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Casamento - regime de bens – alteração – comunhão universal para separação total. Título judicial – qualificação registral.


1. Encaminha-nos o IRIB consulta formulada pelo Oficial do Registro de Imóveis do Estado de São Paulo a respeito da qualificação de Carta de Sentença expedida pelo MM. Juiz Corregedor Permanente da Comarca de Franca.

De acordo com o título, processou-se, na Corregedoria-Permanente, ação que foi chamada de “Evolução de Casamento”. Trata-se, na verdade, de pedido de alteração do regime de bens do casamento dos requerentes, de comunhão universal para separação total.

Na petição inicial, os requerentes, que têm domicílio declarado em Campinas, relatam que têm intenções diferentes em relação aos bens do casal. Enquanto ele pretende, desde logo, doar todos os seus bens aos filhos, ela tenciona manter os seus. Pedem então a alteração do regime e propõem a partilha imediata dos bens. Ela fica com um sítio em Patrocínio Paulista e uma casa em Campinas. Ele fica com outra casa, também em Campinas.

Ouvido o Ministério Público, o MM. Juiz deferiu o pedido e mandou expedir “mandado de averbação da alteração do regime de casamento para ficar constando a separação de bens dos cônjuges, junto ao Cartório correspondente, com a partilha dos bens na forma explicitada a fls. 02/04”.

2. A grande dificuldade que o ilustre consulente deve enfrentar é a dos limites da qualificação do título judicial.

Não se trata de mandado judicial, em que a ordem vinda do juiz na atividade jurisdicional não poderia ser questionada, mas de título que implica, induvidosamente, modificação da situação jurídica dos bens do casal. Parece-nos que, além de irregularidades formais do título, cumpre ao oficial examinar e apontar eventual inadequação da mutação determinada, diante dos termos da lei. Sem questionar a decisão judicial, o oficial deve rejeitar o título cujo registro não tenha previsão legal. Tal seria o título judicial que criasse nova causa de transferência da propriedade, ou que reconhecesse a perda da propriedade por modo não previsto.

"Se o Oficial não pode ingressar na análise dos fundamentos das decisões judiciárias, por outro lado, estas não podem compelir a que se torne efetiva a inscrição de títulos não subordinados à inscrição, ou que contenham defeitos em antinomia à inscrição" (Serpa Lopes, Tratado dos Registros Públicos, vol. II, Edit. Brasília Jurídica, 6ª ed., 1.996, pág. 414).

Diversas são as questões que a espécie suscita, que devem ser decididas pelo oficial, na tarefa da qualificação.

3. A primeira questão diz respeito à competência da autoridade que expediu a carta de sentença.

Consta do título que a denominada ação tramitou pela Corregedoria-Permanente. O único liame entre os requerentes, o pedido e a autoridade judiciária é o local do casamento, que foi celebrado e registrado na Comarca de Franca. Os requerentes são domiciliados em Campinas e os imóveis partilhados estão situados em outras comarcas.

Evidentemente, o pedido não visa à retificação do assento do casamento, porque não há erro no registro. A alteração do regime de bens do casamento não pode ser tratada como simples retificação.

A corregedoria-permanente do Registro de Imóveis não pode ter atraído o pedido. A uma, porque os imóveis não se situam em Franca; a duas, porque houve partilha de bens, matéria que refoge à competência do Juiz Corregedor Permanente.

O objeto do pedido que tramitou na corregedoria-permanente é questão de estado, matéria a ser decidida no juízo da família. E como os requerentes têm domicílio em Campinas, competente seria o juiz da família daquela comarca.

A possibilidade de o oficial do Registro de Imóveis desqualificar título judicial por causa da incompetência do Juízo já foi afirmada pelo E. Conselho Superior da Magistratura, em acórdão que, embora antigo, não perdeu o caráter normativo, tanto mais porque seus fundamentos são irrespondíveis: “Não se lhe pode, então, descobrir ordem indiscutível aos Registos Públicos, que não apresenta nem poderia apresentar, desde que aos Juízos de Família e Sucessões lhes falta competência absoluta na matéria. E esta deficiência nulificaria até mesmo eventual mandamento dirigido ao Registro Imobiliário (art. 113, § 2º, e 111, primeira parte, do CPC). Seria oportuno, outrossim, insistir em que títulos ou instrumentos, provenientes de atos e negócios autorizados ou homologados por decisão judicial, não se forram à necessária observância dos pressupostos legais de acesso aos Registros Públicos (cf. AC 269.827). Não está, por fim, embaraçado o Oficial do Registro Imobiliário no cumprimento do dever de exame dos títulos submetidos, ainda que oriundos de longínqua decisão judicial. Impende-lhe a verificação de todos os requisitos legais, indispensáveis ao registro do instrumento, aferindo-lhes a validade absoluta, a legalidade e a eficácia, com análise dos vícios extrínsecos e intrínsecos impedientes, não obstante provenha o título de decisão judicial, salvo se cuidar de sentença, proferida de órgão jurisdicional competente em razão da matéria e que tenha apreciado as questões suscitáveis ao propósito da admissibilidade do registo (Apelação Cível 271.597, j. 25/7/78, rel. Des. Humberto de Andrade Junqueira).

Na espécie, de que o Juízo é absolutamente incompetente, não pode haver dúvida. E não se trata de sentença proferida por órgão jurisdicional, porque o pedido foi apreciado na via correcional.

4. A segunda questão relevante envolve a possibilidade jurídica da modificação do regime de bens.

É duvidoso que possa ser alterado o regime de bens de casamentos realizados na vigência do Código Civil de 1916, que adotava o princípio da imutabilidade (art. 230). O obstáculo estaria no art. 2.039 do CC: “O regime de bens nos casamentos celebrados na vigência do Código Civil anterior, Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916, é o por ele estabelecido”.

Nesse sentido é o entendimento de Jorge Shiguemitsu Fujita (Curso de Direito Civil, Direito de Família, 2ª ed., Edit. Juarez de Oliveira, 2003, pág. 143).

O casamento dos interessados ocorreu na vigência do Código Civil de 1916, ainda quando o regime legal era o da comunhão universal. Parece-nos juridicamente impossível a mudança operada.

5. Ainda no campo da possibilidade jurídica, terceira questão concerne à eficácia da norma legal no tempo.

A modificação do regime de bens do casamento, salvo melhor juízo, não pode retroagir para modificar a situação jurídica dos bens que já integram a comunhão. Trata-se de situação jurídica consolidada. O regime de bens do casamento opera efeito no momento da aquisição dos bens. Depois da aquisição, eventual modificação será irrelevante. Assim, o casamento no regime da separação total de bens não modificará o direito de propriedade constituído antes do casamento em favor de ambos os cônjuges, em partes iguais.

A modificação do regime de bens só pode produzir efeitos “ex nunc”. A maioria da doutrina ainda se debruçou sobre o problema, mas Paulo Luiz Netto Lôbo, no Vol. XVI do Código Civil Comentado, coordenado pelo Prof. Álvaro Villaça Azevedo, sustenta que “A regra a ser observada é a seguinte: a mudança de regime de bens apenas valerá para o futuro, não prejudicando os atos jurídicos perfeitos; a mudança poderá alcançar os atos passados se o regime adotado (exemplo: substituição de separação convencional por comunhão parcial ou universal) beneficiar terceiro credor, pela ampliação das garantias patrimoniais” (Edit. Atlas, São Paulo, 2003, pág. 235).

Entendemos que a questão nem diz respeito a terceiros, que, de qualquer modo, não poderiam ser prejudicados. O problema está na inexistência de fundamento legal para a partilha dos bens anteriormente adquiridos.

Realmente, o título fala em partilha, mas a lei não prevê partilha dos bens da comunhão, a não ser na separação e no divórcio.

6. Outros obstáculos ao registro da partilha devem ser reconhecidos.

Admitida a partilha, haveria necessidade de avaliação dos bens, porque, na eventualidade de haver diferença entre os quinhões, ser calculado e recolhido o imposto de transmissão “inter vivos”.

O título não especializa o imóvel que coube à mulher.

7. Fica a ressalva de que a qualificação completa do título dependeria do exame da matrícula atualizada do imóvel, que não nos foi apresentada.

Nosso parecer, portanto, é pelo indeferimento do registro.

São Paulo, 12 de novembro de 2003 

Narciso Orlandi Neto
OAB/SP 191.338



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