BE2219
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Falência , protesto e intimação do devedor
João Figueiredo Ferreira*
Objeto do estudo
Trata-se de examinar a legalidade do procedimento de intimação do devedor no caso de protesto para instruir pedido de falência, face à aparente contradição de diversos diplomas legais.
1 - regime legal
1.1 - Decreto nº 2.044, de 31.12.1909
Dispõe sobre a letra de câmbio e a nota promissória e regula as operações cambiais.
O protesto é regulado pelos artigos 28 a 33, dispondo sobre a intimação do devedor:
Art. 29. O instrumento de protesto deve conter :
...
III – a certidão da intimação ao sacado ou ao aceitante ou aos outros sacados, nomeados na letra para aceitar ou pagar, a resposta dada ou a declaração da falta da resposta.
O procedimento para a intimação do devedor não foi tratado na lei substantiva, sendo exigida pela doutrina e jurisprudência a entrega da intimação na pessoa do devedor, comprovada com documento firmado pelo mesmo.
1.2 - Decreto-Lei nº 7.661, de 21 de junho de 1945
Dispõe sobre a Lei de Falências.
O art. 10 criou a necessidade de escrituração de um livro especial, nos tabelionatos de protestos, no qual deveriam ser registrados os protestos de títulos não sujeitos a protesto obrigatório, definindo em seu parágrafo primeiro as formalidades que deveriam ser observadas para a lavratura do respectivo protesto.
Art. 10. Os títulos não sujeitos a protesto obrigatório devem ser protestados, para o fim da presente Lei, nos cartórios de protesto de letras e títulos, onde haverá um livro especial para o seu registro .
1º - O protesto pode ser interposto em qualquer tempo depois do vencimento da obrigação, e o respectivo instrumento, que será tirado dentro de três dias úteis, deve conter : a data, a transcrição, por extrato, do título com as principais declarações nele inseridas pela ordem respectiva ; a certidão da intimação do devedor para pagar, a resposta dada ou a declaração da falta de resposta ; a certidão de não haver sido encontrado, ou de ser desconhecido ou estar ausente o devedor, casos em que a intimação será feita por edital, afixado à porta do cartório e, quando possível, publicado pela imprensa ; assinatura do oficial do protesto e, se possível, a do portador.
Também nesta lei não é tratado sobre o procedimento de intimação do devedor, perdurando na doutrina e na jurisprudência o entendimento de que a entrega da intimação deveria ser comprovada com documento assinado pelo próprio devedor.
O art. 11 da mesma lei dispõe que o pedido de falência deveria ser instruído com a certidão do protesto lavrado, que caracterizava a impontualidade do devedor.
1.3 - Lei n° 5.869, de 11 de janeiro de 1973
Institui o Código de Processo Civil.
O art. 883 dispõe sobre a intimação do devedor no protesto, determinando que seja realizada por carta registrada ou entregando-lhe em mãos o aviso.
Art. 883. O oficial intimará do protesto o devedor, por carta registrada ou entregando-lhe em mãos o aviso.
A doutrina e a jurisprudência dominante passaram a admitir como válida a intimação por carta registrada remetida pelo correio com aviso de recepção (A.R.), enquanto o aviso remetido pelo Tabelionato deveria ser entregue pessoalmente ao devedor (intimação pessoal).
O Decreto nº 83.858, de 15.08.79, que aprovou o Regulamento do Serviço Postal, estabelece a seguinte regra, quanto à entrega da carta registrada:
Art. 100. O objeto postal registrado destinado à distribuição domiciliária será entregue, mediante recibo, a qualquer pessoa adulta no endereço indicado que se apresente para recebê-lo, exceto no caso de indicação de entrega em mão própria.
Como se observa, havia maior liberalidade na entrega da correspondência registrada pelo funcionário do correio do que a entrega da carta protocolada pelo funcionário do Tabelionato.
1.4 - Lei nº 9.492, de 10 de setembro de 1997
Regulamenta os serviços de protesto.
O art. 23 dispõe que todos os protestos devem ser registrados em um único livro, abolindo expressamente a necessidade de escrituração do livro especial, prevista no art. 10 da Lei de Falências.
Art. 23. Os termos dos protestos lavrados, inclusive para fins especiais, por falta de pagamento, de aceite ou de devolução, serão registrados em um único livro e conterão as anotações do tipo e do motivo do protesto, além dos requisitos previstos no artigo anterior.
Da mesma forma, o procedimento de intimação do devedor foi regulamentado pela nova lei, que passou a considerar cumprida a intimação quando comprovada a sua entrega no endereço do devedor, fornecido pelo apresentante do título (art. 14).
Art. 14. Protocolizado o título ou documento de dívida, o Tabelião de Protesto expedirá a intimação ao devedor, no endereço fornecido pelo apresentante do título ou documento, considerando-se cumprida quando comprovada a sua entrega no mesmo endereço .
1º - A remessa da intimação poderá ser feita por portador do próprio tabelião, ou por qualquer outro meio, desde que o recebimento fique assegurado e comprovado através de protocolo, aviso de recepção (AR ) ou documento equivalente.
2º - A intimação deverá conter nome e endereço do devedor, elementos de identificação do título ou documento de dívida, e prazo limite para cumprimento da obrigação no Tabelionato, bem como número do protocolo e valor a ser pago.
Em decorrência da nova lei, indaga-se se o art. 883 do Código de Processo Civil teria sido derrogado pela Lei de Protesto, que deixou de exigir a intimação pessoal do devedor, anteriormente prevista.
1.5 - Lei nº 11.101, de 09 de fevereiro de 2005
Institui nova Lei de Falências.
A atual lei de falências entrou em vigor em 09 de junho de 2005, exigindo para sua decretação que se comprove ter o devedor sofrido protesto de títulos cuja soma ultrapasse o valor equivalente a 40 salários mínimos na data do pedido de falência (art. 94-I), sendo causa excludente da decretação da falência a ocorrência de vício no protesto ou em seu instrumento (art. 96-VI).
Assim, o pedido de falência deve ser instruído com os títulos executivos acompanhados dos respectivos instrumentos de protesto para fim falimentar nos termos da legislação específica.
Art. 94. Será decretada a falência do devedor que :
I – sem relevante razão de direito, não paga, no vencimento, obrigação líquida materializada em título ou títulos executivos protestados cuja soma ultrapasse o equivalente a 40 (quarenta) salários-mínimos na data do pedido de falência ;
...
3º - Na hipótese do inciso I do caput deste artigo, o pedido de falência será instruído com os títulos executivos na forma do parágrafo único do art. 9º desta Lei, acompanhados, em qualquer caso, dos respectivos instrumentos de protesto para fim falimentar nos termos da legislação específica.
Em decorrência do texto da nova lei, indaga-se se a legislação específica mencionada refere-se à Lei de Protesto ou ao art. 833 do Código de Processo Civil, aplicável no que couber aos procedimentos previstos na Lei de Falência, como se vê:
Art. 189. Aplica-se a Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil, no que couber, aos procedimentos previstos nesta Lei.
A resposta será importante, pois a falência não será decretada se o requerido provar vício no protesto ou em seu instrumento.
Art. 96. A falência requerida com base no art. 94, inciso I do caput, desta Lei, não será decretada se o requerido provar :
...
VI – vício em protesto ou em seu instrumento ;
...
Deve ser notado, também, que, com exceção do art. 192, a anterior lei de falências foi expressamente revogada pela atual.
Art. 200. Ressalvado o disposto no art. 192 desta Lei, ficam revogados o Decreto-Lei nº 7.661, de 21 de junho de 1945, e os arts. 503 a 512 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal.
2 - INTERPRETAÇÃO DOS REGIMES LEGAIS
O problema de interpretação surge a partir da vigência da lei especial que regulamentou o protesto (Lei nº 9.492/97), que deu tratamento diferente à intimação do devedor, não mais exigindo a intimação pessoal (no sentido de a intimação ser entregue em mãos do devedor), prevista no art. 883 do Código de Processo Civil, mas considerando como válida a intimação quando comprovada sua entrega no endereço do devedor fornecido pelo apresentante.
Passamos a ter uma exigência formal menos rígida (da lei especial que regulamenta o protesto) frente a outra norma mais rigorosa (da lei de falências a respeito do protesto especial para esse fim e do CPC para os demais protestos).
Note-se que a Lei de Protesto revogou genericamente as disposições em contrário, não se referindo expressamente ao art. 833 do CPC.
Se adotarmos o conceito de que a lei especial prevalece sobre a lei geral, temos que a Lei nº 9.492/97define competência, regulamenta os serviços concernentes ao protesto de títulos e outros documentos de dívida e dá outras providências ”, enquanto o Decreto-Lei nº 7.661/45 (assim como a Lei nº 11.101/05)institui a Lei de Falências ”.
Ora, se as leis mais antigas (a de falência e o CPC) tratam genericamente da falência e da intimação do devedor no caso de protesto, e a lei nova trata especificamente do protesto de título e procedimentos formais obrigatórios, parece-nos que – com relação a este tema – a lei nova tenha derrogado as anteriores, no que se refere aos procedimentos a serem adotados para o protesto, seja ele comum ou especial. Certamente a lei nova não determinou o fim do protesto especial com efeitos falimentares, tanto que a lei de protesto dispõe quesomente poderão ser protestados, para fins falimentares, os títulos ou documentos de dívida de responsabilidade das pessoas sujeitas às conseqüências da legislação falimentar ” (art. 23, parágrafo único), preceito que nos parece absolutamente redundante face às exigências contidas na própria lei de falência.
Assim como a exigência de escrituração do livro especial previsto no art. 10 da antiga lei de falência, transcrito acima (item 1.2), foi abolida pelo art. 23 da lei de protesto (item 1.4), parece-nos que também os demais procedimentos relativos ao protesto devem obedecer ao tratamento trazido pela nova lei. Em conseqüência, a comprovação da intimação do devedor deixaria de ser pessoal (comprovante da entrega da intimação assinado pelo próprio devedor ) e passaria a obedecer ao previsto na lei de protesto (comprovante da entrega da intimação no endereço do devedor fornecido pelo apresentante do título). A diferença é fundamental, pois – em se tratando de títulos tendo como devedores comerciantes, em geral pessoas jurídicas – deixaria de ser discutida a necessidade de perfeita representação do responsável pela empresa no recebimento da intimação.
A inclinação por esta interpretação torna-se mais forte quando se examina o texto da nova lei de falência e se constata que esta não faz referência quanto à forma de intimação do devedor no protesto, remetendo genericamente aos procedimentosnos termos da legislação específica ” (art. 94, § 3°, da nova lei de falência), o que nos faz concluir que o procedimento a ser utilizado é aquele previsto na lei que regula o protesto.
3 - CONCLUSÕES
As conseqüências resultantes da interpretação da legislação segundo os critérios acima expostos seriam as seguintes:
a) - no período compreendido até 10 de setembro de 1997, data da vigência da lei que regulamentou os serviços de protesto (Lei nº 9.492/97), a comprovação da intimação do devedor deveria ser feita com a apresentação de documento contendo a assinatura do representante legal do comerciante (pessoa física ou jurídica sujeita aos efeitos da falência) destinatário da intimação expedida pelo tabelionato de protesto, podendo tal exigência ser abrandada no caso de remessa da intimação pelo correio, por carta registrada com aviso de recepção (A.R.);
b) - a partir de 10 de setembro de 1997, a comprovação da intimação do devedor poderá ser feita com a apresentação de documento contendo a assinatura de pessoa que declare ter recebido a intimação no endereço do devedor, informado pelo apresentante, ficando subentendida a possibilidade de discussão quanto à incapacidade do signatário para receber a intimação.
4 - JURISPRUDÊNCIA
Contrariamente ao exposto acima, mesmo as decisões mais recentes envolvendo julgamentos de protestos ocorridos após a vigência da Lei n° 9.492/97, a tese predominante no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul tem sido no sentido de que o signatário do comprovante da entrega da intimação seja o representante legal do devedor ou seu preposto, devidamente identificado.
Assim, diversas decisões posteriores à edição da lei de protestos têm considerado como vício no protesto a falta de intimação pessoal do representante legal da empresa devedora, trazendo aos operadores do direito alguma perplexidade e muita preocupação. Chama a atenção, todavia, que não se discute nos julgamentos o aspecto da aparente contradição entre as normas, como acima exposto.
Por outro lado, examinando 1.688 julgados do STJ na página web desse tribunal, no verbete “Falência”, separamos aqueles que se referem especificamente ao problema da intimação do devedor. Com base nesses julgados, podemos afirmar que a jurisprudência mansa e pacífica do STJ é no sentido de que:
a) - deve constar do instrumento de protesto certidão de ter sido intimado pessoalmente o representante legal da devedora ou, pelo menos, o nome da pessoa que recebeu a intimação;
b) - na hipótese de a intimação ter sido realizada por via postal, deve ser juntado o aviso de recebimento, com indicação clara de quem recebeu a correspondência, não se exigindo que seja um gerente ou outra pessoa que tenha formalmente poderes de representação.
Infelizmente, no primeiro processo encontrado em que foi alegada afronta à Lei n° 9.492/97 ( REsp n° 167.137 ), o Relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar declara expressamente que o disposto nessa lei não foi examinado em razão de o feito versar sobre fatos ocorridos antes da data da sua promulgação.
Em outro processo em que foi alegada ofensa ao art. 14 da Lei n° 9.492/97 (REsp n° 435.043 ), o mesmo Relator não enfrenta a questão, fazendo referências a julgados anteriores para embasar seu voto.
Também nesses julgamentos não se encontram referências expressas à aparente contradição entre as normas relativas ao procedimento de intimação do devedor. Assim, lamentavelmente, espera-se ainda uma apreciação mais efetiva de nossas cortes superiores a respeito da matéria, de alta relevância para os tabeliães de protesto, que devem responder pela regularidade dos atos praticados.
*João Figueiredo Ferreira é Tabelião de Protestos em Porto Alegre
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