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Registro e globalização, regularização fundiária e propriedade
Um diálogo ibero-americano.


O registrador paulista, Leonardo Brandelli, entrevistou o registrador de Córdoba, Francisco de Asis Palacios Criado. O resultado v. tem aqui, em tradução de Eloisa Cerdan.

Marcelo Tossi, Francisco de Asis Palácios Criado e Leonardo Brandelli (Barcelona, 2005)

LB: No chamado “mundo globalizado”, é possível ter um sistema registral isolado, com efeitos que interessam somente ao Estado no qual se encontra o registro? Ou, ao contrário, o sistema registral deve incorporar-se no fenômeno da globalização e ter uma análise a partir desse ponto de vista?  

FAPC: A globalização nos permite obter um maior nível de informação a partir de outras realidades. Os Estados, como é lógico, regulam suas instituições atentos a sua política e tradição histórica. A harmonização dos diferentes sistemas registrais é complexa, porém, é algo desejável, embora eu seja consciente de que nem todos os trens, pessoas ou países, saem da mesma estação. É preciso trabalhar duramente, porque a desigualdade inicial não implica uma desigualdade final. Os operadores internacionais devem ficar surpresos não só com a diferente regulação dos países, mas, também, que os controles de alguns sejam mais fortes do que o de outros. Devemos tentar fazer com que a resposta dos sistemas registrais seja a mais uniforme possível, sobretudo, se levarmos em conta que nossas leis partem de um tronco comum. A legislação hipotecária de ultramar não minguou no século XIX; ao contrário, os novos países que surgiram a integraram em seus próprios ordenamentos jurídicos de tal forma que as leis castelhanas se adaptaram à realidade americana.

Nesse novo panorama mundial globalizado, qual é a função macroeconômica que o registro desempenha?  

É uma função essencial. O registro proporciona paz social e segurança jurídica que são requisitos imprescindíveis para um crescimento econômico ordenado dos povos. O ideal seria que todo o mundo agisse de boa fé, que cada pessoa soubesse distinguir claramente o que é seu do que não é; e que não existissem patologias do tráfico jurídico (venda dupla, alienação de coisa alheia, nulidade de título, má fé, etc.). Mas a realidade não é essa. O capital, em geral, é medroso, de tal forma que o capital “bem utilizado” busca ausência de risco e almeja certeza (formalidade) e o capital “mal utilizado” busca a clandestinidade e a opacidade (informalidade), mesmo a custo de atentar contra a dignidade humana. O registro bem organizado contribui para o primeiro, mas evita o segundo. A Espanha investiu na integração registral ibero-americana. Por que a idéia de fazer uma integração dos registros ibero-americanos? Qual é a importância dessa integração? É evidente que não só a vinculação histórica une a Espanha com a Ibero-américa, mas também a língua e a legislação, que é muito parecida. A semelhança da legislação registral espanhola com a Ibero-americana indica, do meu ponto de vista, uma maior comunicação e união entre os registradores dos diferentes países. Os interesses, inquietudes, preocupações e projetos são muito parecidos, logicamente que com certos matizes. Eu entendo que seria um erro que, partindo de um tronco comum, não houvesse uma importante comunicação e integração entre nós. Dessa forma, os sistemas registrais mais avançados podem impulsionar os menos avançados e, assim, evitar o isolamento de algum país ibero-americano. Tudo fica mais fácil quando se oferece ao cidadão, perante distintos problemas, soluções uniformes. Os registradores espanhóis têm demonstrado, ao longo de sua história, que estiveram dispostos a facilitar o apoio técnico e jurídico para a modernização do sistema de um determinado país, porém, é o próprio país, no final, que tem que decolar. Da mesma forma, a Espanha teve idéias e projetos de representantes Ibero-americanos.

Qual é a missão do Cadri neste contexto?  

Como se pode ver na página WEB do CADRI (www.cadri.org), a globalização não produziu unicamente a supressão dos muros físicos, mas contribui para uma maior união entre os povos. Não obstante, como disse anteriormente, a globalização manifesta um grande desequilíbrio na regulação e aplicação dos diferentes sistemas registrais. Acredito que o desequilíbrio possa ser superado, entre outros meios, mediante o conhecimento imediato de todas as notícias que estão sendo produzidas, nesse âmbito, sobre a formalização da propriedade, modernização do Registro da Propriedade, atuação dos organismos internacionais, estatística hipotecária, conflitos de terras e desenvolvimento sustentável. Acredito que a experiência comparada, devidamente adaptada ao fator diferencial, é uma magnífica fonte de progresso para qualquer país. Este tipo de informação não só nos enriquece, como também nos torna portadores de uma importante ferramenta que deve ser sempre utilizada em benefício da sociedade. O CADRI tem incorporado, hoje em dia, praticamente a totalidade da legislação hipotecária ibero-americana e espanhola. Além disso, no CADRI, podemos nos informar sobre os diferentes eventos, assim como os requisitos de acesso ao curso Ibero-americano de direito registral. Também há um fórum, para que possamos trocar opiniões e dialogar sobre temas que nos preocupam. O CADRI não seria nada se não contasse com acessos, assinaturas ou colaborações. A partir daqui, faço um chamado aos usuários para que forneçam, com rigor e seriedade, notícias que contribuam ao melhor conhecimento dos sistemas registrais.

Esta integração pode contribuir para o desenvolvimento dos países Ibero-americanos mais pobres?  

Sim. Quando se elaboram as Leis e teoriza-se sobre determinadas questões, perde-se de vista, muitas vezes, o fato de que essa Lei tem um destinatário final que vive em uma situação de miséria e, portanto, de informalidade. É necessário que tenhamos grande empatia no momento de resolver os problemas dos mais necessitados. Não sendo assim, ficaríamos sempre na metade do caminho, pois os destinatários finais do sistema registral são todos os indivíduos, independentemente de seu estrato social. Se não lutarmos, todos nós, para que as pessoas que vivem em situação de marginalidade acedam à formalidade, elas ficarão nas mãos de grupos no qual, o que lhes interessa, exclusivamente, é o lucro pessoal a qualquer preço. Não devemos nos esquecer de que o acesso à formalidade para estes grupos sociais menos favorecidos tem de ser facilitado ao máximo, pois, não sendo assim, ao invés de nos reconhecerem como uma luz no final do túnel, nos virão como um muro infranqueável e cheio de custosos trâmites burocráticos. Devido ao fato de que situações de marginalidade se produzem em todos os países, é necessário que, por meio de canais rápidos, troquemos informações sobre o modo como cada um tem resolvido seus problemas com um único objetivo: a melhora dos serviços públicos que contribui para aumentar a qualidade de vida dos cidadãos.

Alguns países americanos têm um sistema registral que não é bom. Essa situação, de alguma maneira, afeta os países e instituições da Europa?  

A União Européia é uma entidade supranacional que, desde o seu início, tem estado em contínua expansão. Há alguns anos, seria utópica a incorporação dos países do Leste. A realidade nos demonstra que a ampliação da União Européia não se reduz somente a determinados países, mas vai mais além. Gostaria de pensar que os representantes Europeus se interessam em assinar tratados de colaboração com países nos quais os sistemas jurídicos, em geral (os registrais, em particular), e os sistemas de distribuição da riqueza, a igualdade de oportunidades seja uma realidade, embora o normal, para sair do poço, é necessário pagar o mesmo pedágio que os países que superaram esta situação. Na Espanha, por exemplo, no ano de mil e oitocentos, a nobreza detinha a maior parte da terra, ou seja, aproximadamente sete milhões e quatrocentos alqueires; a igreja detinha o usufruto de, aproximadamente, dois milhões e quatrocentos alqueires, ficando, para a classe plebéia, somente quatro milhões e meio de alqueires. Como a nobreza tinha por finalidade a acumulação, era muito difícil a constituição de uma classe de pequenos proprietários. Esta situação deu lugar a leis de não amortização e a diferentes reformas agrárias para evitar que um número relevante de bens ficasse em “mãos mortas”. Por outro lado, não acredito que os governos europeus tenham interesse de viver em uma grande jaula de cristal, sem levar em conta a troca de informação e conhecimentos entre a Europa e a Ibero-américa. No âmbito econômico, os investimentos que estão sendo realizados por parte de empresas Européias são muito importantes.

Francisco Palacios em Fortaleza (novembro de 2005)

No Brasil, não temos o princípio da fé pública registral. O que o senhor acha dessa situação? Em sua opinião, a realidade brasileira, vista no último congresso do Cinder, sugere a adoção da fé pública?  

A fé pública registral implica a confiança pública do Registro. A comunidade aceita como verdade oficial o que se publica no Registro. Isso não quer dizer que, ao amparo da informalidade, estejam sendo produzidas, nesse momento, situações não desejáveis, ocultas no tráfico jurídico que não convêm proteger nem expressa, nem tacitamente. Por meio da fé pública registral, rompe-se com essas patologias em benefício do terceiro registral, situação que, à primeira vista, pode ser surpreendente, mas que exige um exame de todos e cada um dos requisitos que necessita esse terceiro registral (artigo 34 da Lei Hipotecária Espanhola) de modo que percebemos que esse terceiro não é um terceiro qualquer, é um terceiro extraordinariamente qualificado. Com isso, o Registro cumpre uma função que, para mim, é básica, ou seja, a proteção da aparência jurídica e não da ausência jurídica pois, se não fosse assim, nos encontraríamos perante um Registro que, ao invés de contribuir com a certeza no mercado, proporcionaria o contrário. É por isso que mantenho, no fórum do CADRI, que é preciso estimular ao máximo uma inscrição não meramente declarativa, pois a inscrição, como diz García García, ou significa algo na formação e configuração do direito real ou não significa nada, cujo caso é um conceito anti-hipotecário. Uma inscrição em vão degrada a proteção do tráfico jurídico e, além disso, cria-se uma falsa expectativa ao futuro titular do registro.

A Espanha tem um dos sistemas registrais imobiliários mais respeitados do mundo, fruto de uma evolução mais ou menos recente. Que lição podemos tirar da evolução registral espanhola?  

O amadurecimento do sistema espanhol é fruto, no meu ponto de vista, não só da experiência, mas sim do Estado Espanhol que, ao longo da história, tem reafirmado que as pessoas que acedam à profissão de Registrador sejam juristas muito qualificados. Dentro do corpo de registradores existiu, e continuam existindo, companheiros muito comprometidos não só com a Instituição, mas também com a prestação de um serviço público de excelente qualidade no âmbito do registro. Eu penso que não são os títulos que dignificam as pessoas, mas são as pessoas as que dignificam os títulos. A função registral exige compromisso, esforço e objetivos a serem oferecidos a nossa sociedade. Os sistemas não são frutos da casualidade, é preciso procurar mantê-los e melhorá-los sempre, senão, eles decaem..

A Espanha passou por uma situação de irregularidade fundiária que foi superada em grande parte. Porém, ainda há pequenos focos do problema. Em Córdoba, onde o senhor trabalha, há uma parcela de moradias em situação irregular. Na sua opinião, como pode o registro imobiliário atuar para melhorar esse problema? A formalização da propriedade informal é suficiente para a resolução do problema? O que o senhor pôde aprender, na Espanha, sobre esse assunto durante esse processo?  

De fato, em Córdoba, ocorreu e continuam ocorrendo situações de parcelamento ilegal que, nos anos noventa, estavam muito generalizadas. Partes ideais indivisas com inscrição de parte certa da terra eram transmitidas e formalizadas. Isso deu lugar a que se formassem espontaneamente núcleos de povoamentos, sem planejamento urbanístico. Não obstante, a partir do Real decreto de 1997 sobre inscrição de Atos de Natureza Urbanística, o Registro da Propriedade começou a abordar o tema com seriedade. Atualmente, no que se refere a este tema, a Lei do Solo da Comunidade Autônoma Andaluza é muito restritiva. No meu ponto de vista, estas áreas estão atrofiadas economicamente, pois um grupo escasso de pessoas obtém um grande lucro pessoal, em prejuízo dos titulares de terrenos que não estão dotados da mais mínima infra-estrutura. Na Espanha, quando se produz esta situação de transmissão de frações ideais em propriedade rústica com dúvida fundada sobre a formação de núcleo de povoado, a inscrição é suspensa e o Registrador comunica a situação à Prefeitura respectiva. Se no prazo máximo de 180 dias não for emitida uma declaração do acordo municipal, adotando o início de inquérito de disciplina urbanística, onde se comprova a prévia audiência dos interessados, o Registrador praticará a inscrição, com a qual, o Registro, nesta matéria, se constitui um colaborador necessário para evitar as situações de parcelamento ilegal.

O senhor é um jurista e registrador de grande nível intelectual e, ao mesmo tempo, é uma pessoa que busca o equilíbrio das coisas e conhecimentos não jurídicos, buscando a aproximação do fenômeno social. Qual deve ser, em sua opinião, o perfil do registrador atual? É o mesmo do início do século XX?  

Salvo melhor juízo, acredito que não. O que me interessa, realmente, é oferecer ao usuário do Registro um serviço de excelente qualidade. Para isso, não devemos nos limitar a examinar o Registro como algo monótono. O Registro e a função registral têm uma configuração poliédrica que deve estar predisposta sempre não só para oferecer segurança jurídica aos particulares, mas, também, para cooperar, desde a vanguarda, com o Estado na configuração das políticas públicas e sociais: Meio Ambiente, Igualdade de Direitos, Igualdade de Oportunidades, Redistribuição da riqueza, Georreferenciamento, etc. Desde que tomei posse do meu primeiro Registro, sempre me perguntei o que eu posso fazer pelo Registro e não o que o Registro pode fazer por mim. O fato de ter uma concepção imobilista da profissão, não acho que seja bom, pela mesma razão que penso que, por trás de nossos objetivos, estarão sempre nossas alegrias.

Miguel Ángel Buonarroti, pintor, escultor, arquiteto e poeta italiano do Renascimento (1475-1564) dizia: O maior perigo para a maioria de nós não é que nossa meta seja muito alta e não a alcancemos, mas que seja muito baixa e a consigamos.



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