidade para gerir direitos e deveres, a rigor, também evolui, uma vez que a pessoa natural vai adquirir consciência deles gradativamente até completar a maioridade, quando, então, torna-se realmente capaz, libertando-se da representação ou assistência dos pais.
E agora? É justo negar ao nascituro direito à personalidade civil? Por quê? Porque não tem nome? Qual a razão de lhe atribuirmos direitos objetivos a bens materiais, impondo, como condição, que nasça com vida, sob pena de os retirarmos? Há diferença significativa entre os direitos do feto e os concedidos a uma criança que nasceu, viveu algumas horas e veio a falecer? Como seria se não fosse retirado o direito à sucessão do ser no ventre da mãe, que sobreviveu ao autor da herança, mas não chegou a ver a luz do dia?
Vejamos até onde nos leva essa especulação: imaginemos uma senhora, com três filhos, grávida de nove meses, que começa a sentir os primeiros sinais do parto. Seu marido, ansioso, nervoso, apressado, coloca-a no carro e sai em disparada. Chove muito e sua visão está prejudicada. Ao fazer uma curva, o carro derrapa e choca-se violentamente com um muro. Um motorista vê o acidente, pára e chama o resgate. O marido está morto e a mulher falece ao dar entrada no hospital. A hora de sua morte é registrada. Por um milagre, a criança ainda vive. Seu coração, enfraquecido, ainda bate. Os médicos fazem uma cesariana, mas, em virtude da demora, não conseguem retirá-la com vida.
A situação é triste. O casal morto deixou três filhos menores, que, provavelmente, irão viver com os avós maternos, ainda vivos. De acordo com o nosso direito, eles, os filhos vivos, herdarão todos os bens de seus pais, na proporção de um terço para cada um, negando-se acesso à herança do nascituro, porque veio morto ao mundo e não adquiriu personalidade civil.
Embora seja fruto da imaginação, o caso relatado foi aqui colocado apenas com a finalidade de ilustrar a matéria focalizada, não sendo, todavia, impossível a ocorrência de situações reais semelhantes.
Suponhamos, agora, apenas para exercitar a imaginação, que os fatos narrados aconteceram em um país no qual os nascituros são considerados capazes de herdar, como aqui, mas lá a lei não lhes impõe a condição suspensiva que condiciona a atribuição dos bens herdados ao nascimento com vida. Também lá, como aqui (ver art. 1.788 e 1.784 do atual Código Civil), a sucessão é aberta no exato momento do falecimento do autor da herança, a qual é, desde logo, transmitida aos herdeiros. Assim supondo, os bens do casal seriam atribuídos aos quatro filhos, três vivos e um morto, na proporção de um quarto para cada um, a este último porque sobreviveu ao óbito da mãe. Mas, o caso não se encerraria aí, em face da abertura de outra sucessão, ou seja, da criança nascida morta. Para quem iria a sua quarta parte nos bens do casal falecido? Seus três irmãos? Não, porque seriam considerados colaterais. Para os seus avós, se ainda vivos? Sim, como herdeiros ascendentes.
Como se vê, as suposições feitas servem para demonstrar que ainda é grande a distância entre as normas que regem os valores naturais e as leis que disciplinam a atividade humana no campo dos bens materiais.
*Ulysses da Silva é membro do Conselho Jurídico Permanente do IRIB.
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