BE1620

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A (im) possibilidade de concessão de financiamento para a construção de imóvel residencial em condomínio loteado, no âmbito do SFH e do SFI. 
Mauro Antônio Rocha ( * )


No início do ano de 2003, a Caixa Econômica Federal centralizou em uma gerência nacional denominada GEOPI – Gerência Nacional de Operações Imobiliárias a análise das propostas de operações imobiliárias originadas e apresentadas no Estado de São Paulo. Para o atendimento jurídico dessa demanda foi criada uma Coordenadoria de Contratos Habitacionais, que, vinculada técnica e hierarquicamente à Diretoria Jurídica e à Gerência Jurídica São Paulo, atua diretamente naquela Gerência Nacional.

A centralização dessas operações trouxe à luz diversas questões jurídicas relevantes antes ofuscadas pelo atendimento difuso realizado nas agências originadoras, que estão sendo enfrentadas com determinação pelos Advogados da CAIXA e que, de alguma forma, estabelecem focos de desgastes com proponentes, vendedores, construtores, incorporadores etc.

Dentre essas questões, mostra-se recorrente aquela relativa à (im) possibilidade jurídica da concessão de financiamento destinado à construção de imóvel em ‘lote’ que, embora especializado, qualificado e numerado é constituído por fração ideal de área maior em condomínio instituído em evidente fraude à legislação disciplinadora do parcelamento do solo.

Nessa condição, foram identificados quatro diferentes grupos de operação.

No primeiro grupo estão propostas de financiamento para a construção, por conta e risco do proponente, de unidade residencial descrita no memorial de incorporação, lastreada por escritura pública de venda e compra de fração ideal e respectiva unidade autônoma em construção, registrada na matrícula da gleba incorporada.

O segundo grupo abrange as propostas para a construção de prédio residencial, projetado conforme os interesses individuais do proprietário, desconsiderando a “unidade autônoma” descrita no memorial de incorporação, também lastreada por escritura pública registrada na matrícula da gleba incorporada.

Num terceiro grupo as propostas são de construção de imóvel residencial adicional em “lote” adquirido mediante escritura pública de venda e compra de fração ideal e respectiva unidade autônoma construída, regularmente registrada e com matrícula individualizada.

Algumas dessas unidades são visíveis e serão aproveitadas ou demolidas conforme projetos de construção apresentados. Outras unidades foram construídas e demolidas, com as devidas averbações nas matrículas, embora nem sempre seja possível vislumbrar nos laudos de engenharia qualquer indício de atividade construtiva ou demolitória na área.

Em ambos os casos, as unidades incorporadoras apresentam metragens reduzidas, entre vinte e trinta e cinco metros quadrados, construídas e averbadas nas respectivas matrículas.

O quarto grupo traz uma sofisticada inovação. O condomínio é incorporado para a construção das unidades autônomas descritas e caracterizadas no respectivo memorial, mas, por mecanismos que não restaram precisos dos documentos acessados, sempre que cada um dos adquirentes de fração ideal logra obter da prefeitura municipal o alvará de conclusão de prédio construído sem qualquer identidade com a unidade incorporada, procede-se, na matrícula imobiliária, à averbação da construção e da alteração da convenção condominial adaptando-a aos novos limites de participação ideal.

Entendemos não haver qualquer dúvida em relação à ilegalidade do parcelamento do solo decorrente dessas operações. A legislação brasileira admite o parcelamento nas formas de loteamento, desmembramento e condomínio horizontal, além de permitir o loteamento fechado que, a nosso ver, é o próprio loteamento comum, uma vez que somente depois de aprovado e implantado o parcelamento o poder público municipal poderá autorizar o fechamento do loteamento.

O loteamento e o desmembramento urbanos são regulados pela Lei nº 6.766/79 e se caracterizam pela subdivisão da gleba em lotes destinados à edificação. O primeiro exige a abertura de novas vias de circulação, de logradouros públicos ou o prolongamento, modificação ou ampliação das vias existentes, que serão transferidas e incorporadas ao patrimônio público, enquanto o segundo aproveitará o sistema viário público existente. Para ambos os casos a lei exige a implantação de infra-estrutura básica, assim considerados os equipamentos de escoamento das águas pluviais, iluminação pública, redes de esgoto sanitário e abastecimento de água potável, energia elétrica pública e domiciliar.

O condomínio horizontal foi instituído pela Lei nº 4.591/64, está regulado pelo artigo 1.331 e seguintes do Código Civil Brasileiro e se caracteriza por edificação ou conjunto de edificações de um ou mais pavimentos construídos sob a forma de unidades isoladas entre si, residenciais ou não. O terreno, bem como as fundações, paredes, e tudo o mais que sirva a qualquer dependência de uso comum dos proprietários, como as vias de circulação interna, equipamentos comunitários, permanecem na esfera privada e constituem propriedade de todos, insuscetíveis de divisão.

Resta claro que aqueles ‘lotes’ não resultam de loteamento ou desmembramento pela ausência de divisão da gleba e, principalmente, pelo não cumprimento das exigências legais para a implantação dessas formas de parcelamento. Não configuram, igualmente, o condomínio horizontal, pela ausência ou impropriedade de construção.

E, “não há previsão em nosso direito positivo, de um ‘tertium genus’ entre ‘loteamento fechado’ e ‘condomínio deitado’. Não se admite que, ao sabor dos interesses do momento, crie-se uma figura híbrida de loteamento e condomínio, aplicando, tão só, a parte de cada lei que atenda à conveniência do empreendedor.” (Kioitsi Chicuta, Decisões Administrativas da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de São Paulo, 1989). [ Processo CG 16/89 , NE]

São, portanto, resultantes de procedimentos ilegais e realizados em fraude à lei.

Assim, a indubitável ilegalidade do ato originário de aquisição da propriedade impossibilita a concessão do financiamento e constitui razão suficiente para a negativa de contratação.

De mais, dispõe o item 151 (Capítulo XX) das normas de serviço da Corregedoria Geral da Justiça que “é vedado proceder ao registro de venda de frações ideais, com localização, numeração e metragem certa, ou de qualquer outra forma de instituição de condomínio ordinário que desatenda aos princípios da legislação civil, caracterizadores, de modo oblíquo e irregular, de loteamentos ou desmembramentos”.

Dessa forma, ainda que o interessado conteste a competência dos advogados da instituição financeira para fiscalizar o cumprimento de leis urbanísticas, uma vez concluído que tais operações resultaram da violação de normas de ordem pública, cogentes e gerais, a garantia oferecida – mesmo lastreada por escritura pública de venda e compra devidamente registrada no ofício de imóveis competente, restaria fragilizada e sujeita à nulidade ou anulabilidade do registro, porque decorrente de fraude à lei ou simulação.

Para além da inafastável ilegalidade do parcelamento do solo e conseqüente fragilização da garantia, outras questões - de caráter legal, operacional e institucional - foram analisadas e consideradas impeditivas ao prosseguimento dessas propostas e justificadoras da negativa.

Os contratos elaborados e lavrados por instituição financeira na condição de entidade integrante do Sistema Financeiro da Habitação e do Sistema Financeiro Imobiliário têm força de instrumento público, conforme disposto no art. 61 da Lei nº 4.380/64, com a redação do 1º da Lei nº 5049/86 e do art. 38 da Lei nº 9.514/97, com a redação da MP nº 2223/01 e, nessa condição, a Instituição exerce atividade de caráter notarial, devendo, por zelo e para prevenir responsabilidades pautar-se pelas normas legais e administrativas aplicáveis aos notários públicos.

Assim é que a Lei nº 7.433/86, ao dispor sobre os requisitos para a lavratura de escrituras públicas estende o ali disposto ao instrumento particular lavrado no âmbito do Sistema Financeiro Nacional.

“Art. 1º - Na lavratura de atos notariais, inclusive os relativos a imóveis, além dos documentos de identificação das partes, somente serão apresentados os documentos expressamente determinados nesta Lei.

§ 1º - O disposto nesta Lei se estende, onde couber, ao instrumento particular a que se refere o art. 61, da Lei nº 4.380, de 21 de agosto de 1964 , modificada pela Lei nº 5.049, de 29 de Junho de 1966.”

E, sobre a questão aqui tratada, a Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo, assim determinou aos notários e registradores:

“a) aos notários e registradores do Estado de São Paulo, sempre que, no exercício de sua atividade, vierem a ter ciência de fundados indícios da efetivação de parcelamento irregular, que promovam a remessa de informações relativas ao fato para o Juiz Corregedor Permanente, para o Ministério Público e para a Prefeitura Municipal, e b) aos tabeliães de notas, que se abstenham de lavrar atos notariais que tenham por objeto negócios jurídicos de alienação de frações ideais sempre que a análise de elementos objetivos revelem a ocorrência de fraude à legislação cogente disciplinadora do parcelamento do solo, determinando, quando da insistência dos interessados na lavratura do ato notarial, a obrigatória inserção, no instrumento público que formaliza o negócio jurídico, de expressa declaração da ciência de que a transmissão de fração ideal para a formação de condomínio tradicional não implica na alienação de parcela certa e localizada de terreno”. ( Processo CG 2.588/2000 , grifos nossos)

Portanto, no exercício de atividade de caráter notarial é prudente que o agente financeiro se abstenha de lavrar instrumentos que tenham por objeto negócios jurídicos que envolvam frações ideais, “sempre que a análise de elementos objetivos revelarem a ocorrência de fraude à legislação”.

Ademais, efetuar parcelamento do solo para fins urbanos sem autorização do órgão público competente, ou em desacordo com as disposições legais constitui crime contra a Administração Pública, punível com reclusão de um a quatro anos e multa, conforme disposto no art. 50 da Lei nº 65.766/79, penalidade extensiva a todo aquele que, de qualquer modo, concorrer para sua prática, nos exatos termos do art. 51 da mesma lei.

A expressão ‘todo aquele que, de qualquer modo concorrer para sua prática’ nos permite considerar temerárias essas operações em relação à instituição financeira, posto que a penalidade poderia alcançar também aquele que fornece os meios materiais para a consumação do parcelamento irregular ou não autorizado, inclusive pela concessão de empréstimos destinados à edificação.

Finalmente, a CAIXA integra a Coordenação Executiva do Conselho das Cidades, órgão do Ministério das Cidades constituído com a missão de assessorar e propor diretrizes para o desenvolvimento urbano, habitação, saneamento ambiental, trânsito, transporte e mobilidade urbana e para a construção de uma nova política urbana para o Brasil, não devendo participar direta ou indiretamente de operações ou situações surgidas da violação das normas urbanísticas vigentes, sob pena de desviar-se de sua função institucional.

Pelas razões expostas, entendemos juridicamente correta a negativa de seguimento às propostas de financiamento para a construção de imóveis residenciais sempre que presente qualquer dos seguintes elementos objetivos considerados reveladores da ocorrência de fraude à legislação vigente, assim considerados: (a) construção em fração ideal de gleba com indicação da localização da área ocupada; (b) área de construção maior que a prevista no memorial descritivo; (c) construção da unidade incorporada por terceiros, sem a intermediação ou participação do incorporador.

( * ) Mauro Antônio Rocha é advogado e Coordenador Jurídico de Contratos Habitacionais da Caixa Econômica Federal.



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