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Da igualdade e da diferença - Betânia Alfonsin e Edésio Fernandes [i]*


Vielas tortuosas, becos estreitos, casas compactas, de dimensões variadas, amontoadas em lotes pequenos e inclinadas sobre os passeios reduzidos, grande densidade de ocupação, poucas áreas públicas e áreas verdes, acesso irregular combinando escadarias, pontes e caminhos de todo tipo conduzindo a áreas íngremes e áreas alagadiças: favela carioca ou loteamento irregular em São Paulo? Não, trata-se de uma descrição razoável dos centros históricos de diversas cidades do mundo, como Estocolmo, Veneza, Lisboa, Ouro Preto... Centros históricos protegidos por agências nacionais e internacionais exatamente por caracterizarem o registro histórico de modos distintos e processos socioeconômicos e culturais específicos de produção de cidades. Cidades que, a julgar pelos debates freqüentes, talvez não tivessem jamais existido se tal decisão estivesse a cargo dos planejadores urbanos brasileiros contemporâneos.

De fato, em que pese a necessidade imperativa de enfrentamento dos problemas criados por décadas de desenvolvimento urbano informal, e mesmo sabendo que o direito à permanência nos assentamentos informais urbanos consolidados é um direito social constitucionalmente assegurado dos moradores, com freqüência os planejadores urbanos têm colocado todo tipo de obstáculo aos programas de regularização de favelas e loteamentos irregulares. Exigências como largura de ruas, frente mínima de lotes, percentual de áreas públicas, afastamentos, áreas non-aedificandi, recusa da aceitação de uma possível convivência entre assentamentos (existentes ha décadas) e áreas de mananciais e preservação de cobertura vegetal, infra-estrutura completa, dentre outras, têm inviabilizado as (poucas) tentativas de promoção de integração sócio-espacial das áreas informais e seus milhões de ocupantes. Os mesmos planejadores que historicamente têm fechado os olhos e tolerado - senão induzido e mesmo incentivado - os processos urbanos informais, agora se recusam a reconhecer o direito social de moradia e a aceitar as especificidades do desenho urbano informal que historicamente tem produzido grandes partes das cidades brasileiras, com base em critérios "técnicos" tais como "faz muito barulho perto do viaduto", ou "a regularização das situações existentes implicaria a consolidação de guetos", etc.

A verdade é que, juntamente com a prevalência da ideologia jurídica dos direitos individuais absolutizados de propriedade imobiliária que tem alimentado os mercados imobiliários formais e informais e com a renovação das práticas de clientelismo político que se dão e se renovam em torno das relações sociais de acesso ao solo, a informalidade urbana no Brasil tem sido em grande medida produzida pelas próprias leis urbanísticas, que expressam uma tradição de planejamento urbano elitista e tecnocrático. Leis urbanísticas que, ao invés de partirem do reconhecimento da cidade real e seus conflitos fundiários e sociais, estabelecem critérios "técnicos" totalmente dissociados das realidades socioeconômicas de acesso ao solo urbano e de produção da moradia; leis urbanísticas cada vez mais complexas, mas que não levam em conta a capacidade de ação e gestão dos municípios, com o que acabam por serem descumpridas por pobres e ricos; leis urbanísticas que tem tido um impacto direto na formação dos preços dos terrenos, e que, combinadas com a falta de políticas públicas adequadas, acessíveis e suficientes de moradia, acabam por determinar o lugar dos pobres nas cidades - cada vez mais nos morros, áreas de preservação, áreas públicas, etc. Leis urbanísticas que, ao invés de se pautarem por critérios que expressem as possibilidades e necessidades da maioria da população, se pautam por critérios ideais e abrem em seguida o espaço da exceção, pela introdução das categorias do "interesse social", onde pouco se exige, agravada pela prática sistemática das "anistias urbanísticas".

Por um lado, a tradição do planejamento tecnocrático, que tudo quer regular em detalhe, mas abandona os grupos sociais mais carentes; por outro lado, a pressão (nacional e internacional) da ideologia neoliberal, que propõe a total flexibilização das regras do jogo de produção das cidades: eis o dilema dos gestores urbanos no Brasil. O equilíbrio necessário consistiria de regular mais - e melhor - os processos de produção do espaço urbano que precisam de regulação e da intervenção do Estado, deixando que o mercado imobiliário se ocupe dos outros processos mais afeitos às classes mais favorecidas. Isso significa tratar de maneira especial a questão da democratização das formas de acesso ao solo e produção da moradia, que aflige a grande maioria da população urbana no Brasil, inclusive pelo reconhecimento da especificidade das formas urbanas já criadas e consolidadas ao longo de décadas de ocupação informal.

Naturalmente, seria ótimo se todas as favelas e assentamentos informais pudessem ser plenamente integrados da melhor maneira possível, com o máximo de infra-estrutura urbanística e qualidade construtiva, de tal maneira que as áreas hoje informais tivessem o mesmo padrão das áreas regularmente produzidas. Contudo, essa discussão sobre critérios técnicos não pode se dar de maneira isolada, tendo que levar em conta a escala do problema, os recursos existentes (especialmente recursos financeiros e existência de terras) e os direitos envolvidos. Não há como deixar de reconhecer que as enormes distorções históricas da distribuição social da riqueza no Brasil deixaram sua marca na profunda produção social do espaço urbano, e que a regularização dos assentamentos informais é o primeiro passo no sentido do reconhecimento desse passivo sócio-ambiental gigantesco.

A discussão sobre a regularização não pode ser distorcida pelo argumento enganoso da igualdade, que na tradição jurídico-política brasileira é meramente retórico. Trata-se de encontrar um equilíbrio entre direitos individuais e as funções sociais da propriedade e da cidade. Ao promoverem programas de regularização, cabe aos gestores públicos reconhecer sim os processos de mobilidade social e práticas decorrentes do exercício das liberdades individuais dos ocupantes, porém de maneira tal que se garanta que às áreas urbanas que sofrem a intervenção publica - com enorme investimento de dinheiro publico - sejam reservadas para finalidade de moradia social. O instrumento das ZEIS - Zonas Especiais de Interesse Social tem se mostrado muito eficaz nesse sentido, e deve ser combinado com normas urbanísticas que reconheçam as especificidades das áreas a serem regularizadas e com processos de gestão democrática. Se um dia as desigualdades macroeconômicas diminuírem no país, talvez essa proteção jurídico-urbanística não seja mais necessária. Pelo momento, seguindo o ensinamento luminoso do sociólogo do Direito Boaventura de Sousa Santos, trata-se de lutar pela igualdade quando a diferença inferioriza, e de lutar pelo reconhecimento da diferença quando a igualdade descaracteriza.



[i]* Juristas e urbanistas



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