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Receita para informatização de um cartório
Quod non est in retia, non est in mundo!


Ainda há pouco, no trânsito desenfreado de opiniões nas listas de discussões de notários e registradores (o Irib tem uma: http://br.groups.yahoo.com/group/Irib/), provocou-me certa perplexidade a seguinte questão: se tivesse que partir do zero, como informatizaria um registro de imóveis?

A primeira coisa que me ocorreu foi que os dados que compõem o sistema – matrículas, fichas, indicadores, livros, bases de dados, arquivos digitais, etc. – são públicos. Não se afeiçoam à idéia de reserva privada do titular da delegação.

Penso que uma das principais preocupações que todos nós devemos ter é utilizar, tanto quanto possível, tecnologia que permita a manipulação e trânsito de dados de forma transparente, utilizando-se de tecnologia não-proprietária; isto é,sendo a base de dados dos cartórios de natureza pública , não deve ser mantida em recipientes de dados criptografados.

Lembro-se de um episódio de um grande cartório, de uma grande cidade, de um grande país: digitalizou-se todo o acervo em formato proprietário. A empresa proprietária do software faliu e os dados, bem os dados, os dados... Que dados?

Eu organizaria os indicadores pessoal e real (IP e IR) não como projeção homóloga dos livros (ou fichas) que desde sempre concentraram as informações nos cartórios. Desculpem-me a pobreza da metáfora, mas seria o mesmo que ver slides de viagem em um super home-theater . No meio eletrônico, as possibilidades de exploração da carga informativa dos dados permitem uma modelagem muito mais rica e complexa. Desgarrando-se dos tradicionais IR e IP, pensemos em conceber uma base de dados que nos dê as mesmas respostas que já nos proporcionam os tradicionais meios de inscrição, fixação, manutenção e recuperação da informação, só que muito mais, de maneira precisa e aperfeiçoada. E de forma integrada: networking, then I exist!

Não teria sentido fazer uma aposta, já que se estaria pensando em organizar sistemas e indicadores, em modelos que serão ultrapassados. Na verdade, que já estão conceitualmente ultrapassados! Os livros, fichas, indicadores,são respostas pensadas e condicionadas por históricas circunstâncias e contingências tecnológicas; isto é, o meio de fixação da informação registral e os procedimentos para sua recuperação foram concebidos no século XIX. O Indicador Real estava lá nos primórdios da Lei Hipotecária de 1846 (vide artigo 22, § 3º). A tecnologia do Cardex foi uma revolução - nada comparável às bases de dados informatizadas.

Livros, fichas, indicadores, tudo é informação, tudo se volatiliza no caldo de elétrons e.... Pensemos num oráculo: a resposta que você deve receber do sistema pode estar condicionada pela pergunta... (a propaganda do famoso banco de dados é jabá).

Oráculo de Delfos, golfo de Corinto, Grécia central

Pensaria em agregar dados nessa caixa(para alguns de Pandora...) como: cadastro municipal ou CNIR, tabelas para os pontos georreferenciados, objetos gráficos (imagens, p. exemplo), registro anterior (para automático encadeamento do trato sucessivo), pessoas que são citadas nos registros, confinância (nomes de pessoas e prédios). Da mesma maneira que v. pode pensar em especialidade objetiva e subjetiva, você pode pensar em especialidade do título (em sentido formal), cartório que lavrou a escritura, livro folha etc. juízo, vara, escrivão blá, blá, blá. Dados, dados, dados.

O que se acha no final do arco-íris? Simples: o registro já não é mais aquele! É outro. Pode confortavelmente migrar das fichas, livros e papéis e repousar em meios eletrônicos. Tem vocação para tanto. Esse processo já teve início, percebam bem. As variáveis que compõem o receituário descritivo dos registros já estão sendo decompostas, reorganizadas, armazenadas, atualizadas e recuperadas em bases de dados, com grandes vantagens para a segurança e agilidade.

Sempre pensamos que a pressa é inimiga da perfeição. Isso parecia justificar a morosidade dos registros. Trinta dias para completar o ciclo do procedimento registral hoje nos parece uma eternidade. O tempo registral também não é mais aquele. Não resisto à paráfrase do poeta: mudou o registro ou mudamos nós, registradores?

Hoje é possível conciliar os aparentes binômios tensivos e contraditórios - segurança & agilidade. Ambos são vantagens que se pode obter de um bom sistema informatizado. Mas há um aspecto relevantíssimo: dados transitam confortavelmente em redes eletrônicas; papéis, não. Quod non est in retia, non est in mundo! Mesmo a digitalização das matrículas – brave new world – é macumba prá turista . Então, segurança, autenticidade (criptografia assimétrica aplicada ao fólio eletrônico), publicidade e eficácia dos atos e negócios jurídicos, palavras-chaves no contexto registral, podem experimentar um novo sentido. Eis a tradição, "que não é todo o passado, mas apenas o passado que se faz presente e tem virtude para fazer-se futuro”.

Mas, o que fazer com as fichas, livros, papéis? Por favor, não toquem neles! Mantenha-os perfeitamente atualizados! Lembro-me de um depoimento desconcertante ofertado num desses Encontros de registradores: o colega tinha decretado o incêndio da biblioteca registral. “As matrículas estão todas digitalizadas no Word...”, justificava candidamente.

O que quero enfatizar é que já ocorre a nossa velvet revolution : uma profunda e silenciosa evolução, se me permitem a visão positiva dos fatos. Os indicadores IR e IP em alguns cartórios são mantidos em meio eletrônico e em fichas, atualizados sincronicamente. O que vem primeiro – o ovo ou a galinha? Os dados são gerados primeiramente no sistema, que os combina e recombina de maneira multifinalitária - deles se servem os escreventes, por exemplo, para uma pesquisa para expedição de certidão. Bem, esses dados são novamente recombinados e experimentam uma redução simbólica, para compor as modestas fichas dos indicadores, que ainda são mantidas para inglês ver. (Ok, ok, ok servem também para back-up). Porém, o âmago do sistema registral migra silenciosa e inexoravelmente do meio cartáceo para o meio digital. Uma simples constatação: quem pesquisaria fichas dos indicadores IP e IR se pode acessar instantaneamente os indicadores eletrônicos? Onde está a informação relevante? A pesquisa exata de termos ou abordagem fuzzy que as bases de dados proporcionam rendem uma maior precisão no resultado das pesquisas.

Insisto que as matrículas devem ser mantidas. Os livros devem ser mantidos. As fichas devem ser mantidas. Todos diligentemente atualizados recebendo escrupulosamente a inscrição. Só que há uma mudança muito sutil nisso tudo, uma mutação nos meios críticos de informação: antes fazíamos back-up e cópias de segurança dos títulos, papéis etc.; hoje fazemos dessas mesmas fichas, matrículas etc. o resultado conservativo do processamento que se produz alhures. Não tardará até que num belo dia acordemos com o fólio real eletrônico já estruturado. A lógica que impera a conformação dos meios de informação responde a imperativos de ordem econômica e social. Assusta pensar que sonhamos o sonho do sistema, temos as mais brilhantes idéias de organização cujas ferramentas já estão disponíveis no mercado...

Voltemos ao arcabouço formal dos registros pátrios. A lei exige uniformidade formal; o elemento probatório está materializado nos livros tradicionais e assim devem continuar por muito tempo. Mas... os dados começam a se robustecer nos meios eletrônicos e novos relacionamentos são estabelecidos. Há uma nova demanda recombinatória, somente possível com suportes eletrônicos. Percebam como o georreferenciamento inaugura uma novilingua, plasmada por um código informático.

É apavorante, mas o computador se alimenta vorazmente de dados e estende seus tentáculos para além e para dentro dos limites do cartório e nos impõe uma lógica que será impossível ignorar. Vivemos um novo ambiente, um novo cosmos, galáxia da informação. Haveremos de chegar a um ponto em que os nossos dados essenciais (inclusive os registrais) estarão definitivamente no intestino da besta e aí, quem sabe, a realidade já seja nem outra e nós, registradores e seres humanos assombrados, despertaremos de um pesadelo de crisálidas. (SJ – divagações insones e inspiradas pelas questões do registrador Marcelo Salaroli).



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